O Estado da Arte publica com exclusividade o primeiro capítulo do livro Arte e Imaginação: um estudo em filosofia da mente (É Realizações) do pensador inglês Roger Scruton, com publicação prevista no Brasil para o dia 05 de novembro. Uma primeira versão desta obra foi apresentada por Scruton como sua tese na Universidade de Cambridge, e contou com a orientação da grande filósofa G. E. M. Anscombe, discípula de Ludwig Wittgenstein, e teve entre seus examinadores ninguém menos que Bernard Williams, um dos mais influentes intelectuais britânicos da segunda metade do século XX. Nas palavras do próprio Scruton, “Os problemas com os quais lido, embora frequentemente expressos, por questão de clareza, na linguagem da lógica filosófica, são os problemas perenes da estética, os problemas da natureza e do valor da arte”. Em tempos de vulgarização do debate sobre as artes, o Estado da Arte espera contribuir com esta publicação para um bom debate de ideias: rigoroso, claro e honesto.
Capítulo 1 – Introdução
O propósito do presente livro é esboçar uma teoria do julgamento e da apreciação estética em termos de uma filosofia empirista da mente. Para filósofos idealistas, a estética jamais se separou da filosofia da mente: esses filósofos produziram teorias do pensamento, do sentimento e da imaginação que reservam um lugar central e inteligível para as atividades do juízo e da apreciação estética. Empiristas, por outro lado, tiveram dificuldade em explicar essas atividades, a não ser reduzindo sua importância de uma maneira que poucos considerarão aceitável. Para filósofos como Hutcheson e Hume, a estética torna-se uma questão de “sentimento”: de gostar mais disto que daquilo. O gosto é um segmento isolado e inexplicável da psicologia humana, e se trata simplesmente de um fato curioso, mas filosoficamente desinteressante, que os seres humanos gostem de determinadas coisas (como tragédias, morangos e bom tempo) e tenham aversão por outras. “A beleza”, escreveu Hume, “é uma ordem e construção de partes, seja pela constituição primária de nossa natureza, seja por capricho, que se presta a propiciar prazer e satisfação à alma.”1 Sem possuir uma filosofia do pensamento e do sentimento capazes de tornar nossa experiência da arte inteligível, parecia natural a esses filósofos que a apreciação estética não tivesse lugar na parte intelectual da mentalidade humana. Assim, Hutcheson se contentava em dizer que “a origem de nossas percepções de beleza e harmonia é justamente chamada de ‘senso’ [‘sense’], pois não envolve nenhum elemento intelectual, nenhuma reflexão sobre princípios e causas”.2
A filosofia analítica contemporânea herdou as debilidades de suas origens empiristas. Houve poucas obras de estética filosóficas no século XX capazes de lançar qualquer esclarecimento sobre o assunto, e muitas daquelas que o fazem (a Estética, de Croce, por exemplo, e a Filosofia da Arte, de Collingwood) tomam do idealismo sua estrutura conceitual. É claro que, por sua rejeição dos pressupostos céticos e cartesianos do empirismo tradicional, a filosofia analítica tem mais em comum com o pensamento de Locke, Hume, Berkeley e Thomas Reid que com o de Hegel, Fichte ou Croce. Não é mais possível aceitar como plausível a filosofia a da mente que tornou possível a explicação do juízo estético por Croce; não obstante, a explicação alternativa dos processos mentais humanos que deriva de Ryle e Wittgenstein não fornece um quadro claro do lugar que pode ocupar a estética. Nos capítulos que se seguem, gostaria de sugerir como pode ser preenchida essa lacuna.
A estética filosófica parece dividir-se em duas partes: em primeiro lugar, há o estudo da apreciação estética, atitude estética, gosto, emoções estéticas e assim por diante. Em outros termos, existe a análise filosófica de uma área da experiência humana, aquela envolvida em nossas respostas aos objetos de interesse estético. Trata-se de uma questão filosófica sobre até que ponto é possível fornecer uma descrição dessas atitudes e preferências que não seja trivial, e até que ponto é possível separá-las como um segmento autônomo da atividade mental.
