por Lenio Streck
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Corre a história de um grupo de amigos — todos juízes de Direito — que, praticamente todos os dias, reuniam-se para discutir seus casos. Todos se diziam muito justos e honestos em suas decisões, até que, certo dia, um deles decidiu analisar caso a caso como cada um de seus pares decidia. Levou os resultados ao “colegiado” e todos perceberam que cada um decidia de uma forma e que, no final das contas, acabavam sendo arbitrários e injustos.
Esta história serve muito bem para explicar os perigos de decisões tomadas de forma solipsista e/ou reprodutoras do senso comum teórico. Nomotetas, como os gregos chamavam aqueles que davam (novos) nomes às coisas, os juristas atuam arbitrariamente em prol de uma pretensa superação de um problema jurídico já superado há tempos no campo filosófico. Decidem como querem ao mesmo tempo em que se dizem presos à letra da lei.
O jurista, inserido em um habitus dogmaticus, não se dá conta das contradições do sistema jurídico. As contradições do Direito e da dogmática jurídica que o envolvem não aparecem aos olhos do jurista, uma vez que há um processo de autopersuasão do seu próprio discurso. Esse processo de justificação não prescinde, para sua elucidação, do entendimento acerca do funcionamento da ideologia.
Isso porque a eficácia da ideologia ou do senso comum produzido pela ideologia depende exatamente do fato dela não ser percebida. O que propicia essa “não percepção” é a inserção do intérprete no interior de um determinado imaginário. Por isso é possível afirmar que quem está na ideologia não pode dizer que nela está. Ela não se dá conta de que está. Há uma alienação que o impede desse dar-se conta. O discurso ideológico como tal não é realidade para o indivíduo submetido/assujeitado à ideologia. Podemos fazer uma analogia do discurso ideológico com o discurso do mito. A ideologia permite que se diga que o mito só é mito para quem nele acredita. O desvelar do mito é a instituição de uma ruptura, através de um processo simbólico não atravessado pelo discurso mitológico.
Do mesmo modo que na metáfora dos amigos juízes (e na vida real dos tribunais), também no seio da ideologia dogmática é difícil perceber seu próprio equívoco de dentro do mesmo sistema, isto é, como todos erram igualmente. Por isso a necessidade de se estabelecer bases intersubjetivas das quais se possa superar as visões ideológico-individuais de cada intérprete. O indivíduo, no seu cotidiano, sofre um conjunto de constrangimentos decorrentes da linguagem pública construída na intersubjetividade. Por isso, não estabelece sentidos arbitrários. No plano dos discursos científicos e no âmbito do discurso jurídico e das práticas cotidianas que são descritas e prescritas por aquilo que chamamos de doutrina jurídica, também não podemos “trocar o nome das coisas” e tampouco agir como nominalistas.
É aqui que assume importância o constrangimento epistemológico.
Observemos a relevância do estabelecimento de constrangimentos epistemológicos quando levamos em conta que, no âmbito do Direito, o Supremo Tribunal Federal tem a “última palavra” sobre as controvérsias sociais e a interpretação das leis e da Constituição. Por isso, elaborar constrangimentos epistemológicos equivale a realizar “censuras significativas”, no sentido de se poder distinguir, através da construção de uma crítica fundamentada, boas e más decisões (ou melhor: decisões constitucionalmente corretas das incorretas). Na verdade, para um jurista, tudo isso reforça a tese de que as “decisões de última instância” também podem — e devem — ser objeto de críticas, e não meramente acatadas a partir de um discurso de autoridade, exatamente porque, sob a perspectiva hermenêutica, há um comprometimento com a verdade. Trata-se de uma forma de se colocar em xeque decisões que se mostram equivocadas — no fundo, é um modo de dizermos que a doutrina deve (voltar a) doutrinar e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária e meramente reprodutora das decisões dos tribunais. Por isso, quando o então ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, disse, em um acórdão, não se importar com “o que pensam os doutrinadores”, mas apenas o que dizem os Tribunais, afirmei, de forma peremptória, que o papel da doutrina é constranger esse tipo de pensamento solipsista, na medida em que importa, sim, o que a doutrina pensa.
