por Rodrigo de Lemos
“Elite” é um termo escorregadio que se comporta como Proteu, assumindo todas as formas para não se deixar apreender. Agora, ele se apresenta como um ajudante-de-campo de populistas à direita após haver servido fielmente na infantaria da nova esquerda e nos seus combates por inclusão e por igualdade. A reviravolta é dramática e exige explicações.
O vazio da palavra é em si mesmo propício a esse tipo de conversão diametral. Trata-se de um termo vago o suficiente para traduzir uma percepção, forçosamente subjetiva e emocional: a de que um grupo minoritário foi escolhido (a palavra vem do francês élire: eleger, escolher) para gozar tanto da prerrogativa de dar o tom a uma coletividade quanto de privilégios mais ou menos indevidos. É significativo que, em sua crítica às iniquidades, a esquerda em sua versão marxista – a qual aspirava a um status científico por meio de uma certa tecnicidade lexical – tenha frequentemente evadido o termo em prol de expressões como “classe dominante”. Como isso, ela designava aqueles que têm acesso à parte leonina do poder em uma dada sociedade a partir de um critério talvez redutor, mas preciso: a posse dos meios de produção.
Como de hábito para compreender muitos dos caminhos da esquerda contemporânea, bem como da nossa sociedade em geral, é preciso voltar aos anos que cercam 68, de modo a examinar a forma pela qual a imprecisão do termo “elite” veio a destronar a antiga “classe dominante” enquanto palavra curinga da teoria crítica. A obra de Pierre Bourdieu não teria participado dessa virada? Ainda nos anos 50, a palavra “elite” podia ser entendida no sentido que lhe dava o sociólogo Wright Mills, o de uma “elite do poder” compreendendo os líderes dos establishments político, corporativo e militar que ditavam os rumos de uma sociedade americana em que os cidadãos comuns (ou seja, todas as outras classes) eram peões mais ou menos passivos.
Ora, o bourdieusismo dos anos 60 estirou o campo de análise das desigualdades, tradicionalmente situadas no terreno político e econômico, em direção à cultura. Os elementos dominantes de uma sociedade não eram mais simplesmente os donos do meios de produção, nem os chefes militares e políticos; antes, eram definidos pelo jogo complexo entre o capital econômico, já analisado classicamente por outros autores, e o que veio a ser chamado de capital social (“quem você conhece?”) e cultural (“o que vê? ou que ouve? onde viaja?”). O bourdieusismo tornou-se uma das correntes dominantes da sociologia nos anos pós-68 e campeia de sucesso em sucesso. São esses três capitais que a BBC, a Universidade de Manchester e a London School of Economics escolheram recentemente para expandir o retrato da diferenciação social britânica das três classes tradicionais (alta, média e baixa) para sete estratos, a partir de perguntas referentes, entre outras, ao gosto por música clássica ou às profissões comuns no meio social do entrevistado.
Esse movimento se fez acompanhar do esgarçamento do próprio conceito de elite. O marxismo, sobretudo em sua Vulgata, jamais conceberia as profissões superiores – advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores universitários – como os elementos dominantes de uma sociedade: seus membros constituiriam, no máximo, a chamada classe média, formada pelas peças dos “aparelhos ideológicos” legitimadores do poder de uma classe dominante – poder do qual esses profissionais por certo se beneficiam, mas que em absoluto não lhes pertence. À medida que, a partir dos anos 60, as lutas sociais se estenderam a campos mais rarefeitos da sociedade – comportamentais, culturais -, também a concepção do poder se tornou menos dura em comparação àquela que podia ser a de Mills. com seus líderes corporativos e políticos. Essas profissões, que exigem uma certa escolaridade e uma certa carta de relacionamentos, surgiram assim como suspeitas de privilégios aos olhos de um progressismo ávido por atacar a suposta homogeneidade de origens e de etnia entre essas minorias sobre-diplomadas, de maneira a abrir seus flancos aos excluídos.
Se esse movimento se inicia na esquerda, a direita populista e o conservadorismo religioso hoje o encamparam, reiterando a substituição da díade despossuídos e classe dominante (protagonistas da luta de classe) pelo combate do povo contra as elites. Para isso, essas correntes se reivindicam surpreendentemente do mesmo Bourdieu. É isso que faz o cientista político Darel E. Paul na publicação conservadora católica First Things, em um artigo intitulado “Guerras culturais como guerras de classe”. Darel E Paul apela explicitamente ao nome do sociólogo francês outrora responsável por um renascer teórico da esquerda mais crítica, valendo-se ao mesmo tempo de uma noção de elite fluida o suficiente para afirmar que “o reitor de uma universidade de elite pode ser menos rico que um banqueiro ou um empreendedor, mas em várias circunstâncias, ele tem muito mais influência”. É como se a decisão do reitor dependesse de uma vontade monocrática, e não de uma causalidade complexa em que entram desmesuradamente os membros da velha elite do poder, os quais lhe asseguram (ou não) fundos e uma base jurídico-política delimitante de sua possibilidade de ação.
Finalmente, Darel Paul apropria-se até mesmo do mecanismo de distinção estudado por Bourdieu para sustentar que simpatias por igualdade de gênero ou pelo casamento gay não seriam nada além de um esnobismo da Ivy League, uma versão modernizada do talher de prata vitoriano. O vínculo estrito entre liberalismo, sobretudo de costumes, e elitismo parece obsessional nessa família ideológica; Darel Paul é também autor de um livro denominado significativamente Da tolerância à igualdade: Como as elites trouxeram à América o casamento homossexual, e a própria First Things já publicara há quatro anos outro artigo chamado “O Projeto de elite do casamento gay”.
É claro que uma análise como a de Darel Paul não sobrevive ao escrutínio racional. A distinção bourdieusiana pela cultura funciona como um mecanismo de exclusão (ir ao museu é tão mais distintivo quanto menos pessoas de outros grupos sociais vão ao museu). Não é o caso do discurso em favor da igualdade de gênero, de raça e de orientação sexual, portador de uma vocação universalista que tem por intuito “não deixar ninguém de fora”. A irritação das supostas elites quanto às classes menos diplomadas é em parte a de percebê-las mais refratárias do que o desejável a esse imperativo de uma igualdade mínima.
Bem entendido, sutilezas desse tipo não bastam a dissuadir esse uso elástico do termo “elite”. Ele convém em mais de uma forma ao conservadorismo religioso, ao despir reivindicações igualitárias de qualquer crítica anticapitalista: os inimigos do povo não são mais banqueiros e empresários, denunciados tradicionalmente pela esquerda como os principais beneficiários das injustiças na regra jogo, mas o jornalista ou o acadêmico progressistas, paradoxalmente engolfados pela mesma precarização que engole também as profissões menos qualificadas. No mesmo sentido, a imagem de uma elite expandida serve a uma revanche, ao canalizar a indignação popular contra os intelectuais seculares que, como mostra Darel Paul, sobrepujaram os conservadores religiosos nas próprias instituições universitárias fundadas por esses últimos. Por fim, ela alimenta o tonel sem fundo da política do ressentimento, inflamando o populismo de direita ao designar os culpados fáceis pela perda de status do homem branco sem credenciais na economia do conhecimento. Fatores assim devem contribuir a explicar a ironia flaubertiana da nossa época, a de que personagens como Donald Trump, membro típico da elite do business com sólidos laços em Washington, ou como Jair Bolsonaro, militar corporativista ávido pelo beneplácito de banqueiros e do establishment empresarial, surjam como figuras por excelência da revolta contra as elites.