por Felipe Pimentel
A ideia central no célebre O Príncipe, de Maquiavel, consiste na separação entre a esfera política e a esfera moral. É uma noção conhecida, ainda que mal compreendida. Por certo, afirmar que o “melhor” governante não necessariamente é um homem moralmente “bom” abre margem para a interpretação do senso comum de que “maquiavélico” é uma pessoa perigosa. Porém a tese de Maquiavel não é moralista, busca somente afirmar que a moral pertence a um campo distinto da política.
Poderíamos desmembrar, desenvolver e atualizar essa ideia até a compreensão de que a moral pertenceria à esfera privada, e a política à esfera pública. Quer dizer, a moral concerne aos nossos afetos, às nossas relações pessoais, aos valores que regem nossas escolhas pessoais e familiares; ao passo que a política diz respeito às regras (consumadas em leis) que determinam nosso comportamento como cidadãos, perante a comunidade e perante o Estado.
É uma distinção simples, clara e fundamental. O Estado não pode, nem deve interferir em nossa vida privada e em nossos valores morais. Todos os regimes que assim o fizeram foram desastrosos, para dizer o mínimo. A confusão da equação público-privado, a intromissão do governo na privacidade dos indivíduos, a crença de que o Estado pode disseminar valores morais e exigir adequação a eles são as características mais marcantes dos totalitarismos, dos mais comedidos aos mais tenebrosos. Foi assim no nazismo, foi assim no stalinismo. A percepção de Stálin de que determinado camarada não seguia as regras do “novo homem socialista” em sua vida particular ou a definição hitlerista do que era um “verdadeiro alemão” em sua intimidade são as piores demonstrações disso. Por certo, essa mentalidade não emergiu à toa: brotou em terreno fértil, a saber, numa população que há tempos confundira moral com política. Explico.
Tanto na Alemanha nazista, quanto na URSS dos anos 1930 e 1940, estava disseminada nas comunidades uma visão catastrófica sobre o laço social, que era atestada cotidianamente nas ações das pessoas, seja na sua vida privada, seja na sua vida comunitária. Um pai libertino em Munique ou uma judia ortodoxa em Leningrado eram exemplos de pessoas perigosas, inconfiáveis. O verdadeiro pai alemão deveria ser firme, hierárquico e autoritativo. A verdadeira mulher socialista deveria abandonar as práticas religiosas que obscureciam a função do regime soviético. E, assim, ao longo de algumas poucas gerações, uma criança denunciava o pai “fraco” ao conselho escolar, que levava a denúncia adiante às SS; um marido denunciava a esposa ao Politburo, que a encaminhava para a Sibéria.
Não creio (ou não quero crer) que nazismo e stalinismo nos ameacem, no Brasil e ou em qualquer parte do mundo. Mas isso não significa que pequenos totalitarismos, surtos ou escaladas de violência, práticas agressivas cotidianas, retiradas e retrocessos de direitos não aconteçam. Não precisamos jogar o exemplo nas alturas para nos aliviar. O cenário nacional e mundial não é pacífico, nem convidativo. Por quê?
Tomemos o caso brasileiro como exemplo. Há pouco tempo, discutíamos política; vagamente, mas discutíamos. Os debates estavam travados entre a privatização de empresas públicas; a validade das ações afirmativas (cotas); a efetividade, alcance ou extensão das políticas assistencialistas; a independência do Banco Central em relação ao Ministério da Fazenda; a taxa de juros e a inflação. Mesmo na (já acirrada e estranha) eleição de 2014, esses eram os temas predominantes. Serão esses os temas em questão em 2018?
Não. Os debates se anunciam todos morais. E a razão para isso é que na sociedade os debates outrora políticos travestiram-se em debates morais. Não se trata mais do casamento gay (ou da união civil homoafetiva), mas da homossexualidade em si. Não se trata do incentivo à produção artística, mas da arte “a serviço da pedofilia”. Lentamente, houve um deslocamento semântico da política para a moral. E as coisas obviamente se complicaram.
Pois quando eu defendo uma determinada pauta política, o meu envolvimento com essa “causa” está ligado à racionalidade (longinquamente amparado numa inclinação emocional) e ao melhor gerenciamento da máquina pública – ela é uma questão que me atinge, de forma mais ou menos direta, mas não ameaça a minha existência como indivíduo. Quando eu estou lidando com uma suposta pauta de pedofilia no mundo, todo o cenário muda: são os meus valores, a minha família, os meus filhos que estão envolvidos. Quando eu creio que há uma pauta para curar os homossexuais, é minha vida privada que está em risco. O envolvimento emocional com tais questões é visceral – flanco aberto para o descalabro social e político.
Não estou afirmando que essas pautas existem de verdade ou não. Só estou diagnosticando o estado de coisas: as pessoas estão tomando a situação assim, e estou alertando que isso possui, histórica e psicologicamente, um mau prognóstico.
Nada disso seria problemático se possuíssemos instituições estáveis e confiáveis – o que não é o caso. Atribuir uma dimensão moral às pautas políticas em um ambiente de instabilidade institucional é um prato cheio para que grupos realmente comecem a disseminar tais pautas – ainda que elas originalmente fossem mais fantasias e paranoias do que realidades.
Faltaria uma explicação: por que isso aconteceu? Ora, os fatos recentes já nos dão alguma dica. Quando artistas (vejam bem, artistas) boicotam um festival de cinema porque um filme fala sobre um filósofo cujas ideias divergem do mainstream, ou quando grupos assinam uma petição impedindo uma outra filósofa de falar, isto é obviamente um jogo de espelhos. Mas vamos além: se trafegássemos somente no terreno político e as noções de democracia estivessem internalizadas, um filme ou uma palestra não poderiam ser impedidas. Mas se eu travisto as pautas políticas em morais, eu ganho o trunfo que necessitava: “vejam bem, não é contra a liberdade de expressão, é que esse(a) filósofo (a) está a serviço de… (complete com o moralismo de cada caso)”
No fim das contas, a moralização das pautas políticas não passa de cortina de fumaça para a intolerância e o autoritarismo.
Leia mais:
Especial Liberdade – O politicamente correto é uma ameaça à liberdade?