por Rodrigo Coppe
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“ . . . de que nosso pensamento não caminha num chão seguro e firme, mas sobre buracos, como que fechados os olhos, deixando de existir por um momento, e chegando, mesmo assim, são e salvo ao outro lado.
Na verdade, deveríamos estar desesperados há muito tempo, pois em todos os campos nosso conhecimento é entrecortado de tantos abismos . . . fragmentos boiando num oceano insondável.”
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Robert Musil, O jovem Törless
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Michel de Montaigne (1533-1592) é o ensaísta por excelência. Os seus Ensaios, publicados pela primeira vez em 1580, são conhecidos como a obra que inaugura o ensaísmo como gênero literário e que fará escola pelos séculos seguintes.
Um dos famosos ensaios do século XX tem o próprio Montaigne e sua obra como objeto. Stefan Zweig (1881-1942), em 1942, escreveu um longo texto intitulado “Montaigne e a liberdade espiritual”. A escolha de Montaigne por Zweig, como comenta Alberto Dines no prefácio do texto que abre o livro “O mundo insone e outros ensaios”, não se deu pelo fato de ter sido o inventor do gênero, mas pelos valores que encarnava. É a partir do tema da liberdade que Zweig deseja falar, em confronto com o mundo circundante em que o fascismo e seu congênere germânico levavam a Europa ao terror, obrigando-o a fugir da Alemanha. É no contexto em que a liberdade estava sendo atacada e asfixiada que ele retoma Montaigne, o “defensor mais decidido de todos os tempos” da liberdade individual.
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A geração de Zweig, que experimentou a liberdade do pensamento e sua livre expressão, precisou encarar nos anos 1930 as novas amarras e correntes que o tempo histórico forjava. Mas quem esperaria que ela seria atacada e vilipendiada novamente e das formas mais cruéis, insidiosas e inimagináveis?
Sigmund Freud, décadas antes, ao refletir sobre os desenlaces da Primeira Grande Guerra em Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915), havia tratado da tendência que nós carregamos em nos esforçar em afastar a ideia de que somos também marcados pelo ódio e que ele aparece vez ou outra de maneira mais aguda. Desenhando algumas linhas do que comporá mais tarde O mal-estar na civilização (1930), Freud afirmava que
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“[…] era injustificada nossa amargura e dolorosa desilusão pela conduta incivilizada de nossos concidadãos do mundo nessa guerra. Fundava-se numa ilusão a que nos havíamos entregado. Na realidade eles não desceram tão baixo como receávamos, porque não tinham se elevado tanto como acreditávamos”.
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Zweig, por sinal, conviveu e se relacionou com Freud durante três décadas. Admirava-o profundamente, confessando que por intermédio do fundador da psicanálise, ele teria experimentado “mais uma vez exemplarmente que não existe coragem mais magnífica no mundo do que a coragem livre e independente do homem espiritual”.
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Em que consistiria essa “coragem espiritual” e como ela se conecta à prática ensaística? Diria, primeiramente, antes de me aventurar em apontar algumas de suas características, que todo bom ensaísmo é a concretização e a expressão da coragem espiritual na linguagem escrita.
Zweig toma Montaigne como um amigo porque entende que o contexto em que o francês realiza seus Ensaios era “desesperadoramente” semelhante ao dele: quando a esperança de um tempo novo, da “humanização do mundo”, foi se apagando lentamente. A questão que Montaigne perseguiu por toda sua vida, frente ao mundo marcado por guerras fraticidas e fanatismos ideológicos e religiosos, era a de como manter a liberdade interior e a dignidade, como não capitular às baixezas morais de seu tempo. É Montaigne como um exemplo para o seu próprio tempo o ponto de Zweig, visando compreender como ele conseguiu alcançar essa liberdade interior num tempo, de certa forma, semelhante ao dele. A luta por manter-se “autêntico contra todos e contra tudo”, “ser sensato para si mesmo, humano em um tempo de desumanidade, livre em meio à selvageria de massa” era a preocupação fundamental de Montaigne.
A palavra ensaio vem do latim tardio exagium, “prova, experiência, estudo” e se refere, como ensina Sílvio Lima em Ensaio sobre a essência do ensaio (1964), “ao exame valorativo, à contrastaria das moedas (avaliação de seu toque, título, quilate, ou dinheiros de fino). Ensaiar é fazer prova, analisar: monetam inspicere”. O que o “ensaiador” realiza, assim, é o ensaiamento dos metais por meio da balança. No horizonte do pensamento e da escrita, ele se constrói pelo contrabalanceamento das ideias, pelo sopesar dos juízos. Refletir, distinguir, ponderar.
