Novos desafios à liberdade de expressão

A doutrina clássica da liberdade de expressão não apenas diante de notícias falsas, discurso de ódio e bolhas de informação, mas também desafiada pela saturação de nossa atenção. Um ensaio de Rogério Passos Severo e Bruno Guedes Santiago.

por Rogério Passos Severo e Bruno Guedes Santiago

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A internet e as redes sociais trouxeram quatro desafios à doutrina clássica da liberdade de expressão: fake news, discurso odiento, bolhas informacionais e saturação da nossa atenção. Para os três primeiros a doutrina clássica já tem respostas satisfatórias, uma vez que esses são desafios novos apenas na forma de apresentação (agora digital). O quarto e último desafio, no entanto, é substancialmente novo e exige um passo adicional. Então vamos por partes.

Todos conhecemos a justificação clássica para a liberdade de expressão magistralmente apresentada por John Stuart Mill em 1859, em seu ensaio Sobre a liberdade. Os argumentos ali reunidos consolidaram um dos pilares de todas as democracias contemporâneas, inclusive a nossa (vide os artigos 5º, incisos IV e IX, e 220º da nossa Constituição). Por estarem profundamente arraigados em nosso modo de pensar, quase não nos damos conta de que aí estão. Fazem parte de uma espécie de inconsciente público que silenciosamente molda o que consideramos intuitivamente aceitável ou defensável. E nesse nível mais elementar não há quem advogue o abandono desses valores.

Mas o mar não está para peixe, como todos sabem. Nestas duas décadas do novo milênio não houve uma única instituição ou ideia clássica que não tenha sido violentamente sacudida pelas transformações vertiginosas de nossas tecnologias, pensamentos e modos de viver. Nada parece ter passado incólume. Em toda parte vemos a versão sombria daquilo que poderia ter sido e não é. Da seleção brasileira à Igreja Católica, dos ideais igualitaristas ao moralismo do lava-jatismo, de Heidegger ao Twitter: nenhuma instituição, ideia ou prática social parece ter tido a sua nudez poupada pelo espírito apocalíptico de nossa época. Assim também com a liberdade de expressão. Numa curiosa inversão de valores – aliás, típica de nosso tempo –, numerosos liberais de outrora hoje silenciam-se sobre o cancelamento de seus adversários políticos nas redes sociais, quando não o comemoram.

Para ver como essas formas contemporâneas de silenciamento são incompatíveis com a doutrina clássica da liberdade de expressão, basta relembrar brevemente os argumentos de Mill: (1) Por mais convictos que estejamos da verdade de nossas próprias opiniões, sempre podemos estar errados. Somos falíveis. Além disso, tendemos a valorizar mais os indícios confirmatórios das opiniões que já temos do que os indícios contrários. Somos cognitivamente enviesados e apenas o diálogo com pessoas que pensam diferentemente pode mitigar essa tendência. (2) Mesmo quando estamos com a verdade, se ninguém nos desafia, não temos como conhecer a nossa própria correção. A opinião verdadeira que não é submetida ao contraditório não tem como ser asserida com segurança, pois ninguém tem como saber a priori se aquilo em que crê é produto da solidez de seu pensamento ou do arraigamento de seus preconceitos. (3) No mais das vezes, as opiniões que inicialmente sustentamos, mesmo que largamente verdadeiras, contêm também equívocos e distorções que apenas o confronto com ideias e opiniões contrárias pode revelar.

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John Stuart Mill

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Segundo Mill, a liberdade de expressão é sobretudo valiosa quando as formas de silenciamento de opiniões contrárias são produzidas não pela censura estatal, mas pela “tirania da maioria”. Esta é mais eficaz que aquela. Seus efeitos, mais deletérios. Para que os nossos próprios erros possam vir à luz, a opinião minoritária precisa não apenas ser permitida, mas positivamente incentivada, segundo Mill. O instituto da liberdade de expressão, nesse sentido, não consiste num livre mercado de ideias em que as ideias mais fortes batem as mais fracas e as levam à extinção. A extinção das ideias minoritárias é exatamente o que a liberdade de expressão tem por propósito evitar. Há nesse sentido desanalogias importantes entre a ideia de um “mercado de ideias” e a ideia da livre concorrência econômica (a esse respeito, ver o artigo de Jill Gordon).

