por Andrea Faggion
Recentemente, nossos ilustres candidatos à presidência da república – sem dúvida alguma, uma seleção dos brasileiros mais aptos ao desempenho das funções mais importantes da nação – tiveram que declarar seu patrimônio. A polêmica da vez se instaurou com a constatação de que um dos candidatos é um multimilionário. Assim sendo, a despeito de minha particular falta de entusiasmo pela majestosa festa da democracia, da qual não me considero participante, senti-me inclinada a tecer algumas considerações de observadora externa a respeito da interessante intuição popular segundo a qual a riqueza consiste em um vício ou, ao menos, sinaliza a existência de um. Ainda que não seja a primeira vez que abordo o assunto, creio que haja o que ser acrescentado.
Primeiramente, quer me parecer que, se riqueza indica ambição e ganância (coisa que não afirmo nem nego), a cobiça por bens materiais está muito longe de ser o pior vício de um político.
Na política, há os peixes pequenos, meros oportunistas que enxergam a vida pública como o meio mais fácil de engordar uma conta na Suíça, e há os peixes graúdos. Os últimos são os que compreendem a real dimensão do poder do Estado e passam a querer controlá-lo autocraticamente, a tal ponto que dinheiro nem seja mais uma necessidade pessoal. Esses são os que planejam, no mínimo, 20 anos ininterruptos de seu partido no poder e, para tanto, estão dispostos a vender a alma da mãe para que ela passe a eternidade no quinto dos infernos se preciso for.
Naturalmente, eles se vêem como benfeitores da nação, livrando-nos de terríveis males por meio de seu desprendimento em se disporem a passar a vida toda no poder, seja por sua eleição direta ou a de alguma marionete sua. Estou convencida de que esses tipos, em seu íntimo, acreditam mesmo nessa auto-imagem messiânica.
Não posso falar pelo leitor, mas, pessoalmente, são esses os tipos que mais temo na política, especialmente, claro, quando são providos do necessário carisma pessoal. Receio que também sejam esses que bem poderiam declarar um carro popular e algum apartamento de conjunto habitacional como patrimônio do candidato.
Mas voltemos à comum intuição negativa contra os ricos. Talvez, haja por trás dela uma visão um tanto tosca da vida econômica. Parece que a visão de mundo que facilmente ampararia esse tipo de intuição seria mais ou menos assim. A princípio, o mundo seria um paraíso idílico pelo qual a humanidade poderia ficar passeando enquanto supriria todas as suas necessidades por meio da coleta do que a natureza provê espontaneamente. Nesse contexto, o rico seria um perverso que colheria mais frutinhas silvestres para si, tornando-se responsável pela miséria dos demais.
No Brasil, esse tipo de mentalidade é muito difundida. Pensamos em nossas florestas e rios, na dimensão de um país continental, e, pronto, já nos imaginamos ricos por natureza. Pior ainda, constatamos que nosso PIB está entre os 10 maiores do mundo e nos convencemos mesmo de que somos ricos. Em outras palavras, todos os problemas do Brasil e do mundo teriam a ver com distribuição, e não com produção.
Só se esquecem, é claro, de algumas continhas muitos simples. Por exemplo, nosso PIB é um PIB relativo a quantas cabeças mesmo? Basta uma conta simples assim para ficarmos sabendo que somos mais pobres do que países bem menores, como Noruega, Suíça, Japão, etc.
Quando começamos a fazer essas contas e descobrimos que dividir o que há não é o bastante, sendo preciso produzir, criar riqueza, começamos a pensar que deveríamos dirigir nossas suspeitas contra os sistemas que permitem o enriquecimento de quem não é produtivo, ou seja, contra certos meios de geração da riqueza pessoal, e não contra o enriquecimento pessoal em si. Afinal, se precisamos produzir e se nem todos são iguais em atividades produtivas – com alguns trabalhando muitas horas, mas produzindo nelas apenas aquilo que qualquer outro poderia produzir em seu lugar – por que seríamos contra desigualdades de patrimônio per se?
