O Estado da Arte publicou recentemente o artigo do filósofo britânico Roger Scruton “O Príncipe Palhaço da Revolução” (parte 1 e parte 2), em que as estripulias stalinistas, lacanianas e popularescas de Slavoj Žižek foram examinadas de forma impiedosa. Esta semana, damos continuidade a este trabalho crítico publicando o ensaio do cientista político, doutor em filosofia e professor do Insper Fernando Schüler, ‘O teatro do absurdo de Slavoj Žižek”, publicado originalmente no vol. 10 da revista Dicta&Contradicta.
por Fernando Schüler
O artigo que segue procura esboçar algumas ideias sobre uma ética da atividade intelectual. A leitura da obra de Zizek, em especial dois de seus últimos livros publicados no Brasil, Vivendo o fim dos tempos e Em defesa das causas perdidas, funciona como uma espécie de campo de batalha. Encontro em Zizek o paradigma do oposto daquilo que defendo como uma perspectiva ética da vida intelectual, da prática do texto analítico, em especial no que diz respeito ao terreno da política. Alguém poderia retrucar dizendo que nada disso interessa ou diz respeito a Zizek, que não passa de um ideólogo, de modo que não há muito sentido em lhe exigir rigor, método ou mesmo algum apego à verdade. Sendo este o caso, o texto que segue não faz nenhum sentido. De fato fiquei em dúvida se valia a pena investir algum tempo analisando um escritor como Zizek. Não cheguei a uma boa conclusão. De todo modo, fui em frente.
Zizek concentra-se na tese de que o capitalismo está em estado terminal. Em seu penúltimo livro, Em defesa das causas perdidas, os motivos do fim do capitalismo eram essencialmente a crise financeira, e andava em voga falar da crise na Grécia. O tempo passou, o capitalismo não acabou e Zizek publicou um novo livro, Vivendo o fim dos Tempos. O livro vai na mesma direção, assegurando que o capitalismo está à beira do “zero apocalíptico”. A Grécia e a crise financeira saíram de cena, surgindo uma nova lista de razões: a “crise ecológica, a revolução biogenética, o crescimento vertiginoso das exclusões e divisões sociais e as contradições do próprio sistema”.
A lista me pareceu incompleta. Zizek não explica porque a revolução biogenética seria mais ameaçadora do que a nanotecnologia ou a revolução robótica, ou quem sabe os recentes avanços da exploração em Marte. O livro traz uma série de exemplos de tecnologias com riscos apocalípticos muito além do campo biogenético. A cada tecnologia mencionada, a pergunta é sempre a mesma: “o que está por trás disso?”, suspeita que surge mesmo em relação a pequenos modernismos tecnológicos. Tomemos o caso da inteligência artificial. Em geral, vemos como positivo o aumento da capacidade de processamento dos computadores e sua capacidade de resolver nossos problemas no trabalho e no dia a dia. Zizek olha mais adiante e nos alerta: “Eles se comunicarão, tomarão decisões, etc, e nos apresentarão apenas os resultados de sua interação”. “Eles”, obviamente, são os computadores. Fiquei em dúvida sobre o “etc”. Do que mais seriam capazes os computadores? Zizek nos dá um exemplo: “quando tiramos dinheiro de um caixa eletrônico, ele informa ao computador do banco, que manda a informação por e-mail ao nosso computador”. Diante deste exemplo, fiquei pensativo. Há bancos mais avançados que já permitem ao cliente solicitar a suspensão do envio de e-mails. Casualmente, é o caso da instituição com a qual trabalho. Fui adiante.
Em outro alerta, Zizek nos informa que assistiu uma reportagem da CNN mostrando que “macacos com sensores implantados no cérebro aprenderam a controlar um braço robótico com o pensamento, usando para comer frutas e marshmellow”. As pesquisas são conduzidas por uma equipe da Universidade de Pittsburgh liderada pelo Dr. Andrew Schwartz. Essa leitura me provocou um leve incomodo nacionalista, visto que o brasileiro Miguel Nicolelis realiza pesquisas na mesma direção. Há muitas equipes trabalhando mundo afora. O foco central é desenvolver neuropróteses para amputados e pessoas com paralisia. Há incontáveis matérias sobre isto em revistas e na internet. Zizek percebe algo estranho nisso tudo: “Pesquisas recentes indicam o fato estranho de que agências de defesa secretas dos Estados Unidos estão envolvidas em um amplo projeto de longo prazo para desenvolver meios de controlar as emoções e as atitudes humanas”. Ele não informa que pesquisas são essas, qual sua relação com as pesquisas de neuropróteses, e quais são essas agências. Pode-se suspeitar que sejam péssimas agências secretas, visto que Zizek já sabe de tudo. Ele percebe claramente que há muita gente pesquisando sobre cérebro, e este é um tema perigoso. Quem pode nos garantir que isso não será usado para apagar a memória de vítimas de tortura? Parece irrefutável. Zizek conclui: “o ideal que regula esse processo é o controle total do passado e do futuro em nível psíquico”.