Em segundo lugar, os filósofos tentam analisar nossos julgamentos sobre os objetos do sentimento e da apreciação estéticos. Efetuamos juízos de valor sobre esses objetos, e os descrevemos de várias maneiras que parecem possuir uma peculiar relação com seu significado estético. Precisamos descobrir o que significam essas descrições e avaliações, e como elas podem ser fundamentadas, se é que podem sê-lo.
De imediato, parece que já fazemos uma grande asserção. É real- mente tão óbvio que podemos descrever o juízo estético e a apreciação estética de maneira independente? Será uma de minhas teses que não podemos. Certamente, seria um filósofo vulgar aquele que sustentasse que a ética pode dividir-se de maneira similar – no estudo de atitudes e sentimentos morais, por um lado, e no estudo de juízos morais, por outro. Pois existem sólidos argumentos morais para afirmar que não podemos compreender juízos morais, exceto no contexto de certas atitudes, e que não podemos compreender essas atitudes e sentimentos até que possuamos uma firme apreensão de sua expressão nos juízos morais. Compreender os primeiros significa compreender os segundos.
Mas, estabelecer as conexões precisas entre juízo e apreciação em estética é difícil – mais difícil ainda que em ética. Uma fonte de dificuldade é a obscuridade de noções teóricas tão sobrecarregadas como “apreciação estética” e “experiência estética”; no entanto, é com base em uma análise dessas noções que se pode fundar uma estética empirista. Além disso, certas asserções de largo alcance têm de ser feitas sobre o conceito de signi cado para que o juízo estético possa, de alguma forma, ser explicado. Que há conexão entre o significado de nossos enunciados e nossos estados mentais é inegável; porém, no caso da experiência estética, a conexão mostra-se difcil de descrever. A primeira parte dessas investigações, portanto, se ocupará, em grande parte, de questões sobre a teoria do significado, enquanto a segunda se dedicará à filosofia da mente. Apenas por meio dessa estratégia de aproximação se pode estabelecer uma relação entre uma teoria empirista da mente e os problemas da estética.
Perguntar-se-á: “Que lugar possui a arte em semelhante investigação? Onde se encaixa o conceito de arte em relação aos de experiência estética e juízo estético?”. Com certeza, seria tolo tratar a estética de um modo que se torne um fato irrelevante cujos principais objetos do juízo e apreciação estéticos sejam obras de arte. Foi precisamente isso que tornou a estética empirista inaceitável. Nenhum leitor de Hegel pode deixar de admirar o brilhantismo e a segurança com que ele de- fendeu o papel central da arte na experiência humana, e com que ele derivou de premissas puramente filosóficas uma teoria da natureza e dos limites das várias formas de arte. Não obstante, não é certo que o pressuposto empirista de que a arte pode ser descrita de maneira independente tenha realmente sido refutado. Se Kant é importante na história da estética, isso se deve em parte ao fato de que ele foi o primeiro filósofo a tentar fornecer uma explicação sistemática da apreciação estética, sem descrever seu objeto material e sem recair no “Sentimentalismo”. Ficará claro que muito depende da questão de saber se a proposta de Kant pode ser executada. É característico do empirismo encarar os processos mentais como intrinsecamente divisíveis em categorias separadas – o cognitivo, o conativo e o afetivo, por exemplo. Para o idealismo, esses são, no máximo, aspectos mutua- mente dependentes de um único processo, e a assimilação empirista do “estético” ao “afetivo” recusa-se, de maneira simples, a admitir que toda atividade mental é também cognitiva. A experiência estética é uma forma de conhecimento, e deve ser definida em termos de seu objeto. A experiência e seus objetos estão conectados de maneira tão íntima, de modo a apresentar completa coerência, dirá o idealista, formando uma esfera autônoma de atividade mental. Assim, Croce (e, em sua esteira, Collingwood) argumentaram que a conexão entre arte e apreciação estética é logicamente necessária: o objeto de apreciação é “expressão”, e expressão é prerrogativa da arte. No que se segue, desejo mostrar que a abordagem kantiana da estética não só pode ser ressuscitada, como também pode receber uma firme base analítica.
