por Andrea Faggion
Fazemos política quando precisamos agir em conjunto, porém, discordamos sobre o que devemos fazer, ou, ao menos, é isso que pensa Jeremy Waldron. Immanuel Kant, há muito mais tempo, teve um insight similar ao destacar a importância para a política do fato da Terra ser esférica, em vez de um plano infinito, pois, fosse ela um plano infinito, poderíamos nos afastar uns dos outros indefinidamente, sem qualquer necessidade de lidarmos com quem discordamos. Antes ainda de Kant, Thomas Hobbes praticamente inaugurou o pensamento político moderno ao pensar a condição civil como a instauração de um parâmetro público para resolvermos diferenças de opinião irreconciliáveis por si mesmas. O que esses filósofos querem nos ensinar, em suma, é que só há política, porque há conflito, e um conflito do qual não conseguimos fugir. Ou resolvemos esse conflito politicamente… ou nos matamos.
Agora, resolver conflitos politicamente não é o mesmo que descobrir a solução correta para cada um deles. Se pensamos assim, voltamos ao próprio motivo do conflito, que é o fato de cada um acreditar-se detentor da resposta correta para cada problema prático, sem dispor, porém, da possibilidade de demonstrar a correção de sua resposta para todos os demais. Como diz Waldron, pode até existir mesmo uma única resposta objetivamente correta para cada uma das divergências que possam surgir entre nós, mas não existe uma metodologia compartilhada por nós que nos permita provar a todos qual seria essa resposta. Afinal, divergimos até sobre os testes pelos quais cada proposta deveria passar para ser selecionada como a melhor dentre todas as possíveis concorrentes à solução de um problema.
Dado esse cenário, há liberais, como o próprio Waldron, que pensam a política como a criação de mecanismos artificiais para convivermos em meio a uma pluralidade que não pode ser reduzida à uniformidade sem a destruição do outro pela violência. É nesse sentido que falamos em um liberalismo que é multiculturalista e, acima de tudo, tolerante. Tolerância é a palavra-chave aqui, porque só podemos tolerar aquilo que consideramos errado. Eu não preciso tolerar aquele que pensa como eu, diz e faz o que considero certo.
Na verdade, o pluralismo aceito por esse tipo de pensador liberal nos cobra ainda mais do que tolerância para com a existência da autêntica alteridade. O ponto crucial é que, se for para co-existirmos, teremos que orquestrar nossas ações. Mas as nossas diferenças são justamente diferenças que nos fazem divergir quanto a como devemos orquestrar nossas ações. Aqui, entra a concepção da política como criação de artifícios a que me referi. O artifício politicamente criado nos ajuda a selecionar um plano de ação sem que ele tenha que ser comprovadamente o melhor. Nós o selecionamos, por exemplo, apenas pelo fato dele ter sido o mais votado em certa reunião. Ora, se um fulano tivesse faltado a essa reunião e outro tivesse estado presente, o resultado da votação já poderia ter sido outro. O que pode ser mais artificial?
Claro que se pode falar mais em defesa do princípio do voto majoritário como procedimento político para que se mostre suas vantagens com relação a outros artifícios possíveis para resolução de divergências, como o ato de jogarmos uma moeda para o alto e escolhermos cara ou coroa. Contudo, o que me interessa aqui é o que há de semelhante entre o voto majoritário e o ato de jogar cara ou coroa. Simplesmente, temos que decidir, e temos que fazê-lo sem consensos, sem provas da verdade. Agora, eu disse que isso implicava em um sacrifício maior do que a simples tolerância do outro, porque a ação política nos cobra que, por vezes, ajamos não pelo que julgamos ser correto, mas pelo resultado do cara ou coroa. Podemos fazer isso? Devemos?
Eu diria que depende do que está em jogo. Hobbes pinta o estado de natureza com cores tão sombrias para que aceitemos trocar o nosso melhor juízo pelos resultados artificiais da política, desde que todos os outros estejam dispostos a fazer o mesmo. Pode haver situações em que, de fato, não é razoável resistirmos e tentarmos impor a nossa concepção da coisa certa a fazer, porque, se todos fizerem o mesmo, viveremos em um mundo muito pior do que o mundo que venceu na moedinha, por menos ideal que ele nos pareça. Em outras situações, podemos achar que a proposta vencedora é tão maligna que merece nosso enfrentamento mesmo que isso signifique o sacrifício da nossa própria vida.
