por Andrea Faggion
Em artigo recente para este Estado da Arte (“O que significa ser um anarquista?”), discorri brevemente sobre o significado do “anarquismo filosófico”, a tese segundo a qual não temos a obrigação moral de obedecer uma diretiva de uma autoridade legal. É muito importante que tenhamos clareza sobre o que significa e sobre o que não significa dizer que temos essa obrigação de obediência. Muitos de nós, se indagados sobre se acreditamos ou não na existência da obrigação de obediência a uma dada lei de nosso país, responderemos apressadamente que essa obrigação existe, porque confundiremos uma obrigação de fazer aquilo que está expresso no conteúdo da lei com uma obrigação de obedecer a lei enquanto lei, ou seja, de obedecer pela simples razão de se tratar de uma norma emitida de uma certa forma por uma certa instituição.
Mas são coisas muito diferentes! Quero crer que os meus leitores deixem de roubar, estuprar e matar, por exemplo, porque tais atos estariam em desacordo com suas próprias deliberações morais, e não simplesmente porque alguma instituição tornou tais atos legalmente proibidos por uma decisão sua. Da mesma forma, há muitas leis que cumprimos, porque simplesmente não nos ocorreria descumpri-las, não seríamos sequer tentados a tanto. Eu posso desejar muito um anel e deixar de roubá-lo, porque meus valores morais restringem os meus desejos, mas eu nem sequer desejo comer carne humana, para roubar o exemplo do filósofo Frederick Schauer, de modo que, se cumpro uma lei que proíbe o canibalismo, não se pode dizer que seja porque acredito na obrigação de obediência às leis.
E, assim, seja em virtude de nossos valores morais ou de nossas preferências subjetivas, muito de nosso comportamento está de acordo com as leis, sem que estejamos, propriamente, exercendo algum dever de obediência às leis qua leis.
Neste texto, o segundo de uma série que ainda não sei onde vai parar, eu me proponho a iniciar uma reflexão sobre algumas razões para obedecermos leis por serem leis, mesmo quando elas não coincidem com o que desejamos fazer de toda forma ou com o que nosso próprio melhor juízo moral indica que devamos fazer.
Claro que, de pronto, você, leitor, dirá, assim como diz Schauer, que a razão é a espada que, de uma forma ou de outra, a lei coloca no meu pescoço, me ameaçando em caso de descumprimento. Talvez, só existam mesmo essas três possíveis razões para o cumprimento da lei: 1) o meu melhor juízo moral, na presente situação, me indica o mesmo curso de ação que a lei me indica; 2) as minhas preferências pessoais me levam a agir como a lei diz para eu agir; 3) a lei me pune de alguma forma se eu não dançar conforme a música que ela toca. Mas o que me intriga é um problema que ocupa os filósofos há bem mais de dois mil anos. Haveria uma quarta razão do tipo: “tenho a obrigação de cumprir a lei porque é a lei”?
Desta vez, eu vou me restringir a algumas considerações sobre um tipo específico de resposta à pergunta com que finalizei o último parágrafo, as chamadas “teorias do consentimento”. Por que pensar no consentimento como uma saída para nosso problema? Ora, em geral, pensamos que atos de consentimento são atos geradores de obrigações. Suponha que eu precise de um carro para levar um parente ao aeroporto. No dia anterior à viagem de meu parente, eu peço seu carro emprestado para esse fim. Você me responde que posso, sim, usar seu carro no dia seguinte para esse fim. Mas, na hora em que combinamos que eu pegaria as chaves, você, simplesmente, me diz que mudou de ideia e que eu posso muito bem chamar um táxi (uber etc.).
É verdade! Eu bem poderia chamar um táxi. Mas não foi isso que combinamos e a maioria das pessoas concordaria que você cometeu uma falta comigo, pois, embora o carro seja seu e caiba a você decidir que uso será feito dele, a partir do momento em que você consentiu com um uso meu, eu passo a ter direito a esse uso.
Quando existe um sistema legal vigente, esse sistema especifica as condições em que eu posso reclamar a execução de um direito que me foi consentido. Em que condições um contrato é válido e as partes estão vinculadas por ele, de tal forma que, em caso de não haver a performance correspondente de uma das partes, a outra parte pode exigir que o Estado use a força para obrigar a parte em falta a fazer o que lhe cabe? Essa é uma questão jurídica. A questão moral é se quem recebe um ato de consentimento adquire um direito ao que lhe foi consentido. E parece que julgamos moralmente que sim, ainda que a moral também coloque suas condições. Por exemplo, moralmente, e não apenas legalmente, podemos nos perguntar pelas condições mentais de quem deu seu consentimento: era um adulto capaz? estava sóbrio? etc.
