por Arthur Grupillo
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Não é preciso muita experiência para saber que não se combate uma ideologia com outra. Para isso, basta entender que até mesmo Karl Marx, que podia estar propondo, sem saber, uma ideologia, não imaginava que era uma ideologia o que estava propondo. Pelo contrário, ele pensava, ou melhor, compreendia que quase todo conhecimento produzido numa sociedade dividida em classes é que eram ideologias, pois só conseguiria enxergar uma parte, portanto uma perspectiva interesseira, e não o todo. Era suficientemente esperto, ou hegelianamente esperto, para saber que, se ele tivesse apenas uma parte da ciência, não estava ainda com ela. Pois a ciência não é como a Larissa, que eu pedi em namoro na quinta série e me disse que “ia pensar”, já há mais de trinta anos. A ciência é mais como um matrimônio, no qual se diz sim; e então uma nova fase começa. Só que, no caso dos filósofos, são eles que ainda estão pensando.
Este pode ser um dos aspectos mais difíceis da filosofia de Karl Marx. Ele era um tipo de (anti)filósofo que, a fim de abrir caminho à ação, propunha, por assim dizer, um ponto-e-vírgula ao pensamento. Não um ponto final. Mas de fato ele queria dizer sim e começar uma nova fase, o que (lembremos Larissa) significava uma interrupção ao pensamento. Pois já era possível enxergar tudo, ou pelo menos tudo que era possível enxergar. O pensamento poderia até voltar novamente, sob outra configuração social — mas sob esta, não. Ela estava desvendada. Havia muito que ser feito, mas não que ser dito. Ou melhor, o que ainda havia que ser dito, teria de ser dito sobre outra coisa. O que Karl estava propondo não era um fim ao pensamento, mas uma mudança, uma mudança que levaria, necessariamente, a uma mudança de assunto. Pois já era possível explicar o mecanismo de toda produção intelectual. Já era possível posicionar todo discurso como ideologia, à exceção, claro, do próprio discurso que as posiciona. Este não, este era um discurso completamente diferente. O que ele, Karl, estava propondo, ao contrário das ideologias, era a ciência.
Nos manuais escolares e no ensino médio, os professores nos ensinam a chamar isso de “socialismo científico”. Na verdade, esta expressão, quem a usou muito foi o amigo de Karl, o Friedrich, numa obra chamada Anti-Dühring, em que Friedrich fica muito zangado com um tal Sr. Dühring por ter tentado escrever sua própria teoria do socialismo. Essa nova teoria ignorava todo o esforço que Karl, seu amigo, havia feito e continuava fazendo; logo, não podia ser outra coisa senão “pseudociência presunçosa”, é a expressão que ele usa. Se ele estava certo ou não sobre a teoria do Sr. Dühring, não é o mais importante neste momento. O mais importante é que Friedrich estava convencido de que o que seu amigo Karl tinha feito era mais científico. A razão para tal crença na ciência era seu próprio conceito de ciência, dizíamos antes, como uma visão da totalidade. Esse conceito, que talvez seja impossível de explicar satisfatoriamente aqui, os dois amigos herdaram de Hegel. Ainda voltaremos a esse assunto. O que importa é que até mesmo Friedrich sabia que Karl sabia que só se podia enfrentar uma ideologia com ciência, não com outra ideologia.
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Parece tão natural querer combater uma mentira com a verdade que fica difícil compreender como nossa época chegou a pensar que poderia combater uma mentira com outra. Na verdade, aqueles jogos geométricos em que se encaixa um cubo numa passagem quadrada, ou uma pequena bola numa passagem circular, são ideais para crianças de 1 a 2 anos. E alguns deles trazem formas bastante complexas, como a da estrela ou a da lua. Mas nós, estranhamente, continuamos insistindo em denunciar e criticar ideologias com algo que nem mesmo queremos compreender como ciência.
No prefácio de sua Contribuição à crítica da economia política, Karl explicita dois contrastes entre o que ele próprio fazia e a ideologia. O primeiro contraste é o que há entre a economia e as outras disciplinas, que ele chamava simplesmente de “formas”. Enquanto aquela investiga as condições econômicas de produção, “que podem ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas e naturais”, escrevia ele, estas são simplesmente formas ideológicas “sob as quais os homens adquirem consciência” do conflito que ocorre na economia: formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas. Estas não passam de esquemas, modelos, espelhos sem vida própria. Nesse sentido, Karl não se compreende como um filósofo, o que seria o mesmo que um ideólogo, mas como economista e, portanto, cientista. Ocorre apenas que sua ciência econômica só podia ser assim chamada por desvendar a totalidade das relações econômicas. O segundo contraste — e aqui Karl faz referência ao amigo Friedrich — é o da “nossa maneira de ver com a ideologia da filosofia alemã”.
