Diálogo com o anarquista (Parte 3) – Obrigações Associativas

A teoria da obrigação associativa procura os fundamentos da obrigação política em deveres morais contraídos involuntariamente.

por Andrea Faggion 

Dando continuidade a uma série de textos em que refletimos sobre algumas respostas ao anarquismo filosófico, falamos hoje sobre obrigações associativas, um tipo de argumento que pode ser encontrado, por exemplo, na obra de Ronald Dworkin.

Como já sabemos o anarquista filosófico não é, necessariamente, um revolucionário em matéria de política, um agente cujo fim seja derrubar o Estado. Ele é apenas um teórico que defende a tese segundo a qual a nossa eventual obrigação moral de cumprimento de leis positivas é uma função do conteúdo dessas leis, ou seja, temos um dever moral de agir de acordo com uma lei positiva quando essa lei nos leva a uma ação que coincide com o resultado de nosso melhor juízo sobre o que devemos fazer naquelas circunstâncias, considerando todas as coisas menos a própria lei positiva. Do contrário, ainda é racional agir de acordo com uma lei positiva apenas se a sanção prevista para o caso de violação dessa lei, considerando também (e sobretudo) a probabilidade de que essa sanção seja de fato sofrida por nós, faz com que não compense para nós agir de outra forma. Portanto, em suma, o anarquismo filosófico é uma posição de acordo com a qual não há dever moral de obediência propriamente. O fato de uma norma moral ser positivada como lei não acrescentaria nada do ponto de vista moral e apenas a sanção afetaria a nossa deliberação.

Nos primeiros textos da série [Introdução e Partes 1 e 2], nós apreciamos algumas tentativas de prova da existência de um suposto dever de obediência que poderiam ser classificadas como “teorias voluntaristas”. De acordo com essas teorias, o dever (ou obrigação) de obedecer leis positivas seria adquirido mediante algum ato voluntário singular, variando esse ato desde uma promessa explícita de obediência até a aceitação de um benefício que implicaria na aquisição do dever de obediência. Essas são as teorias mais populares fora da academia e as mais tradicionais na própria academia, mas não parecem ser as mais bem-vistas na ampla literatura especializada sobre o assunto produzida nas últimas décadas. A teoria da obrigação associativa é justamente uma tentativa de superação das teorias voluntaristas, um recomeço do argumento a partir de um outro universo normativo.

Teorias voluntaristas, obviamente, se movimentam no solo da justiça e das obrigações contratuais, recorrendo, portanto, a normas que costumam ser aceitas em outros contextos que não o da obrigação política e procurando aplicar essas normas de justiça no âmbito da obrigação política. Se você prometeu, você deve cumprir sua promessa, assim, eu procuro mostrar que você prometeu obedecer leis positivas e, com isso, provo que você tem o dever de obedecer leis positivas. Já a teoria da obrigação associativa procura os fundamentos da obrigação política em normas de outro âmbito. Seu ponto de partida, então, é nos apontar a existência desse outro âmbito de obrigações.

Comecemos com alguns exemplos. Sua mãe – e entendamos como sua mãe a pessoa que lhe proveu, lhe educou e foi uma presença afetiva constante durante sua formação até a vida adulta – encontra-se velha e doente. Você é um adulto bem-sucedido. Sua mãe não tem condições de sobreviver por conta própria. Você recusa a ela qualquer forma, por mínima que seja, de assistência. Em nossa sociedade, você seria recriminado como alguém que viola um dever. Por quê? Você nunca assinou um contrato com sua mãe prometendo algo em troca do que ela fez por você. Você nem sequer era um agente responsável, com capacidade para tanto, quando sua mãe resolveu começar a lhe criar. Você não escolheu sua mãe e nem é responsável pela escolha dela de ser mãe.

Podemos pensar em outros exemplos com quaisquer outros familiares, variando o grau da sua obrigação. Seu irmão está doente. Você sabe, pelo histórico da relação de vocês, que, se você estivesse no lugar dele, ele ficaria com você o tempo todo no hospital. Você nem sequer o visita. Novamente, diríamos que você violou uma obrigação. Mas você nunca fez nada específico com base em que alguém pudesse dizer: “naquele momento, ele adquiriu o dever de zelar pelo irmão”. Nascer, certamente, não foi esse ato!

