Isaiah Berlin, filósofo do diálogo e do conflito

Destacadamente reconhecido como um dos principais intelectuais do século XX, Isaiah Berlin permanece necessário para reflexão lúcida sobre nossa realidade sociopolítica

por Jonathan Goudinho

Há 110 anos nascia Isaiah Berlin (1909-1997), natural de Riga, no então Império Russo (atual Letônia). Integrante de uma abastada família judia de linhagem hassídica, se tornou um eminente filósofo e historiador das ideias – além de exímio ensaísta. Berlin emigrou com a família para o Reino Unido em 1921, em virtude da Revolução Russa, e lá fez todo o percurso acadêmico. Estudou Línguas Clássicas, História Antiga e Filosofia na Universidade de Oxford. Tornou-se docente na mesma universidade em 1932, quando foi nomeado professor de Filosofia no New College. Posteriormente, foi o titular da cadeira Chichele de Teoria Social e Política no All Souls College (1957-1967) e o primeiro presidente do Wolfson College (1965-1975), escola que ajudou a criar. Oxford foi sua casa por toda a vida.

Isaiah Berlin foi um espectador privilegiado do mundo à sua época, transitando entre as culturas judaica, russa e britânica, o que resultou em um grande interesse pela história da humanidade. Ele mesmo afirmou certa vez: “Eu sou um táxi intelectual; as pessoas me param, me indicam uma direção, e lá vou eu” [1].  Por isso, ao longo de seis décadas de atividade profissional, Berlin escreveu sobre assuntos tão diversos como filosofia analítica, filosofia política, história das ideias, história das culturas e literatura russa. Para ele, o “intelectual é uma pessoa que deseja que as ideias sejam tão interessantes quanto possível” [2]. Não resta dúvida que essa foi a grande tarefa da sua carreira. Estudar o pensamento de Isaiah Berlin é entrar “em uma excursão conjunta ao desconhecido” [3], e de lá sair fascinado com o poder das ideias.

Liberal convicto, sempre expressou apoio aos direitos individuais e oposição ao poder arbitrário de qualquer coloração ideológica. Berlin foi admirado por conservadores e visto com desconfiança por progressistas, ao mesmo tempo em que foi simpático ao New Deal e à social-democracia. Era bem visto por Winston Churchill e esteve relativamente próximo a Margaret Thatcher. Seu credo político era instigante: “Se alguma vez houve um liberal de centro, extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo” [4]. Isaiah Berlin foi o filósofo do conflito e do diálogo, o que está refletido no seu pensamento e prática de toda a vida.

Dois temas em particular tornaram Berlin célebre no mundo intelectual: a discussão sobre os sentidos de liberdade e a noção de pluralismo dos valores morais. Desde a publicação de Dois conceitos de liberdade (1958), resultante de sua aula inaugural como professor Chichele de Teoria Social e Política no All Souls, em Oxford, o debate sobre o tema ganhou novos contornos. O filósofo popularizou no mundo anglo-saxão a distinção entre liberdade negativa (de) e liberdade positiva (para). A primeira indica a ausência de constrangimento, compreendendo a ideia de que uma pessoa só é livre à medida que não sofre coação de nenhum outro indivíduo ou grupo, incluído o Estado. A segunda diz respeito ao desejo pessoal de autogoverno e de autonomia, de incorporação do controle por meio da atuação de uma vontade racional (no sentido iluminista). Como registrado pelo próprio Isaiah Berlin, “A resposta à pergunta ‘Quem me governa?’ é logicamente distinta da que seria dada à pergunta ‘Até que ponto o governo interfere na minha vida?’. É nessa diferença que reside afinal o grande contraste entre os dois conceitos de liberdade positiva e negativa” [5].

Berlin foi um defensor intransigente da liberdade negativa, que julgava ser a matriz de toda a virtude – e que, portanto, deveria ser salvaguardada. Para ele, a liberdade positiva poderia representar um risco, uma vez que, conduzida por um senso de “liberdade racional” reformuladora de valores sociais, talvez resultasse em práticas autoritárias. E foi exatamente o que identificou nos regimes totalitários do século XX. A posição de Isaiah Berlin rendeu bastante discussão e uma indisposição longeva com Hannah Arendt, por quem não nutria muita simpatia (tanto por discordância sobre aspectos e implicações da liberdade quanto por diferentes posições sobre questões judaicas). Numa época na qual tanto se fala em tamanho do Estado, liberdade de expressão e de crença, quebra de padrões impostos culturalmente, políticas de identidade e satisfação de gostos e objetivos pessoais, os elementos oferecidos por Berlin são novamente instigantes.

