Há progresso no conhecimento, mas não na ética. Esse é o veredicto tanto da ciência quanto da história, e o ponto de vista de cada uma das religiões. O crescimento do conhecimento é real e – a menos que ocorra uma catástrofe de âmbito mundial, – irreversível. Melhorias no governo e na sociedade não são menos reais, mas são temporárias. Não apenas podem ser perdidas, como também certamente o serão.
John Gray, Cachorros de Palha
por Eduardo Wolf
Repressão política, supressão das liberdades individuais, perseguição a opositores; censura, prisões arbitrárias e instituições independentes golpeadas; assassinatos políticos, tortura e violência generalizada: o leitor reconhece de pronto nessa descrição as características de sistemas autoritários e ditaduras várias que fizeram história no século XX. Das mais dramáticas experiências com os regimes totalitários (fascismo, nazismo e comunismo) aos reiterados episódios de governos ditatoriais comuns especialmente na América Latina e na África, não há nada de novo em reconhecer-lhes essas marcas. Que um governo se valha de todos e cada um desses recursos em 2017; que tais práticas possam contar com uma espécie de indiferença administrada de mais de uma década por parte da comunidade internacional; e, mais grave que tudo, que um número significativo de acadêmicos, intelectuais e artistas, além de agremiações partidárias, todos radicados em sociedades democráticas, abrace com entusiasmo incontido as práticas que o século XXI viu produzirem o holocausto, o gulag e outros tantos horrores – eis o que poderia causar algum espanto.
Poderia e, de fato, tem causado. Afinal, a descrição do inferno ditatorial acima é um retrato perfeito e preciso da Venezuela chavista tal como conduzida pelo seu ditador de turno, Nicolás Maduro, sintetizando os únicos resultados duradouros do experimento político da esquerda latino-americana conhecido como “socialismo do século XXI” ou “bolivarianismo”. A insensata e sempre renovada marcha rumo à ditadura iniciada por Hugo Chávez (1954-2013) foi concluída cabalmente pelo arremedo de tirano Nicolás Maduro. Após mais de 130 mortos nos protestos pelo país desde março passado e mais de 400 presos políticos submetidos a torturas como “o uso de gases tóxicos extraídos de bombas lacrimogêneas para aplicar ‘diretamente no rosto da vítima, tapando-o com bolsas plásticas para que o efeito seja mais contundente'”, seguido da ingestão forçada de excrementos no preciso momento em que os presos abriam a boca para respirar por causa do gás no nariz – isso sem falar em espancamentos, choques e abusos sexuais os mais variados –, como bem mostrou matéria recente de Jamil Chade, Maduro forjou e fraudou uma eleição para Assembleia Constituinte, reconduziu ao cárcere alguns dos principais líderes opositores que se encontravam em prisão domiciliar e destituiu a procuradora-geral Luisa Ortega Díaz, cercando o prédio do Ministério Público com suas tropas. Paralelamente a essa sua política oficial, hordas paramilitares de chavistas fazem um serviço ainda mais sujo para a ditadura bolivariana.
Houve espanto, dizia eu, com todo esse quadro dantesco, como espanto houve, igualmente, com o desavergonhado apoio de acadêmicos, intelectuais e agremiações partidárias de países que desfrutam de ordem democrática e imprensa livre à ditadura boliviariana na Venezuela. O Partido dos Trabalhadores, em nota conjunta com o PC do B, reforçou oficialmente seu apoio a Maduro. Roteiro idêntico seguiu o PSOL. Ambos os partidos passaram boa parte de suas trajetórias buscando se afirmar como expressões de uma esquerda democrática, no que comprovam ter fracassado. Fora do âmbito partidário, muitas reações seguiram a mesma direção, e assim tem sido há muitos anos. Luiz Carlos Bresser-Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, chegou a escrever que apenas eleições vencidas pelo chavismo eram eleições democráticas na Venezuela. O professor da UFRJ Emir Sader tuitou que, sendo a alternativa um governo de direita, deve-se apoiar a Venezuela de Maduro. Em entrevista ao blog Inconsciente Coletivo, deste Estado de S. Paulo, o jornalista Fernando Morais culpou os Estados Unidos e o interesse no petróleo pelo que está acontecendo na Venezuela, não sem antes defender Stálin, de quem exibe galhardamente um busto em sua coleção pessoal.
