Coluna ANPOF: A condição kafkiana da atualidade

"Quase sempre turvados por uma sombra ambígua e desfiguradora, própria dos sótãos e corredores sem saída nos quais vivem, os personagens kafkianos assistem paulatinamente ao esfarelamento de seu próprio eu, ao declínio de sua consciência. Como nós, esses personagens de Kafka assistem ao processo de desmoronamento daquilo que desde sempre se lhes apresentou como fora de todo questionamento: a veracidade dos fatos. Nossos jornalistas, cientistas e intelectuais não estão, pois, num romance kafkiano?" Confira o ensaio de Ulisses Razzante Vaccari sobre nossa condição kafkiana. Uma parceria do Estado da Arte com a ANPOF.

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Este ensaio é fruto de uma parceria do Estado da Arte com a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. hoje, trazemos um ensaio do Prof. Ullisses Razzante Vaccari...

A condição kafkiana da atualidade

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por Ulisses Razzante Vaccari

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Parece não restar dúvidas de que as redes sociais ocasionaram transformações no plano das relações humanas e, em especial, no mundo político. Ao mesmo tempo em que as redes passaram a desempenhar um papel preponderante nas eleições presidenciais, os políticos, hoje, fazem política principalmente por seus meios.

A relação entre política e meios de comunicação não é nova na história. Hitler, em 1935, fez uso do cinema visando construir sua imagem de salvador da pátria, como ficou registrado em O triunfo da vontade, da cineasta alemã Leni Riefenstahl.

Leni Riefenstahl, equipe e Heinrich Himmler

Em sua escalada ao poder, Hitler e seus asseclas compreenderam logo que o ministério da propaganda seria um dos pilares do Terceiro Reich, responsável por levar a cabo a chamada “estetização da política”. Ao ministério coube de fato a tarefa de revestir a ideologia nazista com carregado verniz estético, visando ludibriar e conquistar uma população miserável e humilhada.

A escalada do nazismo ao poder foi assim propiciada pela apropriação dos meios técnicos de reprodução, usados para lançar ao vento imagens apoteóticas e redentoras do Führer. Foi por esse motivo que intelectuais marxistas mostraram que a luta contra o nazi-fascismo deveria passar pela conquista não apenas dos meios de produção, mas também dos de reprodução. Todo regime totalitário, afinal, se beneficia das relações espúrias entre estética e política, como sói havia ocorrido no Império Romano, emulado pelos nazistas.

Fundamental na Alemanha de 1930, tais relações reaparecem hoje em dia, embora com outra roupagem. O cinema, o rádio, o jornal impresso e a televisão foram substituídos pelas redes sociais, o que significou um aumento vertiginoso da capacidade de produção e reprodução da imagem e da informação.

Essa transformação, porém, não se resume apenas à quantidade e à velocidade com as quais a informação passa a ser reproduzida, mas também ao modo como sua qualidade é atingida com essa transformação. Se, por um lado, o formato das redes permite replicar com um simples clique reportagens e artigos de grandes jornais, por outro, esse replique por si mesmo parece contribuir para o processo de erosão do solo onde cresce toda comunicabilidade. Em vez de propiciar a construção de debates mais ou menos aprofundados sobre determinados temas, o formato antes parece apenas atiçar a fome narcísica do usuário em sua busca interminável por likes e seguidores.

Ultimamente muito se tem debatido sobre o papel desempenhado pelas redes sociais nas últimas campanhas presidenciais. Há um consenso de que esse novo aparato tecnológico determinou o destino de eleições recentes, tendo se revelado extremamente eficaz na condução de outsiders aos postos políticos mais importantes do planeta, figuras em geral estranhas aos sistemas políticos tradicionais, de caráter democrático-republicano.

Donald Trump (Reprodução: AP)

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Como em 1935, criou-se a imagem, igualmente eivada de teocracia, de que os sistemas políticos estavam corroídos e degradados e que somente o enviado dos céus, que calhou ser o candidato do momento, seria capaz de salvar a nação das forças do mal que fizeram brotar a corrupção moral no interior das instituições políticas.

O sucesso dessa empreitada passa necessariamente pelo processo de ressignificação da relação de poder sobre a informação, propiciada pelas redes sociais. Estas, ao mesmo tempo em que retiram esse poder das mãos da grande mídia e dos grandes meios de comunicação, entregam-no ao indivíduo, mesmo que apenas em aparência. Com isso, elas criam a sensação generalizada de que qualquer um, no conforto de sua casa, tem uma ação direta sobre a verdade e os fatos, sem precisar se incomodar em comprová-los e verificá-los, como fazem o jornalista e o cientista.

O resultado desse processo foi a inundação de falsas informações que ameaçou a existência da própria mídia e da ciência, levando a política e os meios de comunicação a um estado kafkiano, em que passou a predominar não a transparência e a confiabilidade das relações, mas o desvio e o desengano. Como se estivéssemos vivendo em um romance de Kafka, sentimos hoje em dia a mesma falta de ar que seus personagens, a vagar sem rumo, desorientados por um mecanismo cujo objetivo é pura e simplesmente difundir a desinformação.