Zizek é reconhecidamente um escritor prolixo (já escreveu mais de 60 livros, e a velocidade se mantém). Neste ritmo, é bastante previsível que lhe falte tempo para pesquisar qualquer assunto com mais profundidade, e que ele tenda a se socorrer dos sites de notícias para capturar a informação de que necessita. Seus livros funcionam, de certo modo, ao ritmo da internet, migrando com rapidez de um tema a outro. O método de argumentação? Reúne um punhado de dados dispersos (evita séries estatísticas), menciona os riscos envolvidos e debita a responsabilidade na conta da peste privatista-capitalista. Numa variação estilística, substitui dados por exemplos. Exemplos de que as coisas não vão acabar bem. O método permite, no limite, demonstrar qualquer coisa. No seu caso, a conclusão permanece constante: caminhamos para o apocalipse.
Zizek desconfia dos experimentos de realidade expandida. Toma como exemplo o projeto do sixthsense, desenvolvido pelo MIT Media Lab. A ideia é acoplar um sensor a um smartphone, de modo que a pessoa possa apontar o aparelho para um objeto qualquer e receber informações mais detalhadas sobre ele. O sujeito está passeando no Museu do Louvre, aponta o sensor para a Mona Lisa e surge uma ficha de dados sobre o quadro, projetada em um plano virtual. De maneira rudimentar, os museus já fazem isto com seus sistemas de áudio guia. O projeto é amplamente conhecido. Zizek percebe aí uma ameaça: “quando um racista encontra com um árabe pobre na rua, ele não ‘se projeta’ de certo modo no árabe e ‘vê’ nele todos os seus preconceitos contra os árabes?” E logo a conclusão: é por isso que o sixthsense é uma ameaça ideológica, visto que o aparelho “imita e materializa o mecanismo ideológico do reconhecimento…”. Tentei descobrir que diferença faria o sujeito racista estar ou não com o aparelho ligado ao cruzar com o árabe. Sem o aparelho, ele já é racista. O aparelhinho iria projetar informações ainda mais racistas? Se estivesse conectado à internet, o mais provável é que os dados fossem buscados na Wikipedia, o que até melhoraria a situação do árabe pobre. Imaginei um aparelhinho programado por Zizek. O que ele projetaria se alguém cruzasse com um sujeito de um grupo político de que ele não gosta? Melhor nem pensar. E mesmo que isso fizesse algum sentido, qual a relação com o fim do capitalismo?
Zizek volta suas baterias contra a computação em nuvem, que seria mais uma tecnologia a serviço da marcha privatista do ciberespaço global. Afirma ele:
“Os apologistas apresentam a computação em nuvem como o próximo passo lógico da ‘evolução natural’ do ciberespaço, e embora de maneira tecnológico-abstrata seja verdadeiro, não há nada ‘natural’ no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista, além de determinar os preços a seu bel-prazer, também possam filtrar os programas que oferecem, dando a essa ‘universalidade’ uma torção específica que depende de interesses comerciais e ideológicos. É verdade que a computação em nuvem oferece aos usuários uma riqueza inaudita de opções, mas essa liberdade de escolha não é mantida pela escolha de um provedor, com o qual temos cada vez menos liberdade?”
