Atravessando o inverno com John Finnis: filosofia moral e filosofia do direito

Seminário que se inicia esta semana discute a obra do filósofo do direito John Finnis

por Ana Luíza Rodrigues Braga

Para grande parte dos estudantes de direito, a expressão direito natural apresenta-se como uma reminiscência de um tempo distante, no qual, alheios aos avanços científicos da Era Moderna, os homens explicavam os fenômenos que experienciavam a partir de causas divinas. Nesse tempo distante, o direito extraía a sua legitimidade de um locus exterior e o ordenamento jurídico deveria se contentar em ser um simples reflexo de uma ordem normativa superior e absoluta. Em um tal cenário, os juristas deveriam ser reconduzidos a uma análise sobre os valores morais universais e transcendentais, que orientariam os assuntos humanos, e deveriam extrair diretamente daí a prática jurídica.

Essa descrição do direito natural, em grande medida atribuída ao ensinamento de Hans Kelsen – filósofo expoente do positivismo jurídico com imensa popularidade nas faculdades de direito do mundo romano-germânico – parece despojar o direito de todo o seu caráter técnico-formal e foi responsável criar que uma aura de obscuridade que afastou muitas pessoas do estudo do direito natural. Afinal de contas, em um mundo em que as divergências morais e disparidades culturais são tão visíveis, como confiar em um ordenamento jurídico submetido exclusivamente à moral? As autoridades, nesse caso, estariam autorizadas a invalidar uma lei positiva que elas julgassem estar em conflito com a moralidade? E por qual razão seriam as autoridades públicas, como os juízes, os mais competentes a alcançar e indicar os valores morais aos quais o nosso ordenamento jurídico deveria se conformar? No contexto de tal descrição, o positivismo jurídico aparece como a única saída contra o totalitarismo estatal e o direito natural assume uma forma caricaturada e utópica. Afinal, como afirma Hans Kelsen: “o julgamento de que uma conduta humana ou uma instituição social são ‘naturais’ significa, na verdade, apenas que essa conduta ou essa instituição social estão em conformidade com uma norma pressuposta, fundamentada em um juízo de valor subjetivo do autor particular que está afirmando uma doutrina de direito natural”.[i]

Ora, um amplo e rico espectro de estudo do direito natural fica em segundo plano quando se parte dessa descrição feita por Hans Kelsen, a qual não é apenas reducionista, mas profundamente equivocada. O resgate de um debate rico e esclarecido sobre o direito natural devemos, em grande parte, ao australiano John Mitchell Finnis, engajado ainda hoje em desfazer equívocos de compreensão e revelar a grandeza da tradição jusnaturalista. Finnis foi o responsável por recolocar o jusnaturalismo na rota da filosofia do direito, não apenas por reconciliar com muita sensibilidade os métodos aristotélicos com a identidade moderna– para utilizar um terminologia de Charles Taylor –, mas também em virtude do ambiente acadêmico em que estava inserido: vindo da Austrália, Finnis chegou à Universidade de Oxford no início dos anos 1960 e teve como orientador de doutorado o jusfilósofo Herbert Hart, cuja expressividade no positivismo jurídico anglo-saxão pode ser comparada com aquela que teve Hans Kelsen no mundo continental.[ii]

Finnis firmou com Hart um profícuo e duradouro diálogo, em grande medida crítico, e deve a ele, bem como ao contexto intelectual de Oxford, o seu modo analítico de fazer filosofia. Foi o próprio Hart, aliás, quem solicitou a Finnis que escrevesse Lei Natural e Direitos Naturais, considerada a grande obra de apresentação de seu pensamento. Embora as teses defendidas em Lei Natural e Direitos Naturaistenham passado por atualizações ao longo dos anos, esse livro, cujo título foi sugerido pelo próprio Hart, permanece como a grande porta de entrada para o pensamento de John Finnis.

A respeito das relações entre direito natural e positivismo, apresentada de maneira tão caricatural por Hans Kelsen, eu diria que Finnis é um grande desfazedor de nós. Em primeiro lugar, ele ressalta o caráter autônomo do direito em relação à moral e afirma expressamente que “não existe uma conexão necessária entre leis positivas e moral”, pois há, de fato, “leis positivas que são imorais”[iii]. Tomás de Aquino e Aristóteles, grandes representantes do jusnaturalismo, nunca negaram isso e são precisamente esses pensadores que constituem o terreno firme sobre o qual repousa a teoria de Finnis. A existência de uma ordem moral relevante não impede que reconheçamos o direito como um “artifício e um artefato humano”, ao invés de “uma conclusão de premissas morais”[iv], como Hans Kelsen faz parecer que o direito natural defende.