Frequentemente Karl se refere à “nossa maneira de ver”, que aparece em escritos como o Manifesto, ou Discurso sobre o livre-comércio, ou ainda Miséria da filosofia, redigido contra o anarquista Proudhon, em que os pontos decisivos dessa “nossa maneira de ver” são “expostos cientificamente, ainda que sob forma de polêmica”. Ou seja, mesmo em seus escritos mais panfletários, Karl acredita estar fazendo ciência. Esta ciência é a economia informada, por dentro, por uma lógica que a perpassa do começo ao fim, e que é uma lógica do fim de um começo. Na Ciência da lógica, Hegel começa com a ideia vaga de ser, pois não há outra mais vaga que esta, e a vai desenvolvendo até o fim, o fim no qual todas as mediações lógicas aparecem, obviamente, como desdobramentos do ser, pois foi daí que ele começou. Se a ciência não se demonstra completamente, então é apenas o pensamento particular de alguém, que se esforçou por defender a verdade, ou verdades, de uma ou mais frases. Mas, corretamente compreendida, a verdade não se aplica a esta ou àquela frase, mas a todo o movimento conflitado de ideias, e que termina nesta mesma ideia que acabamos de enunciar. Na economia, ao contrário, muda tudo, mas não muda muita coisa.
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Se Hegel tinha descoberto o caráter conflitado da própria verdade, Karl tinha descoberto o caráter conflitado, ou melhor, antagônico da produção econômica. E é precisamente este caráter que o permitiu “fazer soar o sino fúnebre da economia científica”, escreve ele no Posfácio da segunda edição de O Capital. Na lógica de Hegel, já não se tratava da verdade desta ou daquela filosofia, mas da verdade expressa numa história filosófica conflitada. Na economia, para Karl, já não se tratava da verdade deste ou daquele teorema, mas se era útil ou prejudicial ao capital. Sim, para Karl, havia economistas ideólogos. Sua economia, contudo, era bem diferente. Em maio de 1872, um autor desconhecido do Correio Europeu, ao tratar do método de O Capital, descreveu o procedimento de Karl tão perfeitamente que ele próprio não fez mais do que reproduzi-lo, quando resolveu tratar da questão.
Eis que o autor percebe que Karl não pretende descrever as leis que regem os fenômenos econômicos, mas tem em mente a lei que rege o modo como se modificam as leis que regem os fenômenos econômicos. Estranho, mas é isso mesmo. Vejamos um só exemplo: a famosa teoria da população. Essa teoria, exposta na obra anônima An Essay on the Principle of Population pelo pároco da igreja anglicana Thomas Malthus, explicava que, mesmo nas melhores condições, a produção de alimentos não era capaz de acompanhar o crescimento populacional, levando inevitavelmente à fome. O modo como Karl critica Malthus exemplifica bem a natureza de sua crítica à lei que o pároco descobrira. Para ele, nada havia de errado com a lei senão o fato de que ela não valia para “todas as formas de sociedade”, mas apenas para o modo de produção capitalista. Mas, quando vista dessa perspectiva, a teoria também mudava. Não é que exista uma relação direta entre uma determinada quantidade de pessoas e uma determinada quantidade de alimentos; isso é uma mera abstração. O que há são circunstâncias concretas nas quais as pessoas são capazes de subsistir e se reproduzir a partir de determinados meios de produção de alimentos. Em outras palavras, não há uma relação absoluta entre pessoas e alimentos, mas uma relação específica entre a capacidade de se reproduzir e a capacidade de produzir os meios de se reproduzir.
Somente no capitalismo uma população excedente não dispõe dos meios de produzir suas próprias condições de reprodução, e isso em virtude de uma lei específica do modo de produção capitalista. É o aumento de produtividade, através da acumulação de capital e do aperfeiçoamento técnico do trabalho, que torna uma parte da população inútil, ou pelo menos inútil até que o capital possa novamente valorizar essa população, criando outras formas de produtividade. Em circunstâncias distintas de produção, a relação entre a população e a quantidade de alimentos seria também completamente distinta. Quando um economista como Malthus enuncia uma lei como aquela, está apenas a reproduzir em teoria as próprias condições econômicas vigentes. Tal teoria é “isenta de espírito crítico”, explica Karl. Por isso o pároco poderia ser tranquilamente chamado de ideólogo, e não por ser pároco, mas como economista. O que Karl rejeita, basicamente, é que as leis da economia sejam sempre as mesmas. Elas mudam, e descobrir a lei mediante as quais as leis da economia mudam é que é fazer ciência, e não ideologia. Isto é, em vez de espelhar as circunstâncias econômicas em sua teoria, sendo assim um ideólogo, um cientista deve mostrar como essas circunstâncias econômicas mudam, e como as suas leis dão lugar a outras, completamente diferentes.