Antes de começar, descreverei certos pressupostos filosóficos dos argumentos em capítulos posteriores, e indicarei brevemente por que esses pressupostos estão próximos dos postulados do empirismo. Qualquer filosofa da mente séria deve permitir-nos responder a questões da forma: “O que é pensamento?”, “O que é crença?”, “O que é sensação?”, “Quais são as emoções morais?”, “O que é experiência estética?”, e assim por diante. Suporei que respostas a questões como essas envolvem análise do significado do “pensamento”, “crença”, “sensação” e termos similares. Dito de outro modo, assumo uma das principais doutrinas da filoso a analítica. No entanto, nem todas as explicações do significado de “pensamento”, “crença” e “sensação” são filosoficamente adequadas; não desejamos conhecer apenas quais- quer fatos sobre o uso desses termos. Assumirei que, à parte algumas exceções muito importantes, que discutirei no Capítulo 5, as características interessantes do significado de um termo, essas características que um filósofo procura descobrir, são as características que regem a verdade e a falsidade de sentenças nas quais o termo ocorre. Estamos interessados no significado dos termos somente porque nos interessamos pela verdade das sentenças. Apenas se soubermos as condições sob as quais é verdadeiro dizer de algo que ele/ela está pensando (por exemplo), saberemos o que é importante sobre o significado de “pensamento”. Se conhecermos essas condições, então estaremos em posição de dizer por que possuímos um termo com esse significado: aprendemos algo sobre o conceito do pensamento. Podemos apontar para relações e coerências entre as condições de verdade que tornam o conceito de pensamento inteligível. Isso se deve, em parte, ao fato de que argumentos filosóficos dizem respeito a condições de verdade, que não se tratam de meros jogos verbais.
Agora, um importante postulado na linha do empirismo analítico que assumirei é este: supomos que existe uma categoria de sentenças, incluindo muitas sentenças declarativas singulares no presente do indicativo, que se ligam essencialmente às condições de verdade, a qual não se pode dar nenhuma explicação do significado de uma dessas sentenças, ou do que significa compreender uma dessas sentenças, sem que se refira às suas condições de verdade. Talvez haja outras sentenças cujo significado não precise ser explicado desse modo, mas é essencial para nossa linguagem, e de fato para qualquer linguagem que transmita informação, que exista essa categoria central de sentenças declarativas, cujo significado deriva de suas condições de verdade. E conferir sentido a sentenças dessa classe é uma condição para conferir sentido a qualquer sentença que seja.
É por esse motivo que uma investigação filosófica sobre o significado dos termos tenderá a se concentrar em seu uso em sentenças declarativas do presente do indicativo – gostaríamos de saber quando é verdade dizer que alguém está agora pensando, sofrendo, temendo, e assim por diante. A esperança é que uma compreensão de certas características gerais da linguagem – regras que regem a introdução de tempos verbais, conectivos, modalidades e assim por diante – nos capacitará a derivar o significado das sentenças restantes. O empirista argumentará que essa classe privilegiada de sentenças se conecta intimamente com os fundamentos de nosso conhecimento. É com essas sentenças que a ideia de uma condição de verdade recebe conteúdo epistemológico.
