por Andrea Faggion
Suponha que você seja um motorista responsável, zeloso, experiente e habilidoso. Você conhece bem as condições mecânicas de seu carro e pretende trafegar pela mesma estrada pela qual passa todos os dias. Você avalia as condições climáticas e conclui que pode trafegar com toda segurança a 90 km/h. Só que uma placa de sinalização o informa que o limite estipulado por lei é de 80 km/h. Como essa informação deve figurar em seu raciocínio? Você meramente procura saber se há radares no trajeto ou guardas de prontidão para lhe aplicar uma multa, e considera se vale a pena correr o risco da multa, o que significaria incluir um fator a mais no seu raciocínio, um fator em patamar de igualdade, por exemplo, com sua avaliação sobre a condição de seus pneus, ou você abandona a conclusão do seu raciocínio e submete-se à decisão tomada pela autoridade que determinou o limite de velocidade?
Esta série de ensaios se propõe a apresentar algumas reflexões esquemáticas acerca de uma suposta obrigação moral de submetermos ao juízo de uma autoridade nosso próprio juízo sobre o que devemos fazer. O artigo anterior discutiu a maneira como teóricos do consentimento lidam com o problema. Brevemente, segundo a teoria do consentimento, se eu consentisse em transferir para alguém ou para alguma instituição o meu direito de julgar e decidir por mim mesma o que devo fazer em todas as situações, então essa pessoa ou instituição passaria a ter autoridade legítima sobre mim e eu passaria a ter a obrigação correspondente de obediência.
Este artigo se deterá em um argumento específico, segundo o qual o consentimento dado não seria diretamente o consentimento em obedecer alguma pessoa ou instituição, mas ainda haveria um tipo de consentimento que implicaria indiretamente na obrigação de obediência ao poder político constituído.
Esse tipo de argumento indireto – que pode ser chamado de “argumento a partir da equidade” – é vislumbrado de forma embrionária em certas passagens de obras clássicas da filosofia política, como as de Thomas Hobbes e David Hume. Porém, o argumento é comumente associado a certas fases do pensamento político de Herbert L. A. Hart e de John Rawls, autores que o formulam explicitamente. Como o propósito desta série de artigos não é exegético, forneço a informação para o leitor que desejar se aprofundar no assunto, sem a intenção de propor aqui uma interpretação seja de Hart ou de Rawls.
É essencial ao argumento a partir da equidade que um benefício seja recebido por parte daquele que portaria a obrigação de obediência cuja existência se quer provar. Esse benefício seria gerado por um empreendimento coletivo, como decorrência da associação de um certo número de pessoas. Tal benefício, ademais, só seria viável, porque as pessoas envolvidas no empreendimento mencionado restringem sua própria liberdade de julgar e decidir individualmente, passando a agir de acordo com certas regras comuns. Assim, segue o argumento, aquele que se beneficia da restrição da liberdade dos demais participantes do empreendimento também deve ter sua própria liberdade restrita da mesma maneira que a deles.
Com isso, nota-se que a obediência à autoridade que impõe as regras do empreendimento não seria devida à figura da autoridade em si. Quem teria direito à obediência de cada indivíduo beneficiado pelo empreendimento seriam os outros participantes. Em suma, se aplicássemos este argumento à sua situação política, você deveria obedecer ao seu governante, mas o direito a essa obediência seria um direito não dele, mas dos demais governados, os seus concidadãos.
Também é comum que se diga que caso você colha benefícios desse tipo de empreendimento, mas se negue a restringir sua liberdade pelas regras da coletividade, você é um “free rider”, ou seja, um carona do empreendimento. Assim, a obrigação de obediência às autoridades que zelam pelas regras do empreendimento não seria nada além de uma decorrência da proibição do ato de pegar carona nos esforços alheios.
O argumento a partir da equidade, como se pode notar, não precisa ser aplicado apenas em situações estritamente políticas ou apenas com relação ao problema da autoridade. Imagine que seus colegas de escritório costumem fazer uma vaquinha para comprar pó de café e se revezem no preparo do mesmo. Então, eles deixam o café preparado em uma área comum do escritório. Você nunca preparou café ou entrou na vaquinha, mas você tem o hábito de se servir do café que eles disponibilizam. Provavelmente, você seria bastante mal-visto no seu escritório! Agora, será que existe uma analogia entre esse sujeito que se aproveita dos colegas de escritório e o nosso amigo anarquista filosófico, aquele que nega que tenhamos qualquer obrigação moral de obediência às leis do Estado?
Note, primeiramente, que o sujeito no escritório escolhe tomar o café. Ele poderia muito bem sempre passar reto pela mesa do cafezinho. Mas não o faz. Ciente de que café não cai do céu (podemos acrescentar que ele sabe da vaquinha), ele formula e realiza o propósito, perfeitamente evitável, de se servir do café. Qual seria o paralelo desse gesto na vida política?
Em prol do argumento, por favor, concedam que governos constituídos nos beneficiam de alguma forma. Concedam ainda que os benefícios que recebemos do governo compensam os custos e também que o governo não gera externalidades negativas ainda maiores ao nos prover com algum benefício. A segurança pública costuma ser o benefício em que se pensa primeiramente nessa ocasião. Mesmo que você nunca tenha chamado a polícia em sua vida, suponhamos arguendo que você se beneficia do fato da polícia tirar potenciais agressores seus de circulação, e mais ainda, que a mera existência da polícia inibe uma série de possíveis agressores. Neste caso, será que podemos dizer que se você negar obediência às regras que mantêm esse esquema que lhe provê com o benefício da segurança, você é tão sacana quanto o sujeito que fila o cafezinho dos colegas de escritório?