A computação em nuvem é um serviço de armazenamento e processamento de dados. Ao invés de guardar dados e baixar programas ou aplicativos no disco rígido do seu próprio computador, você contrata uma empresa para fazê-lo, por razões de segurança, mobilidade ou porque necessita de mais memória do que seu computador oferece. Zizek diz que duas ou três empresas monopolizam o mercado e “filtram programas a seu bel-prazer”. Mentira pueril, que pode ser desmascarada simplesmente consultando um catálogo de fornecedores de serviços de nuvem na internet. Mesmo desconsiderando a mentirinha, o que ele está sugerindo? Ele quer abrir o mercado para muitas empresas ou pensa que o serviço deveria ser oferecido pelo governo? Esta última opção me faz lembrar do Brasil nos anos 70. Teríamos uma espécie de “Nuvembrás”. Sendo o ciberespaço global, quem sabe a ONU se encarregaria do assunto, mas aí teríamos outro problema: quem controla a ONU? Zizek nos pediria para primeiro democratizá-la. Acho que não daria certo.
Há milhares de empresas oferecendo serviços de nuvem. O Brasil anda cheio delas. Se eu contratar a Locaweb para armazenar meus dados, e ela subir muito o preço, troco para o UOL Host, e assim por diante. Não dá pra fazer isto na Eslovênia? De onde Zizek tirou a ideia de que as empresas manipulam os preços como querem? E o que significa dar uma “torção específica à universalidade” por razões comerciais e ideológicas? Imaginei a moça do call center da empresa ligando para Zizek. Do outro lado da linha, ele retruca: “nem pensar, vocês fazem uma torção tecno-abstrata da universalidade concreta!” Impassível, ela devolve: “pois não, senhor, vamos estar encaminhando sua reclamação”.
Empresas fazem seu marketing, vendem seus serviços. As pessoas decidem se compram ou não. Queimei meus neurônios para saber como uma empresa faria uma torção ideológica da universalidade. Uma hipótese: ela teria um programa que rejeitaria um texto anticapitalista de Zizek. Difícil acontecer uma coisa dessas. Você pode entupir dezenas de nuvens californianas com palestras de Zizek (o youtube está cheio delas) que ninguém o importunará. Se divulgar uma tese racista, aí sim você terá um problema (com razão). Fiquei igualmente sem entender a frase final. Por que diabos temos “cada vez menos liberdade” com o provedor que escolhemos? Seriamos gradativamente controlados pelas nuvens computacionais que contratamos? Lembrei da série “planeta dos macacos”, que assistia na adolescência. Primeiro criamos as feras, e um belo dia elas assumem o comando. Zizek realmente parece pensar isto sobre robôs e computadores.
A parte mais sugestiva do parágrafo, no entanto, surge no final:
“Os partidários da abertura gostam de criticar a China pela tentativa de controlar o acesso à internet, mas nós não estamos nos tornando uma China, com nossas funções em ‘nuvem’ de certo modo semelhantes ao Estado Chinês?”
A frase poderia servir como epígrafe do livro. Uma síntese da tese de Zizek. Ele está dizendo o seguinte: a China censura a internet, bloqueia o Google e outros sites de busca, põe blogueiros na cadeia. Mas que ninguém critique: no capitalismo é “de certo modo” a mesma coisa, porque aqui vocês usam empresas de nuvem para armazenar seus dados.
A crítica de Zizek aos avanços da tecnologia caberia em qualquer momento da história. Toda criança brasileira sabe do desgosto de Santos Dumont com o uso que se fez da aviação, e o fim trágico que deu à própria vida. Fiquei tentado a elencar avanços tecnológicos cruciais ao longo da historia, com seus respectivos riscos, mas rapidamente cheguei à descoberta do fogo, e percebi que seria cansativo para os leitores. Em seu livro recente, Abundance: The future is better than you think, Peter Diamandis expõe a tese de que assistiremos, nos próximos vinte anos, um progresso tecnológico equivalente ao obtido pela humanidade nos dois últimos séculos. Diamandis argumenta que estamos ingressando em uma era de abundância. Ele talvez exagere, mas a percepção geral de cientistas e historiadores é de que vivemos tempos bastante promissores.[1] Zizek caminha na contramão. Podemos achar graça, mas é difícil assegurar que ele esteja errado.