Quase sempre turvados por uma sombra ambígua e desfiguradora, própria dos sótãos e corredores sem saída nos quais vivem, os personagens kafkianos assistem paulatinamente ao esfarelamento de seu próprio eu, ao declínio de sua consciência. Esse processo sombrio, longe de ser mero estado onírico, descreve com um realismo insuportável a regressão de um mundo baseado em princípios sólidos a outro tomado pela sombra e pelo indeterminado.

Como nós, esses personagens de Kafka assistem ao processo de desmoronamento daquilo que desde sempre se lhes apresentou como fora de todo questionamento: a veracidade dos fatos. Nossos jornalistas, cientistas e intelectuais não estão, pois, num romance kafkiano, vivendo a mesma luta debalde que seus personagens ao precisarem retornar à tarefa de provar que a terra é redonda?

Franz Kafka

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Como nos romances de Kafka, também hoje nos vemos subitamente enredados num círculo vicioso — de caráter mítico —, vivendo na pele o sofrimento infinito do Sísifo da mitologia grega, de ter de empurrar uma enorme pedra ao cume do monte durante o dia, para, à noite, vê-la rolar sempre novamente morro abaixo. Quanto mais nos apegamos ao bom-senso e ao entendimento para resolver o enigma que vimos (res)surgir diante de nós, mais nonsense ele se nos revela no fim do dia.

Como nos tempos de Kafka, também hoje a pergunta mais filosófica de todas — “O que é a verdade?” — mostra-se necessária e urgente, sobretudo nessa época batizada pela própria imprensa de “era da pós-verdade”. Pomposo, esse título procura, em vão, definir em conceitos o elemento no qual se movem os romances de Kafka: o grotesco. Em oposição ao belo, o grotesco é justamente aquilo que, por ser tão diferente dos padrões com os quais estamos acostumados, nos causa asco e aversão. Mas que outro sentimento poderíamos afinal experimentar diante do espetáculo de degradação da verdade — portanto, da própria condição de possibilidade das instituições republicanas?

Conspurcada das mãos do cientista (e da imprensa), a verdade, neste nosso mundo kafkiano, passou a se confundir com convicções pessoais e opiniões, pois, sem saber que faz parte de um complexo sistema produtor de aparências, o indivíduo, com seu clique aparentemente inócuo, reproduz informações sem lastro, anulando assim sua liberdade, como um mero joguete do destino.

E tudo isso visando àquele júbilo efêmero proporcionado pelo clique e seguido pelo like; e tudo isso para fugir ao tédio, entregando-se à promessa mefistofélica da felicidade imediata. Mal sabe ele que, ao fazê-lo, reduz-se à condição de mera engrenagem de um mecanismo cuja função é apenas manter-se funcionando, pura e simplesmente. Eis por que, em Kafka, personagens carecem de nome próprio, sendo designados apenas por iniciais que denunciam sua condição indigente.

Incapazes de pôr um fim nesse círculo vicioso, os personagens, de antes como agora, consomem-se num cansaço cósmico, sentindo todo o peso da rocha de Sísifo carregada por tanto tempo. Mas, assim como a muralha da China no conto homônimo de Kafka, também esse sistema aparentemente inquebrantável possui falhas: pois mesmo a mais rigorosa lógica já fabricada revelará um dia, num ato falho, aquele salto inconsciente, por mais imperceptível que seja, por mais que se trabalhe incansavelmente para manter viva a aparência de que o círculo é inquebrantável e que o destino é implacável.

Ao se tomar consciência do caráter meramente aparente dessa concepção, o caminho em direção à libertação encontra-se percorrido em sua maior parte: o trabalho mais árduo consiste em evidenciar o embaralhamento ideológico entre essência e aparência. E é aqui que se situa a literatura de Kafka.

Devido ao seu caráter alegórico, as histórias de Kafka foram erroneamente lidas ao longo dos tempos como simples metáforas de situações terríveis, ou mesmo como meras descrições de estados oníricos, ou psicológicos, que nada tinham que ver com a realidade. Tivessem sido interpretadas não como imagens, mas como o próprio real, talvez tivéssemos desenvolvido a capacidade de não trocar indistintamente um pelo outro, como, ao que parece, estamos fazendo agora.

Ao comentar um de seus contos, Walter Benjamin afirmou que Kafka foi profético. Seus escritos, segundo ele, não falam apenas do passado, mas projetam sua luz profeticamente em direção ao futuro. Lá dos idos da segunda década do século XX, os escritos de Kafka nos iluminam aqui e agora, quase cem anos depois, ao mostrar toda a força centrípeta daquele círculo mítico que, a despeito do passar dos anos, insiste em girar sobre seu próprio eixo e nos sugar em direção a seu centro.

Chamar a atenção para isso e mostrar sua ameaça eterna — eis a grande contribuição que nos legou a literatura de Kafka.

Placa no local de nascimento de Kafka em Prague, de Karel Hladík e Jan Kaplický, 1966

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