Tendo como foco os Ensaios de Montaigne, mas enxergando ali as características universais do gênero, Lima afirma que o ensaio é o “autoexercício da razão”, “a marcha evolutiva e intérmina de um pensamento que acorda, se desentorpece, estende as ‘pernas e os braços’ e se projeta para a frente, para o espaço vazio, num arranco de autonomia”. A ideia de autonomia nesse contexto não pode ser confundida com os traços narcisistas que reinam nas sociedades ocidentais contemporâneas — ilusão da total soberania de si e a obsessão por si mesmo —, marca do sujeito que não se abre, jamais e sinceramente, a qualquer instância além dele mesmo. Mas ela se relaciona à liberdade em se caminhar na busca da verdade, sempre atento às contingências pelas quais essa experiência é atravessada, nunca se entregando sem reflexão persistente às suas próprias crenças: “só na medida em que pensa, e enquanto pensa, é que o eu se liberta. O ensaio constitui, pois, uma escola de liberdade”, diz Lima. O ensaio, assim, é um exercício, uma ascese, um esforço contínuo do pensamento em não capitular às hordas diluidoras, pois a liberdade “é um bem sempre precário, ou frágil; ganha-se pelo pensar, como se perde pelo não-pensar. A liberdade não é um estado, portanto, repouso, mas um ato ou função, portanto, um aspirar, um esforçar-se.”
Se a capacidade de fazer distinções é uma das primeiras vítimas dos fanatismos em suas múltiplas manifestações, o ensaio se torna uma espécie de antídoto, pois não quer parar de perguntar, de perguntar-se. “Vou, inquiridor e ignorante”, dizia Montaige sobre a sua prática. Por isso o gênero ensaístico é antiautoritário por excelência. “Apenas um homem livre, ou libertado, pode inquirir e ignorar. Os regimes autoritários proíbem inquirir e ignorar”, diz Starobinski em “É possível definir o ensaio?”. Esses regimes “tentam impor em toda parte um discurso infalível e seguro de si, que nada tem a ver com o ensaio […], [que] pode comportar de arriscado, de insubordinado, de imprevisível, de perigosamente pessoal”.
Voltar a razão contra ela mesma, buscando dissecar o lugar daquele mesmo que faz o caminho reflexivo, deixando claro que a sua subjetividade também está no jogo. É essa a vertente subjetiva do ensaio, como ensina Starobinski,
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“em que a consciência de si desperta como uma nova instância do indivíduo, instância que julga a atividade do juízo, que observa a capacidade do observador […] não faltam declarações de Montaigne atribuindo o papel primordial ao estudo de si, à autocompreensão, como se o ‘proveito’ buscado pela consciência fosse lançar luzes sobre si e para si”.
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Percorrer e sondar os espaços interiores, combater suas próprias crenças no confronto com o mundo circundante, caminhar entre o chiaroscuro de que somos feitos. Resistir ao contemporâneo que nos envolve e busca nos sorver para a repetição mecânica e massificadora. O ensaísta recusa a resposta pronta e acabada. Tateia, restaura a intimidade com a dúvida e nela permanece, sem nunca se sujeitar: exercício do livre pensar, concentrando-se nas perguntas e não muito interessado na proposição de respostas. O ensaísta é aquele que ensaia a si mesmo, diz Starobinski. Só assim se satisfaz a lei do ensaio: é a própria problemática do pensamento, a autorreflexão, que está em jogo.
Há possibilidade de qualquer humanismo ou esclarecimento — não aquele que cega com suas falsas promessas — sem mergulharmos fundo no abismo de nossas profundezas? Sem encará-las? Parece que não é possível um encontro consigo mesmo e com o mundo circundante sem esse caminho, que tem um preço, mas que nos liberta da exigência de ser o tempo todo uma resposta ordenada a um outro que não para de exigir algo que não posso dar. É a incapacidade de suportar o inacessível, de permanecer nesse lugar que não se ultrapassa, um elemento da imaturidade reflexiva? Precisamos responder, simbolizar e organizar tudo?
Ensaiar é a expressão da coragem espiritual — tem a ver com a capacidade em pensar sua própria experiência frente ao mundo, convidando para a sala de estar a ambivalência, o inacessível, a precariedade. Aspectos, à primeira vista, inconvenientes. Mas não há muito o que se fazer. Senta-se com eles e tenta-se desenrolar uma conversa ou passa-se a vida tentando, sem sucesso, expulsá-los de casa, numa agonia de Sísifo. Uma capacidade em aceitar tudo, mesmo aquilo de mais evidentemente perturbador: o impossível. Não querer expulsá-lo, mas afirmá-lo, é exercitar a liberdade, é experimentar.
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Referências:
MONTAIGE, Michel de. Os ensaios. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LIMA, Sílvio. Ensaio sobre a essência do ensaio. Coimbra, Arménio Amado, 1964.
STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio?. In: PIRES, Paulo Roberto. Doze ensaios sobre o ensaio. Antologia Serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2018.
ZWEIG, Stefan. O mundo insone e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
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