O mesmo não ocorre quando ele trata da outra ordem de razões para o fim do capitalismo: o “crescimento assombroso da exclusão e das divisões sociais”. Zizek sustenta seu argumento com a premissa de que a situação social do planeta tem piorado nestes tempos de globalização econômica. Esta é uma tese bastante corriqueira no catastrofismo intelectual contemporâneo. E seguramente falsa. Escolhamos algum critério. A pobreza vem diminuindo rapidamente, no planeta, desde os anos 80. O número de pessoas vivendo com menos de U$ 1,25 ao dia caiu de pouco mais de 50%, em 1981, para 15%, atualmente.[2] 15% é inaceitável, mas do que estamos falando, mesmo? Estamos dizendo que, nas últimas três décadas, justamente nesses anos da globalização econômica, mais de um bilhão de pessoas ultrapassou a linha da extrema pobreza, ganhando novas perspectivas de vida. O fenômeno ocorre, em ritmos diferentes, em todos os continentes. Jeffrey Sachs chamou o nosso tempo de era da convergência. Em menos de três décadas, o PIB dos Brics irá superar o do G7. Isto significa maior equilíbrio global. Ou não? Poderíamos falar de longevidade, erradicação de doenças, acesso à educação. Fora nossos cabelos, hoje mais ralos e grisalhos, e nosso eventual mau humor, o que tornou o mundo um lugar pior para se viver nas últimas duas ou três décadas? Zizek poderia explicitar seus critérios, argumentar, tentar demonstrar, por tais e tais razões, que o mundo vem piorando e está à beira do precipício. Não o faz. Prefere a saída fácil de recolher fatos ao bel-prazer e dar a tudo um colorido enragé.
Zizek não é propriamente um mentiroso, em que pese seu livro repleto de mentirinhas. A certa altura de Vivendo o fim dos tempos, ele trata da guerra do Shindo Renmei, no Brasil dos anos 40. A historia foi magistralmente narrada por Fernando Morais em Corações Sujos. A disputa dizia respeito à divisão, na comunidade japonesa de São Paulo, entre os “derrotistas” e os “vitoristas”. Os primeiros reconheciam e os segundos se recusavam a acreditar na derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Zizek escreve que a guerra causou milhares de mortos e que o Estado deportou para o Japão os principais vitoristas. Ora, os mortos foram vinte e três, e ninguém foi deportado para o Japão. Zizek teria contado uma mentira consciente, como faziam os jornaizinhos que Shindo Renmei publicava, com notícias da vitoria do Japão? Ou seria apenas um descuido, quem sabe na expectativa de que pouca gente leria o livro no Brasil?
Considero Zizek menos um mentiroso do que um “bulshitter”, no sentido que Harry Frankfurt atribuiu ao conceito em seu livro On Bullshit. Um “bulshitter” não é um mentiroso, mas um sujeito que escreve sem muita preocupação em verificar se o que está dizendo é verdade. Uma “bullshit” pode ser apenas um errinho factual, como o do Shindo Remnei, ou uma alusão conspiratória a neuropróteses e computação nas nuvens.
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Zizek tem uma estratégia de defesa sui generis contra qualquer acusação de inconsistência. Ele dirá que rigorosamente não pode ser criticado, visto que construiu um conceito próprio de verdade. Logo na apresentação de seu livro, ele esclarece que “a verdade que tratamos aqui não é a verdade objetiva” (Zizek, 2012, p. 14). A frase funciona como uma espécie de aviso: se eu escrever alguma coisa que não corresponda aos fatos, danem-se os fatos. Zizek criou o que ele chama de “verdade autorreferencial”. Trata-se de uma verdade avaliada “não por sua precisão factual, mas pelo modo como afeta a posição subjetiva da enunciação”. A coisa funciona mais ou menos assim: pode ser que não haja efetivamente nenhum problema com a biogenética, mas se todos acreditarem que o problema existe, ele logicamente passa a existir.
O mesmo funciona com o capitalismo: ainda que o sistema não esteja nos estertores, se todo mundo acreditar na tese zizekiana, quem sabe ele vá mesmo pelos ares? Tomemos o exemplo de Marx: a “prova” de que o marxismo correspondia à verdade é dada pelo entusiasmo revolucionário que despertou (ou ainda desperta) no proletariado e que o conduz à revolução. O mesmo, imagino, deveria valer para o liberalismo. Se todos acreditarem na tese de Fukuyama, a história poderia de fato terminar. Temos aí o que ele chama de “efeito-verdade”. A filosofia funcionaria como o amor: da mesma forma como só enxergamos o objeto amoroso quando estamos apaixonados, só podemos enxergar a verdade zizekiana quando estivermos suficientemente embevecidos da crença nela. Ao invés do “ver para crer”, devemos adotar o “acreditar para ver”.