É claro que, a esta altura, você percebeu a diferença entre os dois casos. Você não buscou propositalmente os benefícios da segurança pública. Eles caíram sobre você. Ao que parece, você nem sequer teria como evitá-los, mesmo que quisesse tentar. Agora, será razoável que um grupo se associe, gere benefícios inevitáveis a alguém que não se voluntariou para o empreendimento e, então, considere que essa pessoa está vinculada pelas regras do empreendimento apenas por ter se beneficiado dele?
Robert Nozick ridicularizou essa possibilidade com um famoso experimento de pensamento. Ele supôs em uma vizinhança que fizesse um acordo para ter um sistema de entretenimento público. Em cada dia do ano, um vizinho diferente faria alguma coisa para entreter os demais. Ele poderia cantar, tocar um instrumento, contar piadas, dar uma palestra de filosofia… Assim, cada um daria sua contribuição em apenas um dia (podendo haver trocas do dia de cada um por motivo de conveniência) e todos se beneficiariam. A pergunta de Nozick é se um vizinho que tenha ouvido algumas piadas, escutado um pouco de música, mas não tenha participado desse acordo, teria a obrigação de fazer sua parte quando chegasse seu dia. Acaso ele não poderia alegar que preferiria ficar sem música e sem piadas todos os dias a dedicar um dia a esse sistema?
Creio que pessoas razoáveis terão intuído o que Nozick espera despertar com esse experimento e concordarão que qualquer grupo de pessoas pode se juntar e ir adiante com qualquer empreendimento que acharem por bem, mas que ninguém pode impor obrigações a terceiros que não tenham outra escolha senão receber os benefícios gerados.
Mas ainda há um ponto a ser observado. Como eu dizia, esta parte desta série de diálogos com o anarquista trata das teorias do consentimento. Então, o argumento a partir da equidade não deveria se basear, simplesmente, em benefícios recebidos. Ele deveria se ater justamente aos benefícios consentidos ou aceitos, do mesmo jeito que o sujeito do escritório desfruta o benefício do café não inevitavelmente, mas voluntariamente. É nos casos em que o benefício é consentido que o argumento pode funcionar. Mas quais são esses casos no mundo político real?
Via de regra, os supostos benefícios gerados por governos são abertos. Tal como a segurança pública, eles beneficiam pessoas que não procuram por eles. Educação e saúde pública também poderiam ser exemplos. Mesmo que você pague por serviços médicos privados, você se beneficia, por exemplo, do fato de pessoas serem vacinadas gratuitamente por seu governo, diminuindo ou até erradicando a circulação de doenças. Você também se beneficia de pesquisas acadêmicas que você sequer entende ou mesmo suspeita que existam, mas que são realizadas em universidades públicas ou com financiamento público. As próprias vacinas, antes de chegarem nas seringas, percorrem um longo trajeto, valendo-se de um conhecimento acumulado direta ou indiretamente com diferentes níveis de abstração.
Contudo, é verdade que também existem benefícios públicos que são propositalmente buscados e poderiam ser evitados. No Brasil, as próprias universidades públicas seriam um exemplo, já que mensalidades não são cobradas. Ainda que, ao menos em prol do argumento, devamos aceitar que elas gerem bens públicos abertos, elas também geram um outro tipo de bem mais diretamente usufruído por quem se matricula nelas voluntariamente: a formação profissional. Será que o estudante de universidade pública que se recusasse a obedecer as regras do governo que lhe provê com essa universidade seria o nosso análogo ao sacana do cafezinho? Penso que ainda não!
Imagine que o custo do cafezinho já viesse compulsoriamente descontado na folha de pagamento daquele sujeito do escritório e ele não pudesse fazer nada a respeito. Imagine que ele goste de café. É verdade que ele preferiria usar o dinheiro descontado para comprar outra marca de café, mas ele não tem essa opção. Seria ele algo além de um tolo se, já tendo pagado por um café que julga de qualidade aceitável, não se servisse dele? Parece-me que não! E não seria essa uma analogia mais perfeita com quem se matricula em uma universidade pública?
Se a imposição das regras do sistema vem antes e independentemente da aceitação voluntária de qualquer benefício decorrente do sistema, como poderíamos usar o consentimento em receber um benefício do sistema como fundamento da obrigação de contribuir com o sistema que o torna possível? No fim, parece que o argumento a partir da equidade só se torna razoável quando deixa de ser politicamente aplicável, ou seja, quando ele é montado exatamente como um argumento a partir do recebimento consentido de um benefício. Ocorre que, na vida política, não há benefícios voluntários com os quais consentimos antes do sistema nos ser imposto de toda forma. Não há análogo da vaquinha do café no escritório. A analogia correta é com o desconto compulsório do café na folha de pagamento.
Com isso, desisto de encontrar em teorias do consentimento uma resposta ao anarquista. O próximo artigo examinará estratégias diferentes, desenvolvidas por filósofos que também não aceitam que a obrigação política se funde no consentimento.
Leia os outros textos de “Diálogo com o anarquista”
Parte 1 – Obrigação e consentimento