Com isso, o direito natural respeita o critério formal de validade conferida pelo positivismo jurídico, ao mesmo tempo em que reafirma que o reconhecimento de sua positividade (seja por juízes, por cidadãos ou por acadêmicos) não pode ser entendida sem uma compreensão dos princípios morais que fundamentam e confirmam a sua autoridade. Afinal de contas, as razões que as pessoas possuem para estabelecer, manter, restaurar e reformar sistemas legais incluem razões morais – algo que Hart identificou, ainda que muito timidamente, em sua abordagem do direito.

Como explica Finnis, as teorias do direito que defendem a ausência de qualquer critério moral que dê fundamento ao ordenamento jurídico resultam em uma visão do direito enquanto simples representação da vontade da autoridade, como Hans Kelsen terminou por concluir na sua obra póstuma Teoria Geral das Normas. Uma tal conclusão sobre a natureza do direito, fundada naquilo o que usualmente se chama de voluntarismo, empobrece descritivamente a prática jurídica e a reduz a uma dinâmica de imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco.

Mas, afinal de contas, se Finnis não acredita que a simples vontade é suficiente para justificar razoavelmente as nossas deliberações, inclusive de tipo jurídico, o que nos motiva a agir? O primeiro passo para responder a essa pergunta está, evidentemente, no uso da razão. Ao enxergar os seres humanos como racionais e, por isso, distintos de todos os demais animais, Finnis, nos ombros de jusnaturalistas clássicos como Platão, dá um passo importante no sentido de refutar o argumento cético de que viver naturalmente significa perseguir implacavelmente desejos de poder e outras satisfações físicas. Uma vida pautada na satisfação de nossos instintos animalescos não obedece à lei natural, já que não obedece à razoabilidade prática.

No entanto, a razão sozinha não é capaz de nos dar respostas satisfatórias sobre como devemos agir. Isso porque, argumenta Finnis, a racionalidade torna-se completamente sem sentido quando não sabemos quais fins devemos perseguir através do seu uso: se, por meio do uso da razão, eu não posso almejar o meu aprimoramento pessoal ou da comunidade na qual estou inserido, qual o sentido de formular uma lei moral racional? Esse é o problema tradicionalmente identificado em Kant, que, na interpretação dada por Finnis, reduz a nossa humanidade a simples racionalidade – uma racionalidade, contudo, sem qualquer conteúdo ou propósito.[v]

Sendo assim, Finnis dá um segundo passo para responder à pergunta formulada acima e atesta que o ser humano é uma realidade complexa e multifacetada, sujeito não apenas a exigências biológicas, tampouco a exigências exclusivamente racionais. O nosso bem-estar não depende apenas de demandas físicas, mas também de demandas intelectuais, espirituais e sociais, que se revelam como bens básicos necessários à completude humana – a já conhecida ideia clássica de human flourishing. Daí decorre uma concepção de moralidade consistente na busca pelos bens humanos básicos através do exercício da razão.

Nesse contexto, diz Finnis, o grande problema do positivismo – nas versões sofisticadas e suavizadas de Hart e Raz – seria precisamente o de ignorar que o direito, assim como qualquer ação humana, é movido pelo alcance de bens humanos fundamentais. A autoridade do Estado, como Finnis coloca, deve ser vista como uma instância ética, que somente detém legitimidade na medida em que seja razoável. Trata-se da exigência da razoabilidade prática pública, que enxerga “a natureza da comunidade jurídica” como a “natureza de um indivíduo humano em ‘grande escala’ – e vice-versa”[vi].

Sendo assim, é evidente que não foi apenas no direito que as ideias finnisianas tiveram um impacto relevante. Falando especialmente no âmbito da filosofia moral, a concepção de moralidade de John Finnis consiste em uma reação a diversas correntes modernas e contemporâneas, que podem ser separadas em dois grandes grupos: de um lado, o subjetivismo e o relativismo; de outro lado, o utilitarismo.

O primeiro desses grupos, a despeito das peculiaridades das teorias que o compõem, tem como traço distintivo a ideia de que a caracterização de uma ação ou uma prática como boao u depende, em última instância, daquilo o que uma particular cultura ou indivíduo pensam e vivenciam a seu respeito. Essas correntes minam qualquer pretensão de objetividade moral, já que afirmam a impossibilidade de um ponto de vista superior pelo qual possamos julgar moralmente uma determinada prática.

Por sua vez, o utilitarismo e suas diferentes variantes pretende ser uma concepção de moralidade bastante objetiva, mas seu problema está precisamente no tipo de objetividade que busca. Dito de maneira geral, a concepção utilitarista de moralidade tem como princípio norteador a busca pela felicidade para o maior número de pessoas – e felicidade, aqui, significa vivência do prazer e ausência de dor. Sendo assim, saber se uma ação é moralmente correta ou errada depende de um cálculo empírico de amplificação desse bem-estar geral. Para o utilitarismo, todas as dificuldades envolvidas na moral passam a ser questão de limitações técnicas, que, se bem dominadas, oferecem um grau de objetividade moral indiscutível. Ignoram-se, com isso, relações e obrigações especiais que as pessoas têm entre si, além de não dar lugar à reflexão a respeito da ilegitimidade de determinadas preferências pessoais, bem como no fato curioso, certamente experienciado por muitos de nós, de que a felicidade muitas vezes é encontrada no sofrimento sacrificial pelo outro.