John Gray, assim como eu, deu-se o trabalho de escrever uma crítica a Zizek. No início do texto, Gray trata da ideia de “verdade autorreferencial” e parece, como um bom e sóbrio acadêmico, levar a sério os argumentos de Zizek. Afirma que seus críticos deveriam compreender seus equívocos e omissões históricas, visto que “ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos”. Além de dispensar a filosofia da ideia de verdade, dispensa a história dos fatos. Lendo estas coisas, percebi estar diante de um argumento incontestável. De fato, não faria sentido dizer: “Zizek está errado, a história não pode desconsiderar os fatos, assim como nossos atos de fala devem guardar alguma conexão com a realidade”. Isso seria impossível, e penso que o mesmo ocorreu com Gray.
Alguns parágrafos adiante, Gray parece ter perdido a sobriedade e chama Zizek de “prolixo, academicamente ardiloso, dado ao jogo de palavras, vazio e circense”. Seu melhor momento é quando compara o texto de Zizek ao conhecido caso Sokal. Como é sabido, o físico Alan Sokal enviou um artigo-paródia, completamente nonsense para a revista de estudos pós-modernos Social Text, em 1996. O texto tinha como título “Transgredindo as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica” e era repleto de jargões pós-modernos, que agradavam aos editores da revista, ainda que não tivessem o menor fundamento.
Um bom “aplicativo de filosofia pós-moderna” pode fazer milagres. Zizek parece ter desses no seu computador quando escreve que “precisamos de uma noção mais radical de sujeito proletário, um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogito cartesiano, privado de seu conteúdo substancial” (Zizek, 2012, p. 196). A frase contém um jogo de palavras tal que o leitor fica em dúvida: “isto não quer dizer nada, ou não entendi direito?” Ele pode arriscar uma interpretação. Há interpretações para todos os gostos. Há que se capturar o sentido poético do texto, não é mesmo? Foi aí que o pessoal da Social Text se deu mal.
Gray poderia ter ido mais longe. Após a publicação de sua paródia pós-moderna, Sokal publicou um artigo na revista Língua Franca revelando o caráter fraudulento do texto. No texto, ele explicita o propósito de seu experimento:
“O que me preocupa é a proliferação, não só de um pensamento nonsense e desleixado per se, mas de um tipo particular de pensamento nonsense e desleixado: o que nega a existência de realidades objetivas, ou (quando desafiado) admite sua existência, mas releva sua importância prática.”[3]
A crítica de Sokal dirige-se precisamente ao tipo de texto praticado por Zizek. A recusa da realidade objetiva, da verdade objetiva ou do pensamento objetivo, fundamentado em alguma demonstração fática (passível de teste, comparação, refutação). O texto feito de frases obscuras, doses generosas de nonsense entremeadas de jargão esquerdista. Para escapar ele mesmo da retórica relativista, Sokal esclarece que não se trata de um problema “político”, revelando ser ele mesmo um sujeito de “esquerda”. Diz apenas que pretende ser de esquerda a partir de argumentos racionais, não apesar deles.
Gray orienta-se no mesmo sentido da crítica de Sokal, mas propõe uma questão: e se Zizek fosse ele mesmo um sátiro, espécie de mestre da “autoparódia”? Neste caso (respondo eu) Zizek seria um gênio, visto desempenhar simultaneamente o papel do Sokal falso e do verdadeiro. Gray parece realmente levar a sério esta hipótese. O texto de Zizek pode ser “a reiteração interminável de uma visão essencialmente vazia”, mas é um sucesso de público. Sua obra realiza, ela mesmo, a ideia de efeito-verdade: se os leitores compram seus livros e acreditam no que ele escreve, quem dirá que aquilo tudo não é verdade? O verdadeiro Zizek pode até mesmo ser o sátiro (o falso Zikek), mas sua obra se converte em “verdade” dado o engajamento que produz. Zizek, diz Gray, ajustou a prática intelectual à fluidez, ao “dinamismo compulsivo e sem propósito” do mercado. Tornou-se uma celebridade pós-moderna. Não é o único, pensei.
Para finalizar este texto, algumas observações sobre as ideias políticas de Zizek. Gray observou que Zizek critica o capitalismo sem, porém, propor nada parecido com uma alternativa. Afirma não ter encontrado uma única página, nas mais de mil que compõem o livro Less than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materalism, em que Zizek se preocupe em definir, afinal de contas, no que consiste a sua utopia. Fico imaginando o que Gray espera de Zizek. Que apresentasse um modelo de contrato político? Um modelo de instituições, como fez Hayek, com sua demarquia? Isto implicaria supor um Zizek preocupado com abstrações jurídicas. Quase acho graça dessa ideia. Imaginemos Zizek refutando a teoria da justiça de Rawls, ou sugerindo algum modelo alternativo ao da democracia parlamentar.