Aqui, porém, precisamos distinguir duas noções de uma condição de verdade, a primeira epistemológica, a segunda meramente formal. O empirismo envolve uma tentativa de explicar nossa compreensão da linguagem. Mas precisamos ter cuidado para não confundi-la com a abordagem mais formal do conceito de significado que deixe de fazer referência à compreensão. Do ponto de vista da semântica formal, há um sentido no qual quase qualquer sistema de signos pode receber uma condição de verdade para cada uma de suas sentenças, possa ou não semelhante sistema ser usado ou compreendido como linguagem por seres inteligentes. É suficiente que, para cada sentença “s”, outra sentença “s” possa ser encontrada, de modo que “s” é verdadeiro se e somente se s’. Poderíamos pensar “s” e “s’” como sentenças em duas linguagens isomórficas, mas não interpretadas. Ou poderíamos pensar “s’” como alguma sentença arbitrária introduzida na linguagem precisamente por esse propósito (uma sentença que não possui sentido à parte do sentido conferido a ela por sua equivalência a “s”). No caso limite “s” e “s’” podem até mesmo ser tomadas como idênticas. Assim, contanto que faça sentido dizer “s é verdadeiro”, então a sentença “s”, nesse sentido puramente formal, possui uma condição de verdade, a saber, a circunstância de que s. Porém, filósofos que sustentam que a sentença “a é bom” possui genuínas condições de verdade não pretendem negar que “a é bom” seja verdadeiro se e somente se a é bom, não pretendem negar que “a é bom” seja verdadeiro se e somente p, onde “p” corresponde a alguma outra sentença – como “a é desejável”, “a é um objeto adequado de preferência”, e assim por diante – o que apresenta as mesmas dificuldades epistemológicas.
Além disso, essa noção “formal” de uma condição de verdade pode ser reforçada sem produzir quaisquer conclusões substanciais. Pois uma linguagem pode ser dotada de uma teoria semântica, de modo que toda sentença na linguagem receba uma condição de verdade na teoria. Se pudermos construir uma interpretação semântica para uma linguagem ou sistema de signos, então poderemos, de maneira recorrente, atribuir condições de verdade às sentenças da linguagem, de um modo que deixa de ser trivial. Porém, essa atribuição de condições de verdade nos fornecerá os meios para compreender a linguagem original somente se primeiro compreendermos a teoria semântica com a qual ela é cotejada. E compreender a teoria envolverá igualmente a habilidade de, em um sentido mais forte, menos formal, atribuir condições de verdade às suas sentenças.
O empirista argumenta que podemos compreender uma linguagem somente se pelo menos algumas de suas sentenças recebe- rem condições de verdade em um sentido mais forte: condições que mostram como uma sentença deve ser verificada. Precisamos atribuir significado a certas sentenças diretamente, sem a mediação de outras que “forneçam suas condições de verdade” numa maneira puramente formal. Precisamos explicar a função referencial e descritiva das sentenças em termos de características observáveis de nosso mundo. Não é o fato de que “s” é verdadeiro se e somente se s que nos permite compreender a sentença “s”. É antes o fato de que há um estado de coisas que garante a verdade de “s”, e que pode ser identificado não só pelo uso de sentenças equivalentes, mas também diretamente, por assim dizer, por observação. Em outros termos, a ideia de uma condição de verdade é preenchida, ou recebe conteúdo, em termos dos estados de coisas observáveis que tornam sentenças verdadeiras. É um postulado essencial do empirismo que a noção formal de uma condição de verdade só pode ser preenchida desse modo, por meio da referência a estados de coisas que podem ser localizados pela observação.