Nesse contexto, o grande mérito de Finnis está precisamente em ter desenvolvido uma teoria da moralidade que reafirma a possibilidade de se chegar racionalmente a verdades morais partindo de uma matéria-prima humana e bastante objetiva, consistente em nossas experiências e necessidades enquanto seres humanos complexos. Como uma reação ao subjetivismo e o relativismo, o direito natural de Finnis não ignora a forma pela qual os homens de fatose engajam em suas discussões morais, defendendo posições por considerar que elas apresentam razões pertinentes; como uma reação ao utilitarismo, sua teoria não demanda da razão prática um tipo de raciocínio que, além de estar normalmente ausente nas decisões que tomamos cotidianamente, requer que abandonemos nossas relações pessoais e convicções morais mais profundas em prol de um complexo cálculo cujo critério (felicidade) é em si mesmo extremamente controverso.

Ao elencar bens e princípios que devem orientar a tomada de decisões racionais a respeito de como se deve agir e ao fazer incidir sobre esses bens o uso da razão, Finnis apresenta-nos uma grande contribuição ao debate contemporâneo sobre a seleção dos princípios políticos que devemos perseguir, bem como sobre o desenho apropriado para o funcionamento saudável de nossas instituições políticas e jurídicas.[vii]Como explica Robert P. George, talvez o mais notável discípulo de Finnis nos Estados Unidos: “Foi a reflexão sobre o mundo […] que levou John Finnis a concluir que existem mais coisas a serem entendidas do que aquelas que podem ser imediatamente apreendidas pelos sentidos ou explicada por pesquisas empíricas e análise técnica.”[viii]

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Precisamente por acreditar que a sensatez de Finnis é algo de que precisamos no nosso tempo, marcado, de um lado, por um subjetivismo que nos isola e, de outro, por uma mentalidade tecnocrática que não alcança a complexidade das demandas humanas, o recém-fundado Instituto Ives Gandra de Direito, Filosofia e Economia e o CEU Law School promoverão o seu I Seminário de Inverno sobre o tema da “Filosofia Moral e Filosofia do Direito em John Finnis”, nos dias 30 e 31 de julho.  O Instituto Ives Gandra propõe-se a fomentar a formação acadêmica e humana para além das iniciativas de pesquisa já existentes dentro de instituições de ensino superior, que muitas vezes não conseguem abarcar toda a amplitude das discussões morais, jurídicas e econômicas. O CEU Law School, por sua vez, é uma instituição que conta com 45 anos de história, e cuja missão é formar profissionais de excelência e sensibilidade humanística, desenvolvendo, através de seus programas de ensino, a formação de profissionais capazes de exercer liderança e prestar serviço jurídico de excelência.

O modelo do Seminário de Inverno foi extraído da experiência de participação em seminários de estudo e pesquisa que ocorrem sazonalmente em instituições de ensino e pesquisa mundo afora, especialmente nos Estados Unidos, e pretende ser um espaço de amplo diálogo, tanto entre os expositores, como entre o público presente. O Seminário contará com a presença de vinte renomados professores de Direito e Filosofia vindos de diversas partes do país, comprometidos com o debate rigoroso de temas diversos dentro obra de Finnis, especialmente aqueles apresentados no livro Lei Natural e Direitos Naturais.

O grande mérito do Seminário de Inverno, acredito, será congregar as mais diversas formas de pensar a obra finnisiana: alguns dos professores são críticos, alguns são discípulos, embora todos sejam admiradores do trabalho minucioso e clarificador realizado por Finnis sobre a ética e o direito.

Ana Luiza Rodrigues Braga é mestre e doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade São Judas. Professora da Filosofia do Direito do CEU Law School.

[i]KELSEN, Hans. A doutrina do direito natural perante o tribunal da ciência. In: KELSEN, Hans. O que é justiça?São Paulo Martins Fontes, 2001, p. 152.

[ii]As diferenças de abordagem do positivismo de Hart e Kelsen são bastante grandes, mas não as destrincharei isso aqui. A esse respeito, vide: MACEDO JUNIOR, Ronaldo. Do xadrez à cortesia:Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013.

[iii]FINNIS, John. The Truth in Legal Positivism. In: FINNIS, John. Collected Essays, v. 4. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 183.

[iv]Id., Ibid., p. 186.

[v]FINNIS, John. A Grand Tour of Legal Theory. In: FINNIS, John. Collected Essays, v. 4. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 97.

[vi]Id., Ibid., p. 93.

[vii]P. GEORGE, Robert. Conscience and its Enemies:Confronting the Dogmas of Liberal Secularism. Wilmigton: ISI Books, p. 275.

[viii]Id., Ibid., p. 276.

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