por Fabrício Tavares de Moraes
Todas as críticas históricas da arte que se proponham a análise das várias vertentes (e ideologias) estéticas dos últimos dois séculos em algum ponto deparam-se com uma curiosa tautologia nos procedimentos artísticos, isto é, a modernidade, como dito anteriormente, abarca em si mesma a antimodernidade, que por sua vez é um denominador comum aos reacionarismos vários e à retórica revolucionária.
Tanto Marinetti quanto Virginia Woolf – artistas que dificilmente poderiam ser equiparados – advogaram, evidentemente em graus e contextos diferentes, a queima e destruição de bibliotecas e museus, já que, segundo o pensamento de ambos, eram sítios memoriais e polos mantenedores de uma estrutura e uma visão de mundo caduca, autoritária e portanto insalubre.
Com raras exceções, conforme nos lembra Alfonso Berardinelli em seu Esquerda e Direita na Literatura, a crença inabalável do progresso ininterrupto tornou-se já um daqueles dogmas embaraçosos, cuja manutenção depende, em grande parte, de uma maleabilidade interpretativa, quando não da mais pura alegorização. Dito de outro modo, nota-se cada vez mais o descompasso entre o que chamaríamos de progresso tecnológico e, por falta de um termo mais exato, o progresso moral; de maneira que as declarações intelectuais que não levam em conta esse cisma (ou abismo) são, não sem justa razão, tidas como irresponsáveis.
A exposição das raízes do otimismo histórico é de certo modo o ponto de inflexão do pensamento iluminista, que tem em Nietzsche seu canto de cisne. Afinal, é esse filósofo alemão que explorará a pletora de memórias que sobrecarrega e expectora o peito do indivíduo ocidental, e num momento quase de euforia lançará suas intempestivas sobre a história.
Segundo Berardinelli, “a filosofia da história não apenas tinha pressupostos teológicos, como explicou Karl Löwith, mas esse substrato teológico se percebe ainda hoje: a história permanece ainda a divindade mais adorada”. E isto se evidencia, ainda segundo o crítico, toda vez que o progresso é posto em dúvida ou mesmo criticado, ou ainda por meio do sentimento apocalíptico que perpassa o grosso da sociedade quando as estatísticas, especialmente aquelas referentes ao desenvolvimento econômico, mostram-se desfavoráveis.
Deparamo-nos, pois, com um dilema, pois ao mesmo tempo em que todos os pressupostos que embasam a crença naquilo que John Passimore chama de “meliorismo” (o aperfeiçoamento gradual e irrefreável do homem e de sua sociedade) são abandonados, somos também como que impelidos para a frente, conscientes de que não há retorno possível e de que o único caminho é a marcha e o desenvolvimento.
No tocante ao primeiro polo desse dilema, Berardinelli diz que a literatura levantou algumas objeções à filosofia da história e à teoria do progresso, mas com certa prudência. E quem questiona essa filosofia vem automaticamente catalogado à “direita”, quando não se autodefine como “de direita”.
Essa crítica, porém, encontra-se também presente na literatura designada de esquerda, conforme o escritor italiano nos diz mais adiante. Afinal, para alguns pensadores, acaso modernização e liberalismo econômico (visto por eles como uma forma predatória) não são sinônimos? Nesse sentido, a literatura de certo modo espelhou essa tensão a partir do momento em que gêneros como a utopia e distopia, que estão intrinsecamente associados ao pensamento político, coexistem e fermentam-se mutuamente, sem que pertençam exclusivamente a um lado do espectro político.
Para Berardinelli, além dessa filosofia da história, dois outros fatores contribuíram para essa confusão (no sentido substancial e epistemológico do termo) entre direita e esquerda, a saber, a política e a sociedade, ou mais especificamente as visões hegemônicas acerca dessas esferas. Na primeira delas, naquilo que certamente é não apenas uma controvérsia mas sim um erro conceitual, o crítico italiano qualifica o autoritarismo do comunismo soviético como direitista:
…Marxistas e comunistas que se encontravam no poder na União Soviética (e sucessivamente na Europa oriental) haviam instaurado um regime autoritário, despótico, imperialista, que sem nenhuma tendenciosidade poder-se-ia definir de direita. Mussolini e Hitler haviam conquistado o poder guiando movimentos “revolucionários” antiburgueses e anticomunistas, em cujas ideologias mesclavam-se o mito da modernidade, o mito do império romano e aquele do medievo germânico. Stalin utilizara a máquina de guerra que era o partido bolchevique para transformar uma revolução proletária em um Estado totalitário.