Ao longo dos próximos capítulos, eu me apoiarei fortemente na distinção aqui enfatizada entre a teoria formal da semântica e essa parte da teoria do significado que pertence mais propriamente à filosofia da mente: a teoria da compreensão [understanding]. Minha sugestão é que a primeira não contém quaisquer pressupostos epistemológicos, enquanto a segunda requer uma explicação do conhecimento humano. Se considerarmos o empirismo como uma teoria da compreensão, então veremos por que uma classe central de sentenças – declarativas singulares do presente do indicativo – possui tanta importância para uma investigação filosófica do tipo daquela em que estamos engajados. Pois essas sentenças podem receber explanações ostensivas: suas condições de verdade podem ser ostensivamente identificadas, por meio da indicação de características observáveis do mundo. É por referência a esses estados de coisas observáveis que o significado de sentenças elementares é ensinado, e sem essa relação com uma situação observável jamais se poderiam aprender o significado desses predicados e expressões de referência que são essenciais para a compreensão de uma linguagem. Segue-se que o significado dessas sentenças primitivas deve ser dado em termos dos estados de coisas observáveis que as tornam verdadeiras – esses estados de coisas estão essencialmente envolvidos no ensino e no aprendizado das sentenças em questão. Há, no entanto, um sentido de “condição de verdade” no qual uma condição de verdade de “s” se liga com o uso estabelecido de “s” e, por conseguinte, ao significado de “s”; ele pode, portanto, ser distinguido da mera evidência da verdade de “s”. É claro, uma condição de verdade de “s” também se refere a um estado de coisas que é uma evidência para a verdade de “s”; porém, é uma evidência que se liga com “s” de uma maneira particular, de tal modo que, se deixasse de ser uma evidência, seríamos forçados a concluir que o significado de “s” mudou. No sentido epistemológico de “condição de verdade”, portanto, podemos ver porque o significado de uma sentença declarativa (pelo menos nos casos centrais) é dado pela condição de sua verdade.
Ora, o aprendizado da linguagem depende de certa compreensão natural da situação com a qual as sentenças são correlatas: não existe uma determinação a priori do que pode ser tomado por certo. A futura prática da criança é o critério do que ela compreendeu, mas de modo algum é a prática logicamente determinada pelo que ocorreu antes. Pareceria seguir-se disso que não podemos derivar da conexão meramente ostensiva de uma sentença com condições de verdade uma descrição das condições que são tanto necessárias quanto suficientes para sua verdade. As condições necessárias subsistirão como um fundo vagamente compreendido e inarticulado para a situação de ensino, em- bora condições suficientes só pudessem ser afirmadas se dispuséssemos de meios para descrever o que está em jogo na situação que localizamos por ostensão. E isso significa supor uma compreensão de outras sentenças que apresentam precisamente os mesmos problemas daquelas que estamos tentando explicar. No entanto, a impossibilidade de afirmar condições necessárias e suficientes não implica que semelhantes condições não existam: pelo contrário, o argumento parece sugerir que elas existem e que são elas que determinam o significado da sentença.
A conexão entre as sentenças declarativas no presente do indicativo com condições de verdade, no sentido epistemológico, talvez explique a importância da noção de “critério” de Wittgenstein. Assumo que um critério de inteligência, digamos, é uma característica de um homem que necessariamente fornece uma razão para descrevê-lo como inteligente: isso é parte do que entendemos por inteligência, de modo que, onde esse fato ou característica deixa de fornecer uma razão para o juízo, o conceito de inteligência seria outro. Essa definição, da forma como é posta, não é muito satisfatória, pois a noção de uma razão é contextual – o que é uma razão em um contexto pode não ser em outro. Por exemplo, poderia ser o caso que ter chifres fosse um critério para algo ser uma vaca: porém, em outras circunstâncias, poderia ser parte da razão para afirmar de algo que é uma cabra e, portanto, não uma vaca. Precisamos explicar, então, como um critério se conecta conceptualmente com certo juízo. Poderíamos dizer que é uma verdade conceptual que, na ausência de qualquer razão em contrário, a presença de um critério dá razão para a verdade do juízo correspondente. Ao chamar isso de verdade conceptual, pretendo apontar para o fato de que é mediante a apreensão das relações entre um termo e seus critérios que se diz que alguém compreende o termo. Uma verdade conceptual é uma consequência direta da maneira pela qual fixamos o significado de um termo.