A pergunta relevante face a tão desbragado horror político, contudo, não deveria ser exatamente “como pode isso estar acontecendo?”, como faz sugerir o espanto que menciono acima, mas sim “como é possível que ainda fiquemos espantados?” Não é preciso ser um historiador, por exemplo, para reconhecer que regimes políticos podem degenerar em tirania, seja em alguma cidade-estado grega do Peloponeso há 25 séculos, seja na América Latina do século XXI, e que a ambição do poder legitima a violência quer apelando a ideologias, como o “socialismo do século XXI” ou a mistura de nacionalismo e islamismo que vem solapando as instituições políticas na Turquia, quer recorrendo a subterfúgios como a tentativa de eliminação de um judiciário livre na Polônia.
A resposta a essa questão já foi dada, creio que com acerto, pelo filósofo britânico John Gray. Ao afirmar que não existe progresso em ética, Gray ofereceu uma poderosa chave de leitura para certos problemas da vida política e moral de nossas sociedades. O espanto que ainda sentimos – os que sentimos – com a implementação de uma ditadura aqui ao lado, ou com o endosso de intelectuais a regimes que prendem, torturam e matam é produto direto de nossa ilusão de que existe qualquer coisa como o “progresso moral” da espécie. Não existe. (Gray fala com clareza e precisão sobre essa questão neste vídeo que gravou quando de sua passagem pelo Brasil no Fronteiras do Pensamento).
Claro, não se trata de dizer que não somos capazes de mudar nossas crenças no terreno da moralidade, como, por exemplo, construir um amplo consenso de que a escravidão é uma aberração intolerável, que a tortura é moralmente inaceitável e que democracias livres são melhores do que ditaduras persecutórias. Avançamos muito em todas essas áreas ao longo de séculos (uma análise brilhante de nossas “revoluções morais” pode ser encontrada no livro do filósofo e teórico da cultura Anthony Appiah, O Código de Honra).
Trata-se de reconhecer que essas mudanças em matéria de política e ética (nossas concepções de bom governo, de justiça, de bem, de mal, de certo e de errado, nosso inteiro terreno dos valores) não correspondem propriamente à ideia de progresso que fazemos quando pensamos em ciência e tecnologia. Os avanços científicos e tecnológicos são conquistados, terrenos firmes que não perderemos mais, exceto por uma catástrofe de proporções cósmicas: salvo uma hecatombe, não “desaprenderemos” o teorema de Pitágoras nem “perderemos” a penicilina e a telefonia celular. Os avanços em política e ética não são assim. Quando pensamos que o Estado de Direito e a democracia liberal representativa estão consolidados como melhores formas de governar a vida entre os homens, os fantasmas das ideologias totalitárias ressurgem com novas roupagens, sejam os “bolivarianos” da América Latina, sejam os fascistas camisas pretas que agora assolam as ruas de grandes cidades italianas, como mostrou recente matéria do jornal L’espresso. Quando imaginamos que a tortura foi banida por todos os nossos governos e organismos internacionais, ela retorna no coração da maior democracia do mundo, como os Estados Unidos de George W. Bush, ou na Venezuela, querida dos acadêmicos e intelectuais de esquerda na América Latina.
Quer isso dizer que devemos apenas nos resignar diante das inequívocas atrocidades que testemunhamos? Que devemos calar diante das abjeções dos que, sem corar, justificam, defendem e incentivam tais atrocidades? É claro que não. O fato de não podermos contar com um progresso seguro e estável para nossos valores políticos e morais não nos deve jogar em situação de desespero niilista. Pelo contrário, nos convoca para permanente tarefa de julgar esses valores, a começar pelos nossos, que nos são mais caros, com as lentes mais críticas, fortalecendo nossas práticas nas melhores direções e combatendo, com a força das ideias, das palavras e de nossas ações, o que julgamos ser melhor em cada caso. Fazemos isso quando criticamos governos, quando protestamos contra políticas ou práticas sociais, ou ainda quando analisamos e criticamos posições que julgamos equivocadas. Especialmente, fazemos isso quando mobilizamos todos esses esforços para constantemente reavaliar nossas próprias posições.
Não se trata de progresso. Mas é uma frágil garantia – a garantia possível – de que não praticaremos nós mesmos a barbárie que identificamos nos outros.