Esses exemplos não valem só para familiares. Agora, você está em uma festa. Alguns convidados começam a zombar do seu melhor amigo, que não se encontra presente. Você quer que eles gostem de você, quer ser popular, então você participa da zombaria. Seu amigo não convive com qualquer dos convivas. Ele nunca ficará sabendo das suas risadas, das piadas com as quais você mesmo contribuiu para ridicularizá-lo publicamente. Mas você sabe que violou uma obrigação! Por quê? Não existe qualquer contrato, com sua assinatura nele, especificando os direitos e deveres existentes na relação entre vocês dois. Na verdade, você nem se lembra de ter decidido, em algum momento, começar essa amizade. Existe o dia em que vocês se conheceram (não que você se lembre). Existe o dia em que tomaram uma cerveja juntos pela primeira vez (não que você se lembre). Mas não existe o dia em que os dois conhecidos se tornaram, oficialmente, amigos. Como você pode ter adquirido tantos deveres então, sem nunca ter feito algo com a consciência de estar, naquele momento, adquirindo tais deveres? Essas são obrigações associativas. Elas não são voluntárias!

Você deve ter notado que todos os exemplos mostram que você tem obrigações especiais para com certas pessoas. Seria bom se você ajudasse idosos carentes de modo geral. Mais do que isso, assumimos mesmo que você, assim como eu, tem essa obrigação. Mas você entendeu que a obrigação para com sua mãe no exemplo acima não é uma simples aplicação de uma obrigação geral de caridade. Da mesma forma, seria muito desejável que você não fosse um porco que se diverte humilhando outras pessoas. Mais do que isso, seria seu dever mostrar mais decência. Mas você também entendeu que não humilhar um amigo pelas costas não é uma simples aplicação da obrigação geral de respeitar a dignidade de outros seres humanos. Isso também é característico de obrigações associativas. Elas dizem respeito a certas pessoas em específico, com quem temos certas relações. Obrigações associativas são obrigações contraídas pela nossa participação como membros nessas relações. E deixe-me enfatizar, mais uma vez, que essas relações não precisam ser e nunca são completamente voluntárias, no sentido de terem sido criadas por certos atos singulares.

Esse tipo de obrigação parece promissor para o problema da obrigação política. Para começar, nós nos livramos da necessidade de sairmos à caça de atos específicos pelos quais adquirimos a obrigação de obediência às leis. Já assumimos que esses atos não existem mesmo! Nunca houve esse momento em que, conscientemente, fizemos algo que nos levasse a contrair a obrigação política. Os problemas dos voluntaristas, com os quais nos debatemos nos meses passados, acabam de ficar para trás!

Outro fato promissor: aprendemos que obrigações associativas explicam diferenças nas nossas obrigações para com certas pessoas. Eu tenho obrigações para com minha mãe que não tenho para com você. Isso também precisa ser verdade a respeito de obrigações políticas. Eu tenho obrigações para com leis brasileiras que não tenho para com leis canadenses. Se o Canadá resolvesse aprovar um estatuto esdrúxulo querendo me obrigar ao que quer que seja, ainda que eu nunca tenha pisado lá em minha vida, ninguém questionaria a ausência de uma obrigação de obediência em mim, mesmo que esse estatuto esdrúxulo fosse uma lei válida no Canadá. Ponto, portanto, para a teoria das obrigações associativas, que explica a ausência de tal dever de obediência de minha parte.

Mas nem tudo são flores. Vejamos agora os pontos fracos dessa teoria.

Primeiro, todo filósofo minimamente digno do título sabe que nem todas as obrigações são coercitivas, isto é, nem todas as obrigações podem ser impostas via coerção. Existem muitas ações que não consideramos moralmente opcionais, tampouco consideramos que a sua realização seja apenas meritória. Há pressão social para que certas ações sejam evitadas e certas outras sejam praticadas, como uma matéria de dever, mas não passa pela cabeça de alguém que deva haver propriamente coerção para que essas mesmas ações sejam evitadas ou praticadas.

Aqui, naturalmente, é importante compreendermos o conceito de coerção. Sofremos coerção quando nosso status quo é negativamente afetado caso não tomemos a decisão que aquele que nos coage pretende nos levar a tomar. Por exemplo, eu gozo de certa liberdade de movimentos hoje. Se eu não fizer certas coisas que o Estado quer que eu faça ou não deixar de fazer outras tantas, o Estado ameaça diminuir essa minha liberdade, me enclausurando. Em outras palavras, o Estado ameaça afetar negativamente o meu estado atual para influenciar minhas decisões.