O constrangimento epistêmico ou epistemológico se coloca, assim, como mecanismo de controle das manifestações arbitrárias do sujeito moderno. Isto porque o problema central desse sujeito “assujeitador” — alude Mattéi — reside na indiferença radical por ele manifestada em relação a qualquer forma de exterioridade, quer seja divina, mundana, quer social. O sujeito torna-se estranho a tudo que não é ele, como se os olhos se tivessem virado nas órbitas para olharem apenas para suas próprias cavidades. Quando alguém diz que decide como quer, ou que decide conforme a sua consciência, está dizendo que o lhe é exterior não o constrange a ponto de alterar a sua opinião. Somente o constrangimento epistêmico pode derrotar a subjetividade particularista, problemática que no Direito assume uma importância ímpar.
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Decisões judiciais solipsistas devem ser constrangidas. Do mesmo modo, acórdãos emanados de últimas instâncias jurisdicionais, embora inegavelmente mereçam ser obedecidos, devem, entretanto, sofrer fortes constrangimentos epistemológicos ou, em outros termos, “censuras significativas”. Desse modo, lança-se um repto à comunidade jurídica: o dever da doutrina jurídica de doutrinar. Isso implica um papel prescritivo arraigado no paradigma democrático, e não meramente reprodutor das orientações do Judiciário — imaginário que se formou e tem ganhado cada vez mais força na teoria do Direito.
Esse é o papel da doutrina em um país democrático: o dever permanente em doutrinar e não ser doutrinada. Neste sentido, venho propondo, especialmente desde Verdade e Consenso, que a doutrina exerça este duro papel de constrangimento epistemológico, de constranger as decisões judiciais fundamentadas a partir de argumentos solipsistas/voluntaristas.
Todavia, é preciso que se diga, não podemos esquecer que, no âmbito do Direito, o constrangimento epistemológico também deve ocorrer quando o intérprete se comporta de forma não cognitivista, isto é, assume um discurso externo ao objeto — transformando-se, assim, em um cético. Tampouco a doutrina pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa: sobre isso, basta ver as inautênticas interpretações que, ignorando o paradigma constitucional inaugurado em 1988, e toda sua principiologia estruturante, reivindicam intervenção militar com base no artigo 142 da Constituição. Ora, se o dispositivo pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais Poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Seria um harakiri institucional.
(Lembra o jurista Michael Stolleis que, quando da edição das leis de Nuremberg, em 1935, os nazistas utilizaram-se exatamente do sistema jurídico como ferramenta de poder, fazendo com que ele fosse nada mais que um instrumento do Führer e seus objetivos. Instrumentalizam as leis e a Constituição. Aplicação da lei aos objetivos do regime. Qual é o ponto? Exatamente a expressão utilizada por Stolleis, que o faz recorrendo à obra de Bernd Rüthers, para definir o que ocorreu naquele período: a interpretação do Direito não fora constrangida (limitada). No Brasil isso pode se encaixar perigosamente como uma luva.)
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Em outras palavras, enfim, o constrangimento epistemológico tem direta relação com o dever de fundamentação e com o direito fundamental a obter respostas corretas/adequadas à Constituição. Toda resposta inadequada/incorreta deve ser constrangida.
É papel precípuo da doutrina criticar os equívocos dos que detêm o poder de dizer e construir o Direito. Na medida em que a própria Constituição Federal estabelece, no artigo 93, IX, que as decisões mal fundamentadas são nulas, o Supremo Tribunal, por exemplo, não tem o direito de, simplesmente, “errar por último”. E, por isso, uma doutrina jurídica crítica pode impedir que más decisões, compreendidas como fruto de uma racionalidade ideológica subjetivista/discricionária (ambas são faces da mesma moeda), se repitam. O Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é.
Recorde-se que, tanto em Gadamer como em Dworkin, é possível distinguir boas e más decisões (pré-juízos autênticos/legítimos e inautênticos/ilegítimos). Isso significa que, quaisquer que sejam seus pontos de vista sobre a justiça e o direito a um tratamento igualitário, os juízes também devem aceitar uma restrição independente e superior nas decisões que proferem, que decorre da integridade.
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Ademais, em países de modernidade tardia, como o Brasil, na inércia/omissão dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento do catálogo de direitos constitucionais (mormente no âmbito do direito à saúde, à função social da propriedade, ao direito ao ensino fundamental etc.), não se pode abrir mão da intervenção da justiça constitucional na busca da concretização dos direitos constitucionais de várias dimensões. Daí crescer em importância a necessidade de uma teoria da decisão judicial preocupada com a democracia. E democracia quer dizer controle das decisões judiciais, uma necessária prestação de contas. Accountabillity.
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