De fato, Zizek não se dá ao menor trabalho de explicitar como funcionaria a sua utopia anticapitalista. Ainda assim, parece perfeitamente possível saber do que ele está falando. Não acho que Zizek seja inocente em relação ao tipo de política que defende, e suas incursões militantes ao redor do planeta dão conta disso. Tomemos as ideias de seu Em defesa das causas perdidas. O livro é uma homenagem a uma turma bem conhecida. Retratos de alguns deles povoavam os azulejos da cozinha do nosso apartamento, para o desespero de minha irmã, quando eu tinha lá meus 17 ou 18 anos. Falamos de Saint Just, passando por Lênin, Stálin, Mao, até Fidel e Che Guevara. Hitler ficou fora da lista por muito pouco. Ele tinha um “problema”: não ter sido “suficientemente violento”. O nazismo não foi “suficientemente radical, não ousou perturbar a estrutura básica do espaço social capitalista moderno”. Por isso “teve que se concentrar em um inimigo externo inventado, os judeus”. Zizek lamenta. Hitler foi um sujeito corajoso, mas do lado errado. Errou na escolha da “essência” a ser destruída. Escolheu os judeus, o certo seria o capitalismo. Foi um mau terrorista.
Zizek recua na história e faz um elogio do terror jacobino. Os jacobinos exerceram o que chama de violência divina. Na tentativa de explicar o que isto significa, ele diz se tratar de “uma decisão (matar, arriscar ou perder a própria vida) tomada em absoluta solidão, sem nenhuma cobertura do grande Outro. Embora seja extramoral, não é imoral”. Sentença típica do estilo zizekiano, mas vamos lá: em se tratando de uma decisão tomada em nome da justiça (ou, como gosta de acentuar Zizek, em nome da Verdade com “V” maiúsculo) por que ela não seria moral? Ilegal talvez, mas que importância teria a legalidade em uma discussão como essa? Pode a decisão de matar ou ser morto, de destruir ou ser destruído, ser “extramoral”? O que é exatamente uma decisão extramoral? Robespierre e Lênin não eram tipos que agem por impulso, e cada qual, em seu tempo, foi saudado como modelo de virtude. Mas então suas escolhas são extramorais, ainda que não imorais? Inútil prosseguir. Mais uma vez, estamos diante de uma performance fraseológica. O texto deve funcionar de modo que tudo pareça uma sofisticada metáfora. Retirado o palavrório, o que ele nos pede para acreditar? Quem sabe a resposta está nos sans cullotes que ilustram a capa do livro, conduzindo cabeças cortadas na ponta de varas. Isto até seria fácil. Mas então devemos reeditar o terror revolucionário? Dependendo da situação, basta dizer: não, é apenas uma metáfora. Ninguém mais tem senso de humor? Há um segredo para se ler Zizek sem constrangimentos: fazer de conta que entendemos qualquer coisa, sem fazer muitas perguntas.
Roland Barthes dizia que o apaixonado carrega sempre um quê de ridículo. Zizek não foge à regra, com o detalhe de que o objeto de sua paixão poderia fazê-lo, se alguém o levasse a sério, um sujeito perigoso. Há passagens criativas. Em uma delas, ele explica uma das virtudes revolucionárias: a crença na independência do sujeito transcendental em relação aos indivíduos empíricos. Uma espécie de crença suprema da política radical, sua “loucura inumana”, expressão que gosta de usar. Para exemplificar tal virtude, ele recorre a um discurso em que o Che Guevara, em meio à crise dos mísseis, em 1962, sugere a alternativa da guerra atômica: “ele elogiou a disposição heróica do povo cubano de correr o risco de seu próprio fim”. Ideia curiosa. Então o povo cubano ofereceu-se para morrer tostado na guerra atômica? Fizeram uma enquete? Não exatamente. Para que perder tempo com um punhado de eus empíricos cubanos, quando o sujeito transcendental já havia se manifestado? (No caso, o Comandante Fidel, a quem Kruschev não deu bola ao preferir negociar pacificamente com o Presidente Kennedy.)
