por Francisco Razzo
Abertura. A Besta.
William Golding, no clássico O Senhor das Moscas, nos ensinou uma lição importante e inesquecível sobre a natureza das crianças e, consequentemente, sobre os seres humanos: “que engraçado é achar que a Besta é algo que podem caçar e matar”. Nós sabemos — ou deveríamos saber — que não há saída. A Besta não pode ser morta, nem por crianças nem por adultos. Na verdade, não pode ser morta por ninguém. A Besta somos todos nós. Filosoficamente falando, um dos maiores problemas do otimismo romântico, cuja origem como se está cansado de saber remonta a Rousseau — o maior inimigo da propriedade privada —, foi acreditar na bondade natural dos seres humanos. No idílico estado de natureza, os seres humanos eram bons, mas a propriedade privada — o tentador fruto proibido — produziu esta terra desolada e nos exilou do paraíso. Infelizmente, mesmo depois de tudo o que o infeliz século XX atravessou, essa crença não se exauriu. Continua a povoar corações e mentes em busca de reconciliação redentora. O fato é que todo esforço civilizatório contra a barbárie não passa de uma frágil e superficial camada que cobre — na tentativa de barrar e controlar — a grande besta em todos nós. Rousseau, para nossa desgraça, estava errado.
Como descreveu Golding, não existe saída. A Besta só deseja uma coisa: escapar. Por isso não adianta apelar para a dramatização moralista e politicamente correta de que há genuína luta para um mundo melhor e mais justo, jovens engajados na busca de um reino de liberdade e justiça não encontrão nada além de equívocos, tristeza e desilusão. “Você sabe, não é?”, perguntou o Senhor das Moscas, “que sou parte de você, não sabe? Que estou perto, perto, perto! Que eu sou a razão pela qual não há saída? A razão pela qual as coisas são o que são?” Enfim, como ousamos esquecer disso?
Interlúdio.
Em Cachorros de Palha, o filósofo britânico John Gray tem uma expressão excelente para sintetizar o lugar do homem na natureza ou a natureza no homem: “o genocídio é tão humano quanto a arte ou a prece”. E a sua fórmula lapidar para definir o ímpeto humano não poderia ser mais realista, no sentido hobbesiano do termo: “os homens são animais fazedores de armas e com uma insaciável inclinação para matar”. Numa belíssima expressão de Hannah Arendt, que depois Roger Kimball usou como título do seu excelente livro, penso que o ímpeto totalitário consiste na revolta contra esse dado fundamental da condição humana descrito por Gray, isto é, como um tipo de “experimento contra a realidade — o qual, entre outras coisas, encorajou as pessoas a crer que “tudo era possível e nada era verdadeiro”. Não vivemos em um eterno reino de abundância, portanto nem tudo é possível.
As mãos sujas da sociedade.
O recente movimento estudantil de ocupações das escolas, cujo objetivo aparente declarado por eles mesmos é combater a PEC 241, que estabelece limites de gastos para os governos dos próximos vinte anos, e combater a Medida Provisória para Reforma do Ensino Médio, cujo objetivo básico será flexibilizar as disciplinas de acordo com a vocação dos estudantes, pode até apresentar a melhor das boas intenções diante de um mundo repleto de corrupção, egoísmo cego e ganância financeira, mas o fato é que, sem exagerar no fatalismo, será sempre frustrante depositar esperanças políticas nas boas intenções de adolescentes. Quando jovens, para acentuar o problema, filhos de uma educação vergonhosamente precária, presumem ditar politicamente os rumos da educação, da sociedade, da civilização e até mesmo da própria humanidade, não duvide daquilo que esses anjos não tão bons da nossa natureza podem realizar — de pior. Pois a Besta escapa.
E ela escapou. Um assassinato dentro de uma das escolas ocupadas no Paraná era razão mais do que suficiente para o imediato fim das invasões. Lucas foi morto a facadas por um amigo. Foi intencional, por mais que tentem condicionar e, por isso, aliviar o fardo do assassino, um garoto de 17 anos — ainda estudante do último ano do Ensino Fundamental. Os ativistas deram de costas. E em quem depositariam a culpa? Não vamos exagerar, eram jovens querendo melhorar o mundo. Não obstante o sincero relato de uma professora que esteve no local: “não quero falar do horror que eu vi lá dentro. Tive que limpar sangue de aluno?”, eram apenas jovens querendo melhorar o mundo. Portanto, o único culpado possível só poderia ser a Besta. Porém, em uma surpreende estratégia de marketing lançada nas redes sociais, o discurso da filha de um militante do moribundo PT, Ana Júlia Ribeiro — que chegou até ser comparada com a ativista paquistanesa pelos direitos humanos Malala Yousafzai —, conseguiu “limpar as mãos sujas de sangue” dos responsáveis. Nada como encontrar paz de espírito na mais poderosa abstração usada para o alívio da consciência: a Sociedade — a aquela que eternamente corrompe a pureza moral de toda boa intenção.
