Eugen Rosenstock-Huessy: O Pensador Impuro (parte 1)

Fabrício Tavares de Moraes comenta a vida e obra do pensador alemão Eugen Rosenstock-Huessy.

I know that I am and will,
I am willing and knowing,
I will to be and to know,
facing in four directions,
outwards and inwards in Space,
observing and reflecting,
backwards and forwards through Time,
recalling and forecasting.
W.H. Auden, “Aubade”

por Fabrício Tavares de Moraes*

Zygmunt Bauman, naquela que é talvez uma de suas principais contribuições para nosso entendimento dos processos e crises sociais da contemporaneidade, diz que “não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em ‘sujas’, mas tão-somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza”[1]. Isto significa que coisas “sujas” num contexto podem tornar-se puras simplesmente porque foram colocadas em outro lugar – e o autor exemplifica: sapatos lustrados tornam-se sujos se postos na mesa de refeições, assim como uma omelete torna-se repugnante se nos deparamos com ela em nossos travesseiros.

O binômio da pureza/impureza em Bauman tem obviamente uma conotação sócio-política, e de fato é crucial para o entendimento da mentalidade subjacente aos expurgos, movimentos xenófobos e “limpeza étnica”. No entanto, nos aspectos antropológico e religioso, conforme explorado por Mary Douglas, por exemplo, a questão da impureza cerimonial diz respeito também ao estabelecimento de categorias e fronteiras da própria ordem cósmica. De modo que, numa análise das leis levíticas, Douglas entende que santidade implica não só conformação à respectiva classe, mas também a completude, o que, por si, evita “a confusão entre diferentes grupos de objetos”. Os animais impuros, portanto, “seriam aqueles que não se conformam inteiramente à sua classe… São membros imperfeitos dela, ou animais cujas classes desafiam o esquema geral do universo”[2].

Essa percepção da impureza não como negligência sanitária, mas como infração e superposição de categorias é essencial para a compreensão do pensamento de um autor tão multiforme como Eugen Rosenstock-Huessy. O próprio título de sua coleção de ensaios (que inclui textos como “A Desintegração do Homem e o Ka Egípcio”, “Heráclito e Parmênides”, “Tribalismo” e “A Alma de William James”) já remete à “impureza” deliberada de seu pensamento: I am an Impure Thinker [Eu sou um pensador impuro]. A referência mais imediata do título é, contudo, o chamamento do profeta Isaías, “o homem de lábios impuros”, num período conturbado logo após a morte do rei Uzias[3].  

De certo modo, Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) reflete em sua própria vida as grandes transformações e convulsões que sacudiram tanto a Europa quanto a América: tendo vindo de uma lar judeu, converteu-se ao cristianismo protestante aos 17 anos, no entanto foi quem conduziu Franz Rosenzweig novamente às suas raízes judaicas, a partir de um debate acerca da revelação versus razão; juntamente com Rosenzweig, estudou com Hermann Cohen, à época não só uma das estrelas do neokantismo mas também um dos grandes nomes do renascimento da filosofia judaica; participou da 1ª Guerra Mundial como tenente na artilharia de campanha; levou a cabo iniciativas para a educação de adultos e, após 1933, quando emigrou definitivamente para os Estados Unidos (tendo praticamente antecipado a monstruosidade que se tornaria a política de Hitler), foi designado pelo Presidente Roosevelt “como consultor do centro de treinamento de lideranças Civilian Conservation Corps”[4].

Eugen Rosenstock-Huessy reflete em sua própria vida as grandes transformações que sacudiram tanto a Europa quanto a América

Nos Estados Unidos, exerceu por um tempo a cátedra de Cultura e Arte Alemãs em Harvard. No entanto, como nos lembra Peter Leithart, sua erudição e referências abundantes à “sociologia, direito, filosofia, religião comparada e várias outras disciplinas” dificultavam sua alocação num departamento específico. “Harvard não sabia o que fazer com ele. Mas uma vez que ele falava bastante sobre Deus, enviaram-no à faculdade de teologia”[5]. Suas frequentes menções a Deus, porém, chocaram-se com o secularismo de outros membros de seu departamento, levando-o a seu afastamento em 1935, quando aceitou a cátedra de filosofia social em Dartmouth College, na cidade de Hanover, em New Hampshire, onde permaneceu até sua aposentadoria.

Ainda em vida, Rosenstock-Huessy teve como admiradores Alfred North Whitehead (que também ministrava aulas em Harvard), Lewis Mumford e W.H. Auden, que, além do prefácio para I am an Impure Thinker, escreveu o poema “Aubade”, quando da morte do filósofo.