Aqui há um truque comum no texto de Zizek, que consiste em citar ícones da “política radical” como “prova” do próprio argumento radical. De fato, a retórica totalitária carrega todos os elementos imagináveis do apelo ao “inumano”. O mais comum, para qualquer tiranete (seja de que ideologia for), é falar com alguma desenvoltura em nome da História. Quanto mais abstrato, grandioso e distante dos sujeitos empíricos, tanto melhor. Então aparece Saint Just com suas frases de botequim: “o que produz o bem geral é sempre terrível”. A fraseologia de Saint Just levou ao resultado que conhecemos (que incluiu, no final, seu próprio pescoço). O problema é: citar heróis que amamos serve como uma prova das ideias que amamos?
Em outra passagem ilustrativa, Zizek refere-se a outro de seus heróis. Diz que “nos julgamentos stalinistas, as vítimas foram responsabilizadas por determinados atos, forçadas a confessar… Em resumo, embora possa parecer obsceno (e foi, de fato), elas foram tratadas como sujeitos éticos autônomos…”. O sujeito cai em desgraça por um motivo qualquer, é preso, torturado até mais não poder, assina uma confissão, é morto, enxovalhado e logo apagado da história. Zizek, não obstante, nos assegura que ele ao menos foi tratado como um “sujeito ético autônomo”. Ao menos isso.
Zizek escreve coisas desse tipo por diversas razões. Uma delas é que o custo é zero. Ele sabe que vive em uma democracia, que pode dizer qualquer coisa, e que jamais enfrentará um julgamento stalinista. Pode circular livremente pregando a “hipótese comunista”. O pessoal assiste à palestra, se diverte e vai comer uma pizza. Enquanto isto, Liu Xiaobo permanece numa prisão chinesa não hipotética. Há momentos em que precisamos decidir sobre do que vamos rir e sobre do que não vamos. Isso diz respeito à ética da atividade intelectual. O discurso de Zizek pode ser irrelevante, mas isso não o torna menos eticamente delituoso, nos dois sentidos definidos por Weber.[4] Como prática científica (histórica ou sociológica), desdenha de qualquer base factual verificável; como discurso político, é irresponsável quanto às consequências que poderia provocar, se alguém lhe desse ouvidos.
Como disse Gray, Zizek não gasta nem uma página explicando como seria sua utopia política. E nem seria preciso. O terror é, por definição, o espaço da não-forma na política. Hannah Arendt bem observou a diferença entre a linguagem dos revolucionários franceses e dos pais fundadores dos Estados Unidos da América. De um lado, a retórica abstrata e grandiloquente do destino humano, da necessidade histórica (que tanto parece encantar Zizek em suas citações bíblicas de Robespierre, Saint Just); de outro, o discurso calmo e objetivo sobre como organizar as instituições. Suas limitações, riscos e a melhor maneira de superá-los. De um lado, a grande tragédia (ainda que dramaturgicamente insuperável) que leva à ditadura napoleônica; de outro, a serena e bem sucedida construção da república. Zizek, naturalmente, cala-se para esta última e declara sua paixão pela primeira.
Zizek é um perfeito clone tardio da tradição revolucionária. Ele não pode ser objetivamente um revolucionário, visto não existir revolução em curso. Poderia tentar encontrar alguma, talvez na selva colombiana, ou uma em estado avançado, como na Coreia do Norte. Intuo que Zizek escaparia dizendo se tratar exemplos imperfeitos de revolução, não suficientemente radicais. Para um revolucionário universitário, toda revolução realmente existente será sempre imperfeita. Zizek poderia dizer que na verdade está envolvido em algo muito mais amplo, quem sabe na grande revolução mundial. É muito mais responsabilidade, ainda que inegavelmente mais seguro.