O ponto é que, em geral, cumpridas certas condições, acreditamos que atos de consentimento são atos pelos quais obrigações morais são adquiridas e, por isso, é comum que se procure explicar uma obediência à lei como tal através de algum ato de consentimento de nossa parte em sermos governados, ou seja, por meio de um ato pelo qual abrimos mão de agirmos de acordo com nossas preferências e nosso próprio melhor juízo moral em toda e qualquer situação. Na verdade, esse ato de consentimento legitimaria a própria coerção no caso de sermos recalcitrantes no cumprimento das leis ou diretivas de nosso governo, da mesma forma que aquele que não faz sua parte em um contrato pode ser coagido a fazer como consentiu em fazer.
Agora, a questão é a seguinte: nós consentimos em sermos governados? Expressamente, poucos de nós, em algum momento da vida, fez algum juramento de obediência ao governo sob o qual vive. Consequentemente, o consentimento tácito foi uma alternativa explorada por alguns filósofos. Você não deixa a jurisdição de um governo, logo, você consente em ser governado por ele.
Na verdade, a literatura recente nem se dá ao trabalho de refutar esse argumento, que costuma ser apenas ridicularizado. A resposta clássica a ele será encontrada se recuarmos alguns séculos, até a obra de David Hume. O filósofo escocês faz uma analogia com alguém que, tendo sido carregado dormindo para um navio, acordasse dentro do navio em alto-mar. Poderíamos dizer que ele consente em obedecer as ordens do comandante do navio, desde que ele não se jogue no mar?
Ora, uma pessoa que não fale a língua de outro país, que não tenha relações no exterior e que sobreviva de seu salário na terra natal está em situação semelhante perante seu governo. Poderíamos ainda acrescentar que o argumento do consentimento tácito só faria algum sentido em um mundo em que os governos aceitassem o livro trânsito em suas fronteiras, mas já falamos demais sobre um argumento tão fraco e tão desacreditado hoje em dia.
O que resta então?
Ah, agora as coisas ficam mais interessantes. Temos, ao menos, duas hipóteses a serem exploradas: a) a alternativa a aceitarmos a obrigação de obediência a um governo seria tão nefasta, tão terrivelmente devastadora para tudo que valorizamos, que a única atitude racional seria consentirmos em sermos governados; b) admite-se que nós não consentimos em sermos governados, mas alega-se que nós consentimos em receber certos bens que decorrem de um governo, então adquirimos obrigação de obediência a esse governo que torna tais bens possíveis.
Interessantemente, a hipótese a) parece, de certa forma, aceitar a analogia de Hume e tirar proveito dela: temos que obedecer o comandante do navio, porque, do contrário, vamos mesmo morrer afogados, pois o navio afunda. O problema é que não é claro que o navio vá afundar se não formos, propriamente, obedientes ao comandante.
Talvez, todos que estamos a bordo sejamos muito maus para não nos matarmos se um comandante poderoso não estiver lá para impedir. Ou, talvez, nem sejamos propriamente maus, mas temamos a maldade uns dos outros e tenhamos que tomar providências belicosas uns contra os outros da mesma forma, por simples necessidade de sobrevivência, se não existir um comandante, forte o bastante para punir ele mesmo toda a agressão, deixando-nos em paz no navio. Admitamos, ao menos, isso em prol do argumento.
Só que a lealdade ao comandante pode ser expressa na simples ausência de um motim contra ele, ou, no máximo, na simples conformidade pública às ordens dele, mesmo quando não concordamos com elas, quando sabemos que estamos dando o exemplo. Seria um “exagero melodramático” – como diria o filósofo Joseph Raz, a maior autoridade em Autoridade das décadas recentes – pensar que cada ato de desobediência é uma ameaça potencial ao poder constituído e, consequentemente, à ordem estabelecida. No mínimo, essa é uma forte tese empírica que precisaria ser provada.
Enquanto essa tese não é provada, não precisamos aceitar que, ou nos submetemos sempre e em cada ato à autoridade, ou os piores males nos aguardam. No máximo, nosso argumento de colorações hobbesianas nos leva a aceitar que não devemos desafiar publicamente a autoridade, naquelas situações extremas em que temos boas razões para acreditarmos que nosso gesto será seguido por outros e levará à queda ou, ao menos, a um enfraquecimento do poder central de coerção. Para resolvermos o problema de nossa presente série de artigos, precisamos de muito mais do que isso.
Resta, então, ainda nessa linha de raciocínio, examinarmos a alternativa b). Mas a discussão já foi longe e há de ir mais, vocês têm muitas obrigações a cumprir e eu vou guardá-la para o mês que vem. Até lá!
Leia os outros textos de “Diálogo com o anarquista”
Parte 2 – O argumento a partir da equidade