Não há teoria política universalmente aceita que nos permita saber quando estamos agindo como heróis e quando estamos agindo como fanáticos ao resistirmos às artificialidades da política em nome de nossos próprios valores. Só podemos nos esforçar para sermos razoáveis e não nos esquecermos de que os outros estão no mesmo barco que nós: eles também poderiam se julgar sempre no direito de resistir, e, então, o que teríamos? Hobbes foi um pensador muito mais sábio do que sugerem os manuais, porque ele julgou a vanglória, a pretensão de acreditarmos que nosso juízo vale mais do que o juízo de qualquer outro, como o pecado que está na origem de muitos males.
Bem, agora, é preciso falar de um outro tipo, um tipo que, claramente, não descende de Hobbes. Esse outro tipo não precisa negar a existência da divergência, embora, por vezes, ele me pareça bastante convicto de que todos que divergem dele são ignorantes ou agem de má-fé. O que ele nega, acima de tudo, é a primeira circunstância da política que, seguindo Waldron, citei neste texto: a necessidade de agirmos juntos. Nesse sentido, eu diria que, enquanto Waldron é um liberal democrata, esse outro tipo é muito mais o que eu chamaria de um neo-feudalista, por falta de expressão melhor. Neste texto, eu uso essa expressão para me referir sobretudo à indisposição de uma sub-classe dos auto-declarados libertários de conviverem com os diferentes.
O neo-feudalista tem como ideal a constituição de sociedades como associações voluntárias entre pessoas que pensam da mesma forma. Para ele, um mundo perfeito seria dividido em condomínios formados pela aquisição de propriedade privada. Os livre-mercadistas, por exemplo, formariam um condomínio, enquanto, digamos, os comunistas poderiam formar outro. Dentro do condomínio comunista, tudo poderia ser compartilhado como em uma grande família sem patriarcado. Esses libertários não veriam problema algum com isso, desde que os comunistas não buscassem a imposição de suas regras para além de seus muros. Quem quisesse viver como um comunista, que se mudasse para o condomínio deles, ou buscasse fundar o seu próprio condomínio atraindo outros associados voluntários. Para dar nome aos bois, eu acredito que Robert Nozick nos proponha algo nesses termos.
Muito dessa mentalidade me parece estar por trás de algumas formas de apoio a projetos como o Escola sem Partido, pois, para alguns partidários dessa ideia, o problema não é tanto que uma escola tenha partido, mas que não seja o partido dos pais do aluno. Quer dizer, a ideia é que os pais tenham o direito de isolar os filhos da influência de pessoas que não pensem como eles. O direito que esse libertário reivindica acima de todos é, afinal, o direito de não se misturar, de não misturar sua prole. Será que esse ideal rival à democracia deveria nos inspirar?
Eu penso que se alguém expusesse essas ideias diante de Kant – ideias que, de fato, parecem resolver todos os problemas políticos pela raiz – o filósofo alemão faria apenas a observação a que já me referi acima. Ele diria: “é que a Terra, infelizmente, é esférica”. Não há terra suficiente para que cada um funde sua própria comunidade sempre que estiver desgostoso com a comunidade em que vive. O conflito pela terra já é o grande conflito que instaura a política. Já é a primeiríssima coisa que precisamos resolver juntos. Seria mesmo justo que cada um se aproprie de quanta terra quisesse, enquanto encontrasse terra desabitada pela frente, e que os que chegassem ao mundo depois tivessem que simplesmente aceitar que não há mais terra a ser apropriada? Seria justo que os herdeiros de quem se apossou de mais terra sempre tivessem o poder de impor suas regras nessas terras? Os sem-terra, por que razão fosse, teriam que simplesmente aceitar como justa a condição de subordinados dos proprietários que fazem as regras?
É com questões como as do último parágrafo que tudo começa. São questões assim que não possuem respostas certas demonstráveis. São elas que demandam soluções artificiais para que possamos viver em paz. Se queremos a paz, podemos ser comunistas que desistiram da revolução para acabar com a propriedade privada, ou libertários que aceitaram políticas redistributivas. Pouco a pouco, podemos até acabar acreditando que uma sociedade tolerante, no final das contas, é melhor do que uma sociedade em que cada um se isola com os seus no seu condomínio feudal. Afinal, como escolheríamos o nosso condomínio se nem conseguíssemos ver por cima do muro daquele em que nascemos?