De todo modo, ele se pretende um revolucionário para destruir esta civilização em estado terminal, cujo vértice central é o que ele chama pejorativamente de “ideologia dos direitos humanos”. É curioso, visto que a tradição dos direitos humanos tem sido, ela mesma, o produto sucessivas revoluções. Muito recentemente, Mandela liderou uma dessas revoluções. Há, portanto, revolucionários em ambos os lados da tradição dos direitos humanos. Talvez ninguém sintetize tão bem esta grande tradição revolucionária, na modernidade, como Thomas Paine. Paine sempre esteve no lugar em que as revoluções de fato aconteciam. Em 1776, incendiou as colônias americanas com o seu “Senso Comum”. Colocou o pescoço em risco na guerra revolucionária contra seu país de origem, a Inglaterra. De volta ao Velho Mundo, escreveu o “Os direitos dos homens” respondendo a Burke e sua crítica conservadora à revolução francesa. É perseguido, atravessa o canal e é eleito deputado na Convenção francesa. Aproxima-se dos jacobinos, com a determinação sincera de levar o aprendizado republicano, colhido na América, à revolução. Seu primeiro embate com Danton dá-se em função de sua defesa de um judiciário independente. Combate a destruição dos direitos civis e a emergência do terror, até o fim patético em nove Termidor. Termina preso durante todo o ano de 1794, e apenas por um lance de sorte não termina na guilhotina.
Trazer à tona a memória de Paine é uma forma de lembrar quem somos e do quanto nos custou erguer uma civilização fundada em direitos. Zizek nos propõe uma questão: a civilização dos direitos humanos ou a hipótese do terror? Ambas imperfeitas. Nem as democracias liberais respeitam suficientemente os direitos humanos, nem a tradição do terror tem sido suficientemente radical, nos ensina Zizek. De qualquer forma, esta é a opção, e a escolha de Zizek é clara. Pouco mais de dois séculos atrás, Paine se viu diante da mesma questão. Com uma diferença: ele de fato vivia uma revolução. Suas escolhas não eram retóricas e sim a diferença entre a vida e a morte. Sua opção é igualmente bem conhecida.
Paine viveu entre dois mundos. À “esquerda” na Inglaterra de Burke, e à “direita” na França de Robespierre. Ao cabo, cuspido de ambos, intelectual de lugar nenhum. Arrisco dizer que é neste lugar nenhum, neste meio de caminho, que nasce a tradição mais generosa da política moderna. Contrariamente ao que supõe Zizek, não é “nossa” a herança do terror. Nossa é a tradição que repudiou o terror e recusou a fraude de justificar o crime com a ideologia. Nosso é o caminho trilhado por Paine e depois por Mill, no século XIX, e pela tradição liberal igualitarista, de Bobbio, Rawls e Sen, no nosso tempo. Um caminho que não abre mão da ideia da justiça e que não trata os direitos humanos como uma ideologia.
Quanto a Zizek e sua turma, sempre me vem a pergunta: por que não abrem um parque temático? Seria menos confortável do que a vida que levam hoje, animais domesticados que são, terroristas fora de época, condenados a vociferar em auditórios alegres mundo a fora. Por que não investem o dinheiro que ganham comprando uma área de terra bem grande, reúnem-se todos e implantam ali uma espécie de Truman Show totalitário? Os cenários poderiam variar. Em um ano, viveriam em Paris, no auge do terror; em outro, como camponeses na revolução cultural de Mao. A cada temporada se revezariam na fantasia do grande ditador. Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot e, por que não, quebrar o tédio, vez por outra, com a turma do “lado errado”, Idi Amim, Mussolini, etc. Dançarão como sans cullotes, espetando cabeças de borracha, e fantasiados como Chaplin, em O Grande Ditador. Quem sabe até um final pasoliniano, pra quem recorda de 120 dias de Sodoma. Por que não fazem isso, mostram alguma coragem, e deixam os covardes eus empíricos viverem tranquilos no mundo real, com seus pequenos direitos e, quiçá, visitando museus com seus aparelhinhos sixthsense?
Referências
Gray, John, The violent visions of Slavoj Zizek. The New York review of books, julho, 2012.
Zizek, Slavov, Em defesa das causas perdidas. Boitempo Editorial, 2011.
Zizek, Slavov, Vivendo o fim dos tempos. Boitempo Editorial, 2012.
[1] Ver Shapiro, Robert. Futurecast: How Superpowers, Populations, and Globalization Will Change the Way You Live and Work. St.Martin`s Press, 2008.
[2] Chandy, Laurence e Gertz, Geoffrey. “Poverty in Numbers: The Changing State of Global Poverty from 2005 to 2015”. Global Economy and Development Program in the Brookings Institution.
[3] Sokal, 1996, A Phisicist Experiment with Social Studies.
[4] Ver “A ciência como vocação” e “A política como vocação”.
Fernando Luís Schüler é professor do INSPER e curador do projeto Fronteiras do Pensamento