Tendo isso em mente, seria de se esperar que aquelas pessoas que tradicionalmente se identificam com a ampliação dos direitos e liberdades individuais bem como aquelas que vigorosamente defendem os interesses das minorias se opusessem às novas políticas de restrição das liberdades de expressão que vêm sendo implementadas na internet. Entretanto, isso não vem acontecendo. Algumas consideram que os problemas postos pela internet são novos e exigem uma modificação da doutrina clássica da liberdade de expressão. Argumenta-se, por exemplo, que a quantidade de fake news, discursos odientos e bolhas informacionais cresceu exponencialmente nos últimos anos e não teria mais como ser remediada senão mediante o estabelecimento de limites ao que pode ser dito publicamente.

Como bem observa a advogada Nadine Strossen, no entanto, essa é uma crença ingênua. Esses fenômenos não são novos. A história está repleta de casos de fake news, discursos odientos e bolhas informacionais. No século vinte, antes da internet, poucos foram os governos e órgãos de imprensa que não os promoveram em um momento ou outro (sobre isso, ver também o artigo de Yuval Harari neste jornal). Para esses males, a doutrina clássica da liberdade de expressão já tem um remédio eficaz, que é o do contradiscurso. Ainda que frágil, o meio mais eficaz para se combater fake news, discurso de ódio e bolhas informacionais é exatamente aquele descrito por Mill: a contraposição e o confronto livre de ideias, pensamentos e argumentos, o diálogo e a apresentação de razões. Nem sempre a verdade e o bom senso prevalecem numa discussão livre. Mas o remédio alternativo, que é o da censura ou do silencialmento social, é bem mais amargo, sobretudo para as minorias sociais e culturais. Quem decide o que pode ser censurado ou silenciado é sempre a voz dominante no Estado ou a das maiorias sociais de ocasião (ver sobre isso o depoimento de Ira Glasser, ex-presidente do American Civil Liberties Union). É importante considerar o seguinte: todos nós somos capazes de dizer coisas odientas, falsas e enviesadas ou que assim o parecem aos outros. Pregar a censura ou o silenciamento social apenas dos outros é, nesse sentido, uma espécie de húbris, como bem observou o jornalista Glenn Greenwald. É considerar-se imune à possibilidade de vir a ser censurado e silenciado logo adiante por sermos já agora suficientemente iluminados para jamais cometermos falsidades, ofensas ou distorções.

Segundo Mill, não temos como saber a priori se o que nos parece ofensivo decorre do conteúdo do que está sendo dito ou de nossos próprios preconceitos. Isso apenas a discussão pode revelar. Algumas ideias importantes que no passado foram tidas como ofensivas e imorais hoje fazem parte do nosso bom senso. As reivindicações pelo fim da escravidão e por direitos iguais para mulheres, defendidas por Mill no século dezenove, por exemplo, eram naquela época vistas como ofensivas e mesmo odientas pelos setores mais conservadores da sociedade inglêsa. Em regra, são as ideias e opiniões das minorias sociais e culturais que são principalmente vistas como imorais e odientas e portanto mais suscetíveis de silenciamento e censura; são elas que não conseguem furar a bolha da maioria. E em geral quem aplica a censura ou promove o silenciamento são os setores mais hegemônicos e politicamente mais fortes das maiorias sociais, justamente os que menos precisam desses expedientes tirânicos para verem prevalecer as suas opiniões. Temos aí três razões básicas para tolerar, no discurso público, a apresentação de ideias e opiniões que nos pareçam ofensivas ou mesmo odientas: (1) pode ser que estejamos equivocados ou parcialmente equivocados a respeito delas, (2) não temos como tomar consciência de nossos próprios enviesamentos senão pelo confronto sistemático de opiniões contrárias às nossas, (3) a censura ou silenciamento tende a ser exercida por indivíduos que detêm algum tipo de poder político e social e desse modo reforçam desnecessariamente uma espécie de tirania da maioria (da qual podemos fazer parte hoje, mas talvez não amanhã). (Uma discussão muito rica desses desafios com uma atenção especial à realidade brasileira pode ser encontrada na bela coletânea organizada pelo professor José Eduardo Faria, A liberdade de expressão e as novas mídias.)

Passemos agora ao desafio mais difícil, que é aquele posto pela saturação de nossas atenções. Houve um inegável aumento da liberdade de expressão com a popularização mundial da internet. Hoje a veiculação de opiniões é menos filtrada por barreiras de acesso físico e financeiro. Pessoas em locais distantes podem com mais agilidade e menos recursos se manifestar, não necessitando para isso de imprensa, correios ou mecanismos institucionais de apoio e distribuição de informações. Essa democratização do acesso trouxe consigo um aumento gigantesco da quantidade de opiniões e ideias imediatamente acessíveis. Hoje não temos apenas discurso e contradiscurso, como no Hyde Park da época de Mill. Temos uma gigantesca cacofonia de vozes e ruídos, que dificulta o acesso às razões e contrarrazões coerentes e inteligíveis. É como se estivéssemos em uma biblioteca grande demais para seres humanos, em que os livros não estivessem dispostos em uma ordem inteligível.