A bem da verdade, a tentação totalitária não é exclusiva de nenhuma dessas ideologias, para que possamos enquadrá-la somente num espectro (no caso, a direita). No entanto, todos os grandes (e monstruosos) projetos políticos mencionados por Berardinelli confundem (no sentido de mesclar-se) o Estado com alguma outra instância. Assim, de maneira sucinta e quase pedagógica, vemos que, para o nazismo, o Estado e raça ou etnia são elementos indistintos e inseparáveis; já o fascismo, na definição precisa de Peter Sloterdijk, é a integração entre Estado e horda; e, por fim, o marxismo, como proposto pelo próprio Marx, culminaria no comunismo, a fusão entre Estado e sociedade civil.
E é assim que Berardinelli se dirige para a análise do segundo fator de confusão mencionado anteriormente – a sociedade, interpretada ou deturpada de modos diferentes por cada ideologia. Curiosamente, ao mesmo tempo em que, segundo pesquisas dos mais variados tipos, a leitura cresce em todo o mundo, a poesia, diz-nos o crítico, permanece sendo sempre a ocupação de uma minoria privilegiada ou provavelmente condenada.
Se a poesia, nos chamados primórdios da história, fora o nexo e o liame entre o vate, a sociedade e os deuses, hoje em dia dificilmente encontraríamos uma obra poética que recebesse a aclamação das massas, ou que ao menos exercesse a mesma atração que atores ou mesmo romancistas exercem a um público ainda considerável. Para Berardinelli, portanto, é essa consciência de um isolamento histórico que culmina na formação de grupos artísticos que, no entanto, operam segundo princípios e procedimentos políticos, e cujos membros resguardam-se mutuamente da indiferença pública:
Por isso, poder-se-iam ver os grupos de vanguarda, mais que os “partidos políticos da arte”, como cooperativas de recíproco socorro criadas para limitar preventivamente os danos que poderiam acometer a cada um deles singularmente em decorrência de um previsível isolamento ou falimento artístico. Mais que pelas próprias obras ou antiobras, a maior parte dos escritores de vanguarda tornou-se “historicamente” importante como manifestação exemplar de fenômenos culturais coletivos: e, por isso, típicos de uma época.
Se esse afã de tornar-se parte do zeigeist é benéfico ou nocivo à criação, é uma questão que as próprias manifestações coletivas, em geral propositalmente controversas, deixam mais do que evidente. Essa intenção, porém, revela um elemento de perspicácia e lucidez por parte desse gênero de artistas, pois “em algumas circunstâncias particulares, é principalmente a política que pode dar a um poeta aquele espaço de comunicação pública que sua obra dificilmente conseguiria obter por vias editoriais”.
Berardinelli nos diz que, após os anos brutais da Segunda Guerra Mundial, todos os poetas eram, por definição, de esquerda. No entendimento de cada um deles, equivocado ou não, tratava-se de um posicionamento moral. No entanto, atualmente, “descobre-se se um poeta é de esquerda ou de direita por meio apenas de uma manifestação pública em forma de sátira ou de libelo, ou escrevendo em uma revista ou mesmo um jornal abertamente de parte”. Portanto, o posicionamento político dos escritores contemporâneos é sempre e inevitavelmente mediado por formas e instâncias de apelo ao público.
Porém, se anteriormente o stalinismo tinha a necessidade de um Górki, atualmente as elites políticas, tendo absorvido outros meios de produção de imagens e narrativas, dispensam o serviço dos poetas na construção de sua imagem pública. No entanto, isso somente agrava o problema da indistinção ideológica, pois, nos dizeres do crítico italiano, a intelligentsia sempre perdoou mais facilmente o filofascismo de Pound do que a crítica ao comunismo do socialista George Orwell.
E não somente Orwell, mas também Simone Weil, Karl Kraus; em suma, a essa família dos críticos – “ainda que não se trate de uma família, mas sim de filhos únicos e órfãos” – é a triste confirmação de que a obsessão política, à direita ou à esquerda, não suporta ou impossibilita a “crítica social e cultural exercida individualmente”. Pois embora não seja possível ao homem a manutenção de compartimentos políticos e artísticos estanques em sua consciência, a lição de Berardinelli não deixa dúvidas de que é também impossível servir zelosamente a dois senhores.
Leia também:
Direita e esquerda na literatura (Parte 1) – O processo da história