Bom, esse é um argumento liberal bem antigo e batido. Creio que meu leitor já o conheça até muito bem. Mas será que ele encerra a história? Imaginemos que vivamos em um mundo perfeitamente justo pelos parâmetros dessa concepção liberal de justiça: os mais ricos são os que agregam mais valor à sociedade, os que aumentam sua produtividade. Agora, não haveria mais nada a lastimar no acúmulo de riqueza?
Eu tenho a impressão de que, mesmo se aceita toda essa história, ainda persistiria uma intuição de que algo está errado, mas não com o simples contraste de dígitos entre diferentes contas bancárias, e, sim, com o contraste entre o luxo e a miséria.
Quando a patrimônio pessoal de alguém é muito expressivo, tendemos a pensar, simplesmente, que ele tem muito do que não precisa, por mais que ele possa ter ganho tudo que tem muito honestamente. Naturalmente, existe todo um mercado para explorar essa riqueza excedente, coisas que gente comum, como eu, só conhece por documentários da televisão. Pense, por exemplo, nos hotéis e restaurantes que se esmeram em oferecer os mimos mais personalizados a seus clientes. Alguém precisa mesmo de tanta bajulação? O luxo é um mercado que gera empregos, claro. Mas é moralmente louvável que exista esse mercado? Ele é salutar, por exemplo, ao caráter de quem é bajulado? Sobretudo, ele é moralmente admissível, tendo em vista o fato de que há tanta dor no mundo que poderia ser apaziguada com os mesmos recursos?
Aqui, eu não falo de justiça ou de um domínio em que sejam cabíveis intervenções do Estado. Se são ou não, teria que ser matéria de outro artigo. Eu falo de moralidade pessoal. De um certo senso de virtude que é ofendido pelo mundo dos super-ricos, onde empresas competem para ver qual delas massageia melhor o ego de um magnata.
Falo em ego por acreditar que, para além de um certo limite, o luxo deixe de ser uma questão de prazer sensorial e se torne matéria de pura vaidade. Em outras palavras, creio que haja um ponto além do qual não se aumenta mais o desfrute sensorial com determinado estilo de vida. O objetivo passa a ser ostentar o luxo como um troféu diante dos demais. Atingido esse ponto, a sua vaidade vale mais do que a necessidade extrema do outro. Então, a reprovação dessa atitude não é moralmente compreensível para além de queixas de injustiça?
Agora, porém, eu encerro essas ponderações com uma nota sobre a nossa hipocrisia. É muito possível que nós que nos revoltamos com o luxo inacessível dos super-ricos desfrutássemos dele com muito gosto caso as portas desse clube tão restrito fossem um dia abertas para nós. Na verdade, nós já replicamos as mesmas atitudes em nossas vidinhas ordinárias. Ou será que você precisa mesmo carregar um computador tão sofisticado como esse que você carrega nos bolsos todos os dias? Você não gosta de ter sempre um melhor ainda para impressionar os amigos? Ou tudo isso é só para mandar uma mensagem pelo WhatsApp, checar uma notificação do Facebook e chamar um Uber? Sei…
Este texto não é sobre condenar um candidato rico. Não o conheço e também desconheço boas razões para investir meu tempo no estudo da vida e obra dos candidatos à presidência. Como sempre digo e agora repito, seria muito investimento para um votinho singelo dentre dezenas e dezenas de milhões de outros. Contudo, sei que é extremamente possível que, mesmo como pessoa física, o candidato em tela faça muito mais pelos outros do que eu. Não seria difícil, afinal. Gosto de ser a primeira pessoa a quem aponto meu próprio dedo, pois, ao menos comigo mesma, até que tenho alguma familiaridade. Por isso este texto nem mesmo é uma denúncia dos super-ricos. É apenas sobre termos intuições morais plausíveis, intuições que, talvez, resistam mesmo às melhores defesas em contrário, mas nem sempre conseguirmos aplicá-las à nossa própria vida.