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Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte — conduzida e traduzida por Rodrigo Coppe e Filipe Campello —, o filósofo Charles Taylor falou sobre identidade, cidadania, religião, neoliberalismo, democracia. Sobre nossa condição, nossas circunstâncias.
Autor de obras como A Ética da Autenticidade, As Fontes do Self e Uma Era Secular, Taylor é um dos mais celebrados pensadores contemporâneos, com importantes publicações nas esferas da filosofia moral, da epistemologia, da filosofia da linguagem e também no debate público.
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Desde a publicação do seu livro Uma era secular, em 2007, vimos algumas mudanças nas relações intricadas entre religião e sociedade — p. ex. o declínio do poder do Estado Islâmico e a ascensão de governos de ultradireita em grande parte apoiados em discurso religioso conservador. Como você vê essas mudanças, e como a influência das religião na esfera pública mudou? Adicionaria algo ao diagnóstico de alguns anos atrás?
Penso que as principais tendências que eu observei há uma década ainda continuam. A vida espiritual e/ou religiosa assume a forma de uma “busca” individual em um número crescente em diferentes direções. Muitos engajados nessa busca estão se movendo dentro da zona da fé cristã. Mas também há uma reação dentro de igrejas históricas diante da perda de membros, uma reação de pânico, de medo de desaparecer, e uma tentativa de se unir na retaguarda e proteger (aquilo que é concebido como) a ortodoxia. É aqui que vemos a política de ultradireita que você menciona, que é parcialmente fundada neste tipo de reação ultraortodoxa.
Tanto denominações cristãs quanto muitas vertentes do islã estão divididas entre campos ultraortodoxos, normalmente de inclinação salafista no islã (p. ex. Wahabbis), por um lado, e campos de maiores diversidades espirituais (p. ex. Sufis), de outro. Os ultraortodoxos de cada campo com frequência procuram reanimar as antigas guerras religiosas. Aqueles envolvidos na busca individual [seekers], por outro lado, buscam a coexistência e o diálogo.
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Em relação ao sentido de universalidade ou de valores comuns compartilhados, vertentes pós- e decoloniais tem tentado alertar para o fato de que um discurso de pretensões universais muitas vezes se utilizam de uma narrativa que acaba por legitimar formas de dominação. Você acredita que ainda há espaço para a defesa de valores universais sem negligenciar estas críticas?
Acho que podemos identificar valores comuns e compartilhados que podem ser uma base para uma colaboração produtiva e equitativa entre pessoas de diferentes raças, nacionalidades, crenças religiosas e filosóficas. Contudo, por conta de limitações — muitas vezes compreensíveis — de entendimento historicamente derivadas que todos nós sofremos, isso requer muito mais entendimento mútuo e uma superação muito maior de estereótipos do que nós já alcançamos até aqui. Este tipo de entendimento mútuo ainda é um processo em desenvolvimento, um work in progress. Como muitas vezes é mais confortável ser irredutível, e insistir que não há nada de errado na nossa visão atual, o progresso é difícil, e requer o enfrentamento com certos movimentos políticos que se mobilizam em torno dessa noção de autossatisfação.
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O debate europeu sobre secularismo e o papel da religião na sociedade parece ser diferente no contexto brasileiro: enquanto nos países europeus há um foco em desafios de convivência multicultural, há, no Brasil, uma forte influência de grupos religiosos ligados a projetos políticos. Você acredita que seu diagnóstico é valido neste contexto?
Não sou tão familiarizado com o cenário brasileiro como eu gostaria, mas, de minha distância, parece que o Brasil é altamente diversificado: o catolicismo original do colonialismo europeu coexiste com práticas e manifestações religiosas afro-brasileiras. Com a crescente influência de igrejas protestantes, e com a vinda de outros imigrantes da Ásia, etc, a diversidade se intensificou. O Brasil nesse sentido é mais próximo aos Estados Unidos do que a países europeus, que herdaram uma cultura entrelaçada com uma única denominação cristã. Mas eu realmente não estou informado o suficiente para saber se minha descrição do Ocidente é acurada ou não. Eu adoraria saber.
Eu acredito que a diversidade entre diferentes igrejas e denominações religiosas poderia oferecer uma base para este tipo de abertura colaborativa de respeito mútuo que defendo enfaticamente.