O poema[6] de certo modo faz referência a uma das ideias centrais de Rosenstock-Huessy, isto é, a “Cruz da Realidade”. Para o filósofo, todo indivíduo vive no centro dessa Cruz: o eixo horizontal representa uma linha temporal, tensionada entre passado e futuro. O tempo presente, seguindo a tradição agostiniana, é sempre uma combinação complexa e tensa de demandas igualmente legítimas por inovação e pela manutenção da tradição (conforme veremos adiante, há implicações linguísticas e sociais para isso).

O eixo vertical da Cruz, por sua vez, representa o eixo espacial. Rosenstock-Huessy opõe-se ao entendimento newtoniano do espaço como “extensão pura”: o espaço da vida interior de fato atua ora em tensão, ora em conformidade ao mundo exterior. Desse modo, a existência humana é excruciada entre quatro direções: passado e futuro, interior e exterior – algo próximo à metaxia de Platão e Eric Voegelin.

Obviamente é possível livrar-se dessa tensão amputando um ou outro polo da Cruz da Realidade:

Podemos rejeitar o futuro e fechar-nos, como os Amish o fazem insulando-se na Pensilvânia, num casulo seguro do passado, ou podemos rejeitar o passado por meio da violência revolucionária. Dilacerados pela cruz, podemos encontrar uma falsa unidade ao comprometer-nos com a política fascista. Podemos criar muros impermeáveis ao redor de nossa comunidade para manter afastadas todas as influências externas, ou podemos tentar viver inteiramente no “exterior”, como cosmopolitas sem raízes, sem qualquer grupo “interno”…  Agir sob a tentação de descer da cruz produz apenas deformidades na sociedade e na psique humanas. Para viver bem, viver de forma madura e humana, é necessário aceitarmos primeiramente que a vida é a vida na cruz[7].

Mas a vivência tensional na Cruz da Realidade é também expressa na linguagem, e quaisquer desarmonias entre os polos se manifestam nas “quatro doenças da linguagem”. Assim, “a guerra, a revolução, a decadência e a crise são as quatro formas de malogro”; mais especificamente, “na guerra, pessoas que julgam que devem ser escutadas são excluídas; na crise, pessoas que querem escutar não são incluídas. Na revolução, ordens que esperam ser cumpridas são ridicularizadas; na degeneração, gritos que esperam ser compreendidos permanecem inaudíveis”[8].

No âmbito daquilo que chamou Gramática da Cruz, a guerra é a surdez, “o momento em que o fato de vizinhos no espaço não falarem um com o outro se torna intolerável”; a revolução, por seu turno, “representa uma ruptura da linguagem, mas não ruptura entre vizinhos espaciais. Nenhuma revolução escuta a antiga língua da lei e da ordem; ela cria uma nova linguagem”.

Assim, se a guerra é o conflito entre o aqui e o lá, a revolução é o embate entre o velho e o novo, a gritaria inarticulada e primeva contra o passado. O oposto da revolução, por sua vez, é a tirania ou a contrarrevolução; desse modo, se “o jovem grupo revolucionário berra porque ainda é inarticulado, a reacionária contrarrevolução é tão hiperarticulada que se torna hipócrita. A doença da reação é a hipocrisia”[9]. A degeneração advém quando a sociedade se cerra em si mesma, aterrando as fontes de renovação e caindo no estereótipo.

E, por fim, a crise é o momento em que o homem se queda, inutilmente, à espera de um imperativo – é a mudez perante o amigo. Rosenstock-Huessy lidou diretamente com as mazelas da crise de 1929, de modo que traz sua experiência para a definição da crise:

Um desempregado é alguém que procura ordens e não encontra ninguém que lhas dê. Por que as procura? Porque ordens cumpridas são direitos. Se faço por conta própria uma imagem de barro, não posso exigir que me deem dinheiro por isso. Mas, quando recebo ordens para fazer imagens de barro, estabeleço uma reivindicação. As respostas às ordens dadas fundam direitos. Os milhões de desempregados dos anos 30 esperavam alguém que lhes dissesse o que fazer. Na guerra, dá-se exatamente a discrepância oposta. Nela não escutamos o inimigo. Na crise, não encontramos quem nos diga o que fazer[10].