Ora, segue-se disso que um critério para a aplicação do predica- do F é também uma condição que rege a verdade da sentença F(a). Os critérios que de nem os significados dos termos empregados nas sentenças declarativas do presente do indicativo também fornecem as condições sob as quais essas sentenças são verdadeiras. (Esses critérios não são em geral nem condições necessárias nem suficientes, embora ambas as condições, necessária e suficiente, se relacionem com eles de forma assimptótica.) Wittgenstein pensava que a presença de critérios em qualquer coisa deve poder ser detectada; eles servem, portanto, para fechar o espaço entre epistemologia e lógica. Logo, descobrir os critérios para a aplicação de um predicado é descobrir o que é filosoficamente interessante a seu respeito.
Os problemas da estética serão respondidos de maneira satisfatória para o empirismo se as noções que nos perturbam – como “experiência estética” e “atitude estética” – forem elucidadas em termos de seus critérios, os estados de coisas observáveis que garantem sua aplicação. Contudo, isso nos traz para uma asserção final que pode parecer tornar impossível levar a cabo o programa empirista. É a asserção de que os critérios devem ser fatos ou características publicamente observáveis: a experiência estética, e a atitude estética, por conseguinte, devem ser elucidadas primariamente em termos de sua expressão. Pode-se objetar que é provável não podermos afirmar nada ao nos aproximarmos do tema de uma maneira tão cautelosa. Com certeza, argumentar-se-á, o ponto importante é a experiência ou atitude propriamente ditas, e isso é algo independente de sua expressão, um processo interno que só pode ser descoberto por meio da introspecção. Se quisermos conhecer a natureza essencial da experiência estética, dir-se-á, deveremos embarcar numa investigação fenomenológica, descobrindo o que é a experiência em si mesma, sua “estrutura noemática” tal como ela se revela para o estudo fenomenológico.3 A plausibilidade dessa visão se reflete no fato de que as mais influentes e ambiciosas obras sobre estética fora da tradição idealista foram obras de fenomenologia, como os dois tratados de Sartre sobre a imaginação, Phénoménologie de l’Expérience Esthétique, de Mikel Dufrenne, e Das Literarische Kunstwerk, de Roman Ingarden.
A fenomenologia tenta clarificar a noção de experiência estética por meio de uma “redução fenomenológica” da própria experiência. A experiência é submetida a uma “epochê” ou “colocação entre parênteses”, o que significa que toda referência a objetos externos é excluída de sua descrição, na qual os termos devem ocorrer com sua referência comum suspensa. Adotemos ou não a extensionali- dade como condição necessária de análise – conforme empiristas contemporâneos, como Carnap, usualmente zeram –, ca claro que a busca sistemática por condições de verdade, em qualquer sen- tido que não o formal, será minada pela existência de contextos in- tencionais para os quais não possuímos regra de substituição. Logo, a redução fenomenológica, que deve inevitavelmente produzir se- melhantes contextos, será evitada neste trabalho. Além disso, há argumentos independentes que apoiam uma abordagem puramente extensional. Pois, embora se suponha que uma experiência seja “reduzida” pelo exame fenomenológico e, portanto, separada tanto de seu objeto material quanto de sua expressão externa, não pode haver descrição coerente daquilo a que se reduz. As “descrições” fenomenológicas da experiência, quando não são apenas referências disfarçadas para expressão pública, são elaboradas metáforas que não nos informam nada de definido sobre as experiências às quais se referem. Com efeito, se assumimos a verdade do famoso argumento de Wittgenstein contra a possibilidade de referência a “objetos privados” (enunciados de objetos com os quais estamos apenas de maneira contingente conectados com enunciados sobre o que é publicamente observável), então é isso o que devemos esperar. A estrutura “noemática” da experiência não é mais do que uma tradução metafórica do fato de que a experiência é essencialmente constituída por circunstâncias externas.