Embora este polímata russo-judeu seja majoritariamente conhecido pelos conceitos de liberdade, sua contribuição intelectual mais importante está na discussão acerca do pluralismo dos valores morais. Tal formulação está assentada na ideia de que é preciso abrir espaço para uma vida na qual os valores possam se revelar incompatíveis, a despeito da utópica crença na existência de uma solução harmônica final capaz de conciliar todos os bens, desejos e valores humanos – predominante na mentalidade ocidental. A semente pluralista no pensamento de Berlin é resultado de seu ceticismo amparado na história, uma vez que a observação empírica e o conhecimento humano comum apontam em uma única direção: o inescapável conflito de valores. Por isso, argumentou que “o mundo que encontramos na experiência comum é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas, e a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras” [6].

Toda a obra de Isaiah Berlin é permeada por sua doutrina do pluralismo, muito embora a ideia a esse respeito só tenha sido organizada a partir da década de 1950. Ele recorrentemente advertiu em seus ensaios quanto à impossibilidade de conceber um mundo no qual os valores morais, políticos e sociais fossem inteiramente combináveis. A incompatibilidade dos valores não responde a razões práticas ou políticas, mas a razões de princípios. Frequentemente, recorria a exemplos práticos para clarificar seu pensamento: a plena liberdade e a plena igualdade não podem ser conciliadas, do mesmo modo que há conflitos entre justiça e compaixão, conhecimento e felicidade. Os embates são arbitrados por critérios particulares de decisão, que não são puramente racionais nem objetivos. O pluralismo de Berlin emerge da constatação de que a ideia romântica de uma sociedade perfeita é incoerente com o nosso tempo, essencialmente plural. Por isso, mais de uma vez ele pontuou que não havia “nada mais destruidor de vidas humanas do que a convicção fanática da existência de uma vida perfeita, aliada a um poder político ou militar” [7]. Há, portanto, uma série de valores que não podem ser reduzidos a nenhum princípio, porque são irredutivelmente diversos.

O controverso pluralismo de Isaiah Berlin é apresentado ao mercado das ideias políticas como alternativa tanto ao monismo (para o qual há apenas um conjunto de valores aceitável e correto) quanto ao relativismo (para o qual qualquer conjunto de valores é aceitável e correto). Obviamente, nem todos concordaram com essas conclusões, como foi o caso de Leo Strauss, que insistiu em interpretar a doutrina do pluralismo como relativismo. Berlin negou a acusação e a contra-argumentou diversas vezes. Não estava nas suas ambições formular uma teoria ética normativa, como fez seu contemporâneo John Rawls, ou oferecer qualquer tipo de consolo metafísico aos conflitos experimentados pelos seres humanos. O que faz Berlin é proporcionar outra possibilidade de reflexão, argumentando que “nossa era não exige mais fé, nem maior liderança ou organização científica; mas menos ardor messiânico, mais ceticismo esclarecido e mais tolerância às idiossincrasias”[8].

No momento em que as democracias ocidentais experimentam a revivescência de nacionalismos, autoritarismos e fanatismos inflamados, o estudo sistemático das proposições desse autor parece deveras pertinente. Como ele próprio regularmente lembrava, evocando o poeta alemão Heine, “os conceitos filosóficos nutridos na quietude do escritório de um professor poderiam destruir uma civilização” [9]. Ou (re)construí-la. Berlin levou a sério tal recomendação quanto ao poder das ideias. Deveríamos fazer o mesmo.

Notas

[1] IGNATIEFF, Michael. Isaiah Berlin:uma vida. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 15.

[2] JAHANBEGLOO, Ramin. Isaiah Berlin: com toda liberdade. Tradução de Fany Kon. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 51.

[3] IGNATIEFF, Michael. Isaiah Berlin:uma vida. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 12.

[4] CALDEIRA, Rodrigo Coppe; GOUDINHO, Jonathan; HARDY, Henry. Quando alguém lê Isaiah Berlin, sente-se em boas mãos: uma conversa com Henry Hardy. O Estado de S. Paulo (Estado da Arte), São Paulo, 17 fev. 2019.

[5] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 236.

[6] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 269.

[7] JAHANBEGLOO, Ramin. Isaiah Berlin: com toda liberdade. Tradução de Fany Kon. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 76.

[8] BERLIN, Isaiah. Political Ideias in the Twentieth Century. Foreign Affairs, v. 28, n. 3, p. 351-385, abr. 1950.

[9] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 227.

Jonathan Goudinho é jornalista e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), com pesquisa sobre as contribuições do pensamento de Isaiah Berlin às relações entre “religioso” e “secular” no debate público contemporâneo. Integra o Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas.

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