Interlúdio.
Gerd Koenen, historiador alemão e ex-comunista, autor de obras como Utopia do Expurgo e ‘The Red Decade’ (traduzida para o português como A Revolta de 68 e o flerte com o totalitarismo), descreveu a respeito de sua participação no movimento estudantil alemão nas décadas de 60 e 70 e como sua geração se esquivava de responder moralmente pelo que acontecia na China, na União Soviética, em Cuba ou Vietnã: “com eles sempre defendíamos também parte da nossa identidade e valores. Independentemente do que lá acontecia, tudo era sempre forçado em nossos esquemas de amigos e inimigos. Nunca nosso interesse dirigia-se a tão pouco ao que realmente se sucedia. Contra todas as realidades desumanas, impregnávamos com um protetor ideológico de fator sempre mais forte — as guerras civis, que aplaudíamos como “luta de libertação”, ou as práticas dos comunistas no poder, que muitas vezes considerávamos ainda muito burguesas e burocráticas, códigos apenas para demasiada moleza e complacência”. Não precisaríamos falar mais nada sobre essas histórias que agora se repetem não mais como tragédia, mas como farsa.
Um possível desfecho. A grande farsa.
Entre final de 2015 e início de 2016, também houve um movimento estudantil de ocupação no Estado de São Paulo por conta da proposta do governo Geraldo Alckmin de reorganização das escolas. Um pequeno detalhe passou despercebido pelos observadores na época e vale muito a pena recuperá-lo a fim de entender o estado atual de coisas pelas quais passamos, principalmente quando se trata de justificação para o recurso de violência no exercício do ativismo político de esquerda. Em maio deste ano, um rapaz, que filmava a ação da Polícia Militar do Estado de São Paulo no processo de desocupação da Diretoria de Ensino da Região Centro Oeste, grita: “isso é estado de exceção”. Aparentemente uma mera declaração sem muita consequência dita por alguém no calor do momento. No entanto, ela revela a grande farsa criada pela esquerda para impor e justificar toda e qualquer ação violenta em uma sociedade cujas leis foram suspensas. Eis a farsa do estado de exceção e do estado de emergência.
Por que vale a pena deter-nos nessa pequena sentença perdida em um gesto de indignação em maio de 2016? Por pelo menos duas razões importantes: primeiro, ela contém a auto-compreensão dos intelectuais de esquerda sobre a forma do atual engajamento político e, segundo, ela implica um campo de experiência sobre esse engajamento que passa ser vivido pelo ativista, e não só pelo intelectual, como estado urgência — com objetivo de substituir o antigo e desmoralizado método da práxis revolucionária. E uma nota de atenção: não à toa, uma das principais coleções do catálogo da editora Boitempo — coleção aliás coordenada por Paulo Arantes, sem dúvida um dos mais importantes intelectuais brasileiros de esquerda, que, além de professor aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, ajudou a fundar o PSOL — chama-se justamente Estado de Sítio.
Essa expressão acusatória — e que pretende descritiva de uma situação sócio-histórica muito bem determinada — de que “vivemos um estado de exceção” precisa ser levada mais a sério por qualquer um interessado em compreender os motivos fundamentais desses atuais movimentos de ocupação. Pois a ideia de “estado de exceção”, neste contexto ideológico, remete-nos ao que Walter Benjamin traçou como espécie de programa da “tradição dos oprimidos”, que, segundo ele, deve nos ensinar “que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” da sociedade capitalista. “Precisamos”, continua, “construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, percebemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência”. O estado de exceção é o extremo oposto do estado de direito. A farsa de que estamos vivendo em um constante estado de exceção tem como consequência imediata criar a ilusão de que não há lei, só força. Ou seja: é o novo experimento da esquerda contra a realidade — o qual, entre outras coisas, encoraja as pessoas a crerem que tudo não é só permitido, como deve ser permitido com urgência.
Francisco Razzo é mestre em filosofia pela PUC-SP e professor. É autor do livro A Imaginação Totalítária (Editora Record)