Decerto, a experiência estética possui “intencionalidade” e envolve um modo particular de apreensão de seu objeto. Porém, não há razão para deixar de explicar essa característica em termos de critérios que se aplicam igualmente aos casos de primeira pessoa e terceira pessoa. De fato, espero fazer várias sugestões que mostrarão como esses critérios podem ser produzidos. Suporei que nenhum significado pode ser atribuído a um termo de linguagem pública – como “experiência” –, a não ser referindo-se a critérios publicamente observáveis para sua aplicação.4 Uma vez que é impossível referir-se a “objetos privados”, segue-se que as condições de verdade de sentenças sobre experiências e outros estados mentais devem ser dadas em termos de estados de coisas publicamente observáveis. Para colocar de outra maneira: não há fatos sobre estados mentais que não sejam fatos que eu possa conhecer e observar em outro, bem como em mim mesmo. A fenomenologia na tradição de Husserl tenta um estudo aprofundado do caso da primeira pessoa, independentemente dos critérios que precisam ser invocados ao atribuir o significado de qualquer termo psicológico. Contudo, como a discussão de Wittgenstein deixa claro, não devemos tentar responder a questões como “O que é a experiência estética?” olhando para dentro de nós. Nosso conhecimento de nossas próprias experiências é imediato, baseado em nada. Por conseguinte, ele não se baseia em características das experiências pelas quais as reconhecemos pelo que são. A observação noemática da experiência não nos pode informar nada a seu respeito. Os únicos fatos sobre a experiência são fatos sobre a experiência de outros. Se tentarmos descrever as experiências estéticas unicamente em nosso próprio caso, se tentarmos descobrir características de nossas experiências que não são publicamente observáveis, e ainda assim com base nisso classificá-las em gêneros, então simplesmente vamos caracterizar nossas experiências por meio de elaboradas metáforas, ou por intermédio de alguma linguagem técnica especial (como aquela inventada por Husserl) cujo campo de referência não pode jamais ser definido.
Na investigação que se segue, portanto, só irei referir-me à fenomenologia quando isso fornecer um método conveniente para sintetizar fatos que poderiam igualmente ser enunciados em termos do que é publicamente observável. Tomarei emprestado da fenomenologia o termo “objeto estético”, mas o utilizarei somente em um sentido material, para me referir ao item (seja ou não obra de arte) que constitui o objeto material do interesse estético. No entanto, isso não sig- ni ca que estarei em desacordo com aqueles fenomenólogos (como Ingarden e Dufrenne) que sustentaram que a obra de arte e o “objeto estético” são distintos. No sentido em que o entendem, essa asserção é inteiramente verdadeira. A distinção do fenomenólogo corresponderá, pelo menos em parte, a uma distinção que efetuarei entre a obra de arte e seu caráter estético.
Isso nos traz ao fim dos pressupostos sem argumentação que regerão o método dos capítulos que se seguem. Pode ser que esses pressupostos não sejam tão óbvios para alguns como são para o autor; e pode ser que expressem somente parte da verdade. Todavia, isso não deve ser um impedimento para o leitor, uma vez que pressupostos questionáveis precisam ser feitos em todo tratado sobre estética, que é apenas um ramo da filosofia, e não a filosofia propriamente dita. Além disso, haverá algum interesse, mesmo para um filósofo que imagina que toda experiência, pelo menos em parte, é irremediavelmente “privada”, para ver até que ponto o aspecto público e observável da experiência estética pode ser descrita.
1 Treatise of Human Nature. 2. ed. Org. L. A. Selby-Bigge. Oxford, vol. I, II, 1888, p. viii. [Embora exista excelente tradução desse livro para o português (Trad. Déborah Danowski. São Paulo, Ed. da Unesp, 2009), optamos por traduzir diretamente do original. (N. T.)]
2 An Inquiry into the Original of Our Ideas of Beauty and Virtue. London, 1725, seção I, par. 13
3 Cf., por exemplo, o método desvelado em E. Husserl, Ideas. London, 1931.
Tradução: Luiz Paulo Rouanet