Nesse ponto, especificamente, é crucial o entendimento do filósofo quanto ao “imperativo”. Rosenstock-Huessy se opõe frontalmente ao método e entendimento cartesianos. Num ensaio originalmente publicado em Out of Revolution mas reproduzido em I am an Impure Thinker, o filósofo afirma que o cogito ergo sum faz sentido enquanto programa da conquista científica da natureza. No entanto, o empreendimento coletivo que conduziu ao grande progresso científico só se mostrou possível porque grupos – e não indivíduos abstraídos no método da dúvida – tomaram para si esse lema. Para Rosenstock-Huessy, “Descartes, em sua fórmula, pressupôs que o mesmo sujeito que faz uma pergunta e levanta uma dúvida soluciona o problema. Isto talvez se aplique à matemática ou à física… Em todas questões vitais, porém, aquele que pergunta e aquele que respondem estão separados a uma grande distância”[11].

Para Rosenstock-Huessy, “a forma imperativa do verbo preserva a camada mais antiga da linguagem humana… [nela] fundam-se temporariamente numa só vontade dois corpos humanos, inicia-se uma divisão de trabalho e espera-se que se altere uma parte do mundo externo”[12]. No relato de Gênesis, é o imperativo divino que reverbera e assim ilumina o mundo. Com um de seus voos retóricos, o filósofo continua: “os imperativos e não os astrônomos fazem mover-se os homens na história. A vida histórica é uma sequência de imperativos… A infinita sequência de ordens dadas e obedecidas é que ilumina os tempos da história”[13]. Por meio do imperativo, o homem, imitando Deus, transubstancia o mundo.

O filósofo nos lembra que “eu” é o último pronome que a criança aprende e utiliza em sua comunicação. Afinal, um homem, desde seu nascimento, recebe ordens (daí o imperativo) de fora antes de valer-se do “eu”:

Antes de sermos capazes de falar ou pensar, o imperativo está se dirigindo a nós a todo tempo, por parte de nossa mãe, ama, irmãs e vizinhos: “Coma, venha, beba, fique quieto!” A primeira forma, a forma permanente sob a qual um homem é capaz de reconhecer a si mesmo e à unidade de sua existência é o imperativo[14].

O imperativo não só transubstancia o mundo, mas traz a nós a percepção de que somos um “tu” – preocupação semelhante a um outro companheiro de Rosenstock-Huessy, Martin Buber. É por isso que em contraposição tanto ao já citado lema cartesiano quanto à fórmula de Anselmo de Cantuária (Credo ut intelligam, creio para que possa compreender), Eugen Rosenstock-Huessy propõe seu Respondeo esti mutabor (Respondo ainda que isso me mude). A bem da verdade, o filósofo mais precisamente entende que essas três fórmulas lidam com aspectos distintos da experiência humana; aqueles, no entanto, que estão de fato preocupados com “a sobrevivência de uma sociedade realmente humana” entendem que a linguagem não só transcende gerações (e por isso mesmo as une), mas também ultrapassa a própria morte já presente.

Talvez esteja aí a raiz da profunda “biologia” dos escritos de Rosenstock-Huessy, assim como de suas súbitas transições de temas altamente abstratos para relatos pessoais e familiares. A impureza do pensamento, que não se confunde com afetação antiacadêmica nem iconoclastia ressentida, se dá precisamente pela sua rejeição às separações técnicas comuns à “barbárie do especialismo” (Ortega y Gasset) e à sistematização das coisas vivas e reais (um tópico que será tratado na segunda parte do ensaio). Como ele próprio confessa:

Cada um dos veneráveis acadêmicos tomou-me pelo tipo intelectual que mais desprezava. O ateu queria que eu sumisse de sua vista e me enfurnasse na teologia; os teólogos queriam que eu fosse para a sociologia; os sociólogos, para a história; os historiadores, para o jornalismo; os jornalistas, para a metafísica; os filósofos, para o direito, e – preciso dizer? – os juristas queriam eu fosse para o inferno, o qual, entretanto, como membro do presente mundo, jamais deixei.

Notas
[1] Zygmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[2] Mary Douglas, Pureza e Perigo. Lisboa: Edições 70, 1968.
[3] Isaías 6.
[4] “Introdução à Edição Brasileira” In: Eugen Rosenstock-Huessy, A origem da linguagem. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[5] Peter J. Leithart, “The Relevance of Eugen Rosenstock-Huessy”. First Things, 28 de junho de 2007.
[6] Trata-se do poema que serve de epígrafe a este ensaio.
[7] Peter J. Leithart, “The Soul of Eugen Rosenstock-Huessy”. Patheos, 20 de outubro de 2015.
[8] Eugen Rosenstock-Huessy, A Origem da Linguagem. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[9] A origem da linguagem.
[10] A origem da linguagem.
[11] I am an Impure Thinker.
[12] A Origem da Linguagem.
[13] A Origem da Linguagem.
[14 ]I am an Impure Thinker.

*continua na parte 2 – leia aqui.

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