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Você acredita que o discurso religioso adotado por governos de ultradireita pode comprometer o pluralismo de sociedades democráticas? E, neste cenário, a religião ainda poderia, ao contrário, cumprir um papel crítico em fortalecer a democracia?
Sim, a ultradireita é uma grande ameaça à democracia. E, no nosso contexto, é a espiritualidade daqueles em sua busca individual, com sua tendência à abertura e ao diálogo, que têm fortalecido a democracia em sociedades com grupos culturais diversos. Esta batalha entre mobilização política em torno de uma interpretação mais estreita da religião ancestral, de um lado, e uma democracia mais aberta de respeito mútuo, de outro, tem sido disputada em várias partes do mundo, não apenas no ocidente, mas também na Europa oriental (Polônia e Hungria, por exemplo), na Índia…
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No seu livro Ética da autenticidade, você chama atenção para ambivalências de um discurso individualista fundado no imperativo da autenticidade. Você entende que sintomas contemporâneos de sofrimento social estão ligados a este modelo de liberdade como autenticidade?
Essa é uma questão muito importante. No Ocidente, nas décadas recentes, a ética da autenticidade — ou seja, a noção de que cada ser humano tem o seu próprio modo de realizar sua humanidade — foi vivido frequentemente como uma espécie de simbiose com uma outra forma de individualismo: a ideologia que reverbera e dá suporte ao neoliberalismo. É a ideia de que cada pessoa pode realizar suas próprias ambições na vida somente se trabalhar duro e for disciplinado o bastante. Os perdedores [losers] têm apenas a si mesmos para culpar. As sociedades sob o domínio desse pensamento consideram-se meritocracias: as pessoas certas ascendem às posições dominantes porque elas merecem estar lá, por causa de seu talento e formação. O resultado de tudo isso é perder de vista a grande importância da solidariedade para uma democracia saudável e, de fato, o valor da preocupação com o próximo. Mas a ética da autenticidade não precisa ser vivida no contexto dessa visão distorcida da condição humana.
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Esse sentido de autenticidade acabaria, então, se tornando a grande (e, provavelmente, nunca alcançável) promessa do mercado de trabalho: seja autêntico e flexível — ou, como tem sido dito, ‘empreendedor de si mesmo’.
A noção de “empreendedor” é parte dessa noção de autossuficiência que acabei de denunciar. Ele acompanha uma imagem da economia que coloca grande importância na produção de bens e serviços para consumo individual em detrimento de formas de auxílio social — assistência médica, assistência a idosos, ajuda aos necessitados etc. Sob o neoliberalismo, esses serviços costumam ser colocados em porções escassas, com base no fato de que eles não são realmente necessários se as pessoas assumem a responsabilidade por si mesmas. Gastar muitos recursos com isso é visto como prejudicial à produção de bens individuais colocando em risco nossa economia ao torna-la menos competitiva em um mundo globalizado.
Agora, a Covid-19 mostrou o quão desastroso isso tem sido para nossas sociedades, e a esfera pública menos desenvolvida e as enormes desigualdades voltaram a nos assombrar. Tenho a esperança de que isso nos force a reconstruir nossas sociedades a partir de fundamentos mais sólidos.
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Ao longo dos seus trabalhos, um de seus maiores esforços foi o de mostrar que definir subjetividade é uma tarefa difícil e complexa, mas que há uma importante noção de identidade ligadas às noções modernas de sujeito. Mais recentemente, a questão identitária tem assumido um papel amplo e ambíguo, que vai desde tensões situadas em setores mais à esquerda até políticas nacionalistas e xenófobas de ultradireta. Em que sentido você vê que a noção de identidade pode ainda ser produtiva?
“Identidade” tornou-se um conceito básico de nossa compreensão social e política. Quando isso acontece, você não pode voltar atrás, não pode simplesmente esquecê-lo. Mas o que tem nos prejudicado não é o conceito em si, mas a reação defensiva de desconfiança, hostilidade e acusações de pessoas de uma identidade contra outras. O que é necessário é o fortalecimento da identidade comum dentro das sociedades: a identidade de cidadania, que todos nós compartilhamos, e a identidade humana que nos é comum.
Em outras palavras, existem identidades que nos encorajam a ser abertos, a sentir e a praticar a solidariedade com nossos pares, e esse é o único antídoto para a raiva, o ciúme, a postura defensiva e o ressentimento de certas identidades coletivas mais restritas.
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