Agora, quando eu falei acima em “pressão social”, eu tinha em mente certos atos pelos quais as pessoas deixam de afetar positivamente o estado de outras. Por exemplo, atualmente, eu não possuo o direito de ser convidada para tomar um café com você ou sequer de receber um sorriso seu. Se você resolve não socializar comigo, você resolve não afetar positivamente o meu estado atual. Isso, a rigor, não é coerção (pode até ser mais grave do que uma coerção, mas não é coerção!).

É importante que compreendamos essa diferença entre influências negativas e positivas no status quo, seja lá quais forem os termos usados para marcá-la, porque afetar negativamente o estado atual de alguém é um poder que, normalmente, no mínimo, não deixamos nas mãos de qualquer um (talvez, deixemos nas mãos dos pais, por exemplo), e, acima de tudo, para o que nos interessa aqui, é um poder que não acreditamos que possa ser exercido legitimamente em caso de violação de qualquer obrigação.

Feito esse esclarecimento, posso afirmar que os casos de obrigações associativas que vemos como obrigações coercitivas são excepcionais. Podemos concordar que um filho possa ser legitimamente forçado a prestar algum tipo de assistência à mãe doente, mas quem pensa que amigos ou vizinhos ruins devam sofrer algo além da ausência de benefícios que tenhamos o poder de conferir a eles? Ora, acontece que a obrigação política, considerada de forma estreita como obrigação de obediência à lei, por óbvio, é uma obrigação coercitiva. Então, as teorias das obrigações associativas estão apelando a um tipo de obrigação que, via de regra, não é coercitiva para explicar a natureza de uma obrigação que é, centralmente, coercitiva. Não é por acaso que as teorias voluntaristas apelavam a obrigações de justiça. As obrigações de justiça, sim, tal qual a obrigação política, são centralmente coercitivas.

Segundo, embora seja típico de uma obrigação associativa que ela não surja mediante um ato de escolha voluntária (como um contrato de casamento, por exemplo), devemos reconhecer um amplo papel para a escolha individual, no âmbito das obrigações associativas, no sentido do poder que temos, ao menos em nossa sociedade, de evitar que elas se constituam. Novamente, obrigações filiais podem ser uma exceção aqui, porque, realmente, não podemos fazer algo para evitarmos termos tido os pais que tivemos.

Esse caso, porém, não estabelece a regra das obrigações associativas em sociedades ocidentais modernas, porque tais sociedades são caracterizadas exatamente por uma certa autonomia individual na determinação do próprio estilo de vida e, por conseguinte, na formação de relações pessoais. Em resumo, temos amplas possibilidades de evitarmos a contração de certos vínculos. Por sinal, é característico da filosofia política moderna pressupor justamente o anonimato de nossa sociedade. Um Hobbes não estava preocupado em explicar como era possível a sociabilidade em uma tribo, mas, sim, como era possível a convivência (inclusive, negocial) entre pessoas estranhas. Ora, a obrigação política, entendida como obrigação de obediência a leis positivas, por sua vez, não nos permite qualquer forma de controle. Por vezes, não conseguimos evitar a obrigação política nem sequer deixando a jurisdição do Estado em questão. Assim, pela segunda vez, vemos o apelo a obrigações mais fracas para o fundamento de uma obrigação muito mais forte.

Por fim, em terceiro lugar, há outra maneira, relacionada à segunda, pela qual a obrigação política é muito mais demandante do que obrigações associativas. Obrigações associativas são restritas a certos aspectos de nossas vidas. Ninguém é apenas filha ou apenas amante ou apenas amiga ou apenas vizinha ou apenas colega de trabalho… Nenhuma obrigação associativa é compreensiva, abrangendo todos os aspectos da nossa vida. Mas a obrigação política é exatamente isso! Não existe qualquer aspecto de nossas vidas que, em princípio, não possa ser regulado por uma lei positiva.

Portanto, novamente, a obrigação política não guarda semelhança com obrigações associativas em geral, mas apenas com uma obrigação associativa em particular: a filial. Mais precisamente, a obrigação política parece similar à obrigação de um filho ainda imaturo diante dos pais, pois só então os pais controlam todos os aspectos da vida da criança, escolhendo até em quais situações vão deixar as crianças livres para tomarem suas próprias decisões.

Bem, se, no fim das contas, a teoria das obrigações associativas só tem a nos oferecer uma visão do Estado como uma espécie de patriarcado ou matriarcado, parece que o nosso anarquista filosófico segue em vantagem… ao menos, até o próximo artigo!

Leia os outros textos de “Diálogo com o anarquista”:

Parte 1 – Obrigação e consentimento

Parte 2 – O argumento a partir da equidade

Parte 4 – Teoria dos jogos

Parte 5 – Conclusão

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