Em defesa da torre de marfim

Sem dúvida, a Ética é uma das áreas que desperta maior interesse entre estudiosos de filosofia mundo afora. Como professores universitários, não raro, filósofos se deparam com a incumbência de lecionar sobre ética profissional em disciplinas de serviço para diversos cursos de graduação.

por Andrea Faggion

Sem dúvida, a Ética é uma das áreas que desperta maior interesse entre estudiosos de filosofia mundo afora. Como professores universitários, não raro, filósofos se deparam com a incumbência de lecionar sobre ética profissional em disciplinas de serviço para diversos cursos de graduação. No entanto, curiosamente, não parece nada usual, ao menos no Brasil, que filósofos e acadêmicos das áreas de humanas em geral se dediquem a um estudo de sua própria ética profissional. Nesse sentido, o artigo “In defense of the ivory tower: Why philosophers should stay out of politics” [“Em defesa da torre de marfim: por que filósofos deveriam ficar de fora da política”], de Bas van der Vossen (publicado pela Philosophical Psychology, em outubro de 2014), pode ensejar todo um debate ao qual não estamos tão habituados quanto deveríamos, se, acadêmicos, queremos exercer nossa profissão com responsabilidade.

Em um contexto em que a sociedade brasileira tem discutido ativamente a relação da escola com a política, uma reflexão quanto às questões postas pelo artigo se faz ainda mais necessária, pois é de interesse público, e não apenas da classe dos filósofos ou dos acadêmicos estudiosos da política em geral. Maior ainda é a urgência da discussão quando, de fato, acadêmicos parecem se tornar cada vez mais engajados em movimentos políticos, dados os efeitos práticos que políticas econômicas adotadas pelo governo em tempos de crise têm sobre a academia.

Feito esse preâmbulo, vamos direto à tese de van der Vossen: é moralmente errado, para um acadêmico que trabalha sobre tópicos políticos, se engajar ou ser ativo politicamente. Esses acadêmicos, segundo a tese, não deveriam dar ouvidos aos críticos que os acusam de viver em uma torre de marfim. Pelo contrário, eles deveriam buscar, ativamente, tratar o ambiente universitário, cada vez mais, como uma torre de marfim, não no sentido de serem indiferentes a dados empíricos sobre a política, mas no sentido de evitarem ser eles mesmos os protagonistas de ações políticas.

Os argumentos de van der Vossen em prol dessa tese são, em parte, analíticos e, em (grande) parte, baseados em uma série de resultados de pesquisas empíricas a respeito da tendenciosidade na formação de crenças. Seu pressuposto é que acadêmicos buscam (ou deveriam buscar), primordialmente, a verdade, seja lá o que isso possa significar em matéria de política. Em outras palavras, van der Vossen oferece uma contribuição para a ética profissional de acadêmicos que estudam a política por um viés cognitivista, ou seja, acadêmicos que acreditam desenvolver teorias e argumentos para esclarecer e justificar qual seria a melhor posição em matéria de política ou o que é a política.

As descobertas do autor não farão muito sentido para aqueles que acreditam que sua tarefa, como acadêmicos, é assumir um determinado papel em um combate em curso entre forças opostas. Por sinal, o fato de tantos acadêmicos identificarem-se desta última maneira explica por que a tese de van der Vossen pode soar tão exótica ou esdrúxula hoje em dia. Mas, para aquela minoria que ainda quer entender o mundo racionalmente e julga isso relevante, vamos então aos argumentos de van der Vossen.

O núcleo de sua tese é que o partidarismo, em sentido amplo, decorrente do ativismo é incompatível com a responsabilidade profissional de quem se dedica ao melhor entendimento do mundo político, tanto no que ele é quanto no que ele deveria ser. O acadêmico ativista estaria, desnecessariamente, expondo sua pesquisa à contaminação. Para explicar o ponto, van der Vossen faz uma analogia com uma pesquisadora da área de química que comesse um sanduíche dentro de seu laboratório, enquanto monitora um experimento que poderia ser comprometido pelo contato com poluentes. Essa pesquisadora pode até ser bem sucedida ao evitar que migalhas contaminem o experimento, mas ela teria faltado com a ética profissional por ter se exposto a um risco que poderia ter sido razoavelmente evitado.

Agora, van der Vossen precisa mostrar que o engajamento político, para o acadêmico da área de política, é o equivalente a comer dentro de um laboratório onde se realizam experimentos controlados. É para tanto que ele faz uso de pesquisas psicológicas, que mostram que ativistas, em vez de pesarem argumentos contra e a favor de certas teses, como se espera de um acadêmico, buscam seletivamente confirmar suas posições. Alguns dos experimentos psicológicos que amparam a tese ética de van der Vossen nem sequer envolvem primordialmente o pensamento político. A princípio, eles mostram, por exemplo, uma simples tendência de substituição de respostas a perguntas mais complexas por respostas para perguntas mais simples.

Aplicadas na política, essas pesquisas mostram que, quem tem um partido ou participa de um movimento, substitui respostas para perguntas complexas sobre a melhor política a ser adotada por respostas para perguntas simples sobre a política proposta pelo partido ou grupo político do qual o ativista participa. Diversas pesquisas do tipo, referidas no artigo de van der Vossen, amparam a tese psicológica de que nosso raciocínio é fortemente sensível ao grupo social ao qual pensamos dever satisfações.

Um pouco de reflexão sobre o ponto pode nos fazer notar que, não apenas o grupo oferece o comodismo de respostas prontas para perguntas complexas, mas ele também pode impor sanções como a censura e até a (ameaça de) exclusão àqueles que divergirem das respostas compartilhadas pelo grupo. Em outras palavras, o acadêmico ativista, além de se sujeitar a ser mais suscetível do que a média à preferência por certas respostas, aceita o ônus de não poder acatar certas outras respostas sem se expor a consequências indesejáveis.

Pesquisas citadas por van der Vossen também indicam que, além dos fatores de pertencimento a um grupo, outros fatores que atuam com mais força sobre ativistas do que sobre as demais pessoas fortalecem a tendenciosidade. O mais evidente é o chamado “raciocínio motivado”, que nos leva a substituir o que acreditamos que seja o caso pelo que gostaríamos que fosse verdade. Há também o “efeito halo”, que nos leva a interpretar fatos de tal forma que eles sejam coerentes com outras partes do contexto em que nos engajamos. Para citarmos mais um exemplo, temos ainda a “heurística da disponibilidade”, que faz com que as teses com as quais temos mais familiaridade nos pareçam também as mais plausíveis.

Precisamos enfatizar que essas pesquisas em psicologia sugerem a tendenciosidade da formação de crenças em seres humanos em geral, e não apenas em ativistas. Mas todas elas indicam que, ao ser ativista, o acadêmico, em vez de procurar neutralizar os efeitos desses fatores sobre si mesmo, acaba, justamente, por se expor a todos eles maximamente. E isso mesmo sendo o acadêmico, dentre todas as pessoas, aquela que deveria manter a mente mais aberta a todos os argumentos possíveis. O acadêmico ativista mostra-se, então, como aquele que não apenas come o sanduíche enquanto faz o experimento, mas dá toda uma festa dentro do seu laboratório.

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