O cientista trabalha com a lei da mudança de leis. E o que é isso senão o método dialético? É o que Karl também se pergunta. O que pretendia Hegel em sua lógica não era demonstrar a verdade disso ou daquilo, mas o movimento pelo qual toda e qualquer verdade se estabelece e, afinal de contas, se desestabelece, por ser um movimento conflitado. É a verdade das verdades, e só por isso é uma “ciência” da lógica, e não meramente uma lógica. O que Karl pretendia não era demonstrar as leis econômicas gerais, mas o movimento pelo qual as leis econômicas do capitalismo se estabeleciam e se desestabeleciam, por ser um movimento conflitado, antagônico. É a economia das economias, e por isso uma ciência econômica, e não uma forma de simplesmente refletir, em teoria, o próprio conflito do qual surge. Isso significa que as mais variadas críticas podem ser dirigidas a Karl. Pode-se até mesmo dizer que isso tudo não tem pé nem cabeça. O que não se pode dizer é que ele trocou os pés pelas mãos, ou que estava tentando enfiar um cubo no buraco do círculo. O conceito de ideologia só faz sentido se alguma coisa como uma não-ideologia o contrapõe.
Certamente Karl não executa, até o fim, uma economia das economias, como Hegel pretendeu fazer em sua lógica. Mas é o mesmo pressuposto que o inspira. Karl não conhece a totalidade da história econômica, mas acredita conhecer a totalidade do capitalismo, o nosso capítulo da história. E acredita não precisar de mais do que isso para investigar o seu movimento intrínseco, ou melhor, o movimento pelo qual ele pode se tornar outra coisa, os seus conflitos internos. É somente por isso que ainda admitimos que ele não era um idealista, e sim um materialista. Ele não chega a enunciar a lei da mudança das leis, mas o fato é que trabalha com o pressuposto de que ela existe. Ele concentra-se num fenômeno conflitado específico, mas de certa forma permanece dependente da ideia hegeliana de ciência, a saber, a de que todo movimento é conflitado e tende ao fim, se não ao fim em geral, pelo menos ao fim de seu começo. Como cientista, ele não pretende falar do futuro, tal qual o faz quem enuncia uma lei abstrata imutável, mas apenas do futuro do presente, dos conflitos inerentes ao presente, e que apontam para além dele. Sobre este além do presente, ele talvez não devesse ter falado nada, mas falou. Pode ter sido aí que Karl se tornou um ideólogo, não das condições econômicas concretas, mas das quais imaginou.
Foi talvez aí que Karl tenha aberto a caixa de pandora. É verdade que o conceito de ciência que o animava, aquela ciência da totalidade de Hegel, se desfez. Depois que o próprio Karl, depois do próprio Hegel, colocou em tão ambiciosas condições o que é científico, ficou difícil retornar a uma concepção tímida de ciência que não implicasse, ao mesmo tempo, um ideologismo generalizado. Muitos até já desistiram do conceito de ciência por causa disso. Na prática, contudo, fato inegável pelas inovações e facilitações técnicas, temos a ciência, experimental como ela é. Pode ser que esta ciência seja sempre de uma parte, e não do todo, e apenas neste sentido seja parcial. Certamente temos, então, de compreender melhor como esta ciência se relaciona a valores ou interesses. Pode ser mesmo que essa compreensão caiba ao filósofo, que tenha de continuar pensando, antes de contrair um matrimônio do qual venha a se arrepender. Como esta alternativa é ignorada por uma esquerda anticientífica, que celebra o culturalismo e o historicismo fácil, já não cabe neste texto, exige outro. Mas isso não muda o fato de que o filósofo pode se esforçar por compreender essas relações e ajustar-se com o cientista sobre elas, não completamente, mas sempre mais e melhor. Não muda o fato de a ideologia continuar sendo, como dizia Karl, uma “má-consciência”, e de que a boa consciência tenha de ser o norte de qualquer conceito de ciência digno deste nome.
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