As instituições de ensino e os veículos de imprensa tradicionais efetivamente filtram informações e desse modo tornam inteligíveis e manejáveis as opiniões em confronto. Do modo como a internet está funcionando hoje, os únicos filtros usados são os dos algoritmos de Google, Facebook e Twitter, que são especificamente desenhados para prender a atenção dos internautas, independente da qualidade dos conteúdos sugeridos. Desse modo, se as extravagâncias de Trump ou Bolsonaro prendem a nossa atenção, serão deles as recomendações promovidas de vídeos e leituras, independente do que dizem. O famigerado Alex Jones, por exemplo, foi sugerido aos internautas do YouTube alguns bilhões de vezes, antes de ser cancelado. Se tivesse de passar pelos filtros tradicionais da imprensa e das universidades, jamais teria saído de seu quase anonimato. O problema, portanto, não está no fato de ele ter tido a possibilidade de se expressar livremente, mas no fato de ter sido ativamente promovido bilhões de vezes para milhões de pessoas. Foi o filtro informacional do YouTube e o monopólio da distribuição de informações digitais por apenas três grandes empresas que produziu esse fenômeno.

Esse problema específico não tem como ser resolvido pela ampliação das liberdades de expressão. Por isso, algumas pessoas vêm insistindo para que as empresas da internet (sobretudo as três maiores: Google, Facebook e Twitter) imponham elas próprias algum tipo de silenciamento (“moderação” é o eufemismo mais usado) às opiniões consideradas enganosas ou odientas. Isso aconteceu no início deste ano com Trump no Twitter e com o canal bolsonarista Terça Livre no YouTube (que pertence à Google). Mas enganam-se aqueles que vêm nesse fenômeno apenas o merecido silenciamento de embusteiros de direita. Um dos primeiros sites a sofrer as consequências da política de moderação do Google foi a plataforma trotskista World Socialist Web Site. Ao lado de diversos outro sites de esquerda, eles viram seu tráfego na internet cair drasticamente nos últimos meses, o que os levou a denunciar as práticas do Google como antidemocráticas (ver aqui e aqui). Desse modo, voltamos ao problema do critério de seleção do que merece ser filtrado e ao problema de quem deve ter o poder para escolher esse critério. Então, se aceitamos a censura ou a moderação de conteúdos, corremos sempre o risco de sermos nós próprios os silenciados mais adiante.

Uma das poucas vozes a se pronunciar sobre esse problema específico tem sido a de Matt Stoller, autor do livro Goliath. Stoller sustenta que a raiz dessa questão situa-se não no excesso de opiniões, mas no concentração absoluta do fluxo de informações em algumas poucas empresas. Com apenas três grandes firmas dominando quase todo o mercado digital, os filtros de informação implementados por cada uma delas têm impactos enormes e tendem a se assemelhar, efetivamente impedindo a livre circulação de ideias. Aparentemente qualquer um pode se expressar livremente, mas apenas uns poucos são promovidos pelos algoritmos.

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Matt Stoller

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Stoller defende (ver aqui) que essas empresas sejam divididas e que leis sejam implementadas para impedir que apenas umas poucas dominem o mercado das plataformas digitais. Na sua opinião, se tivéssemos uma pluralidade de mecanismos de filtragem de informações, poderíamos contornar o problema da cacofonia de vozes sem prejuízo à liberdade de expressão. Num ambiente informacional onde diversas plataformas competissem entre si, nenhuma conseguiria ter o domínio e a influência que têm hoje as três grandes. É o que vemos atualmente no mercado de empresas de podcasts, por exemplo, que é bem mais aberto que o das redes sociais. Cada uma dessas empresas de podcasts, usa seus próprios filtros e tem critérios diferentes para a divulgação das gravações nelas postados, de tal modo que as vozes particulares silenciadas em uma podem livremente se manifestar em outras. Mas como todas essas empresas de podcasts usam filtros e o número de empresas é grande mas não gigantesco, temos um conjunto humanamente manejável de alternativas informacionais. Portanto, evita-se o problema da cacofonia sem abrir mão da liberdade de expressão. Essencialmente, essa solução apontada por Stoller é a mesma já empregada no passado para impedir os monopólios nos veículos de imprensa tradicionais (jornais e televisão). Do mesmo modo que a liberdade de imprensa beneficia-se com a pluralidade de empresas jornalísticas, na internet a liberdade de expressão beneficiar-se-ia com a diversificação de plataformas digitais.

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Rogério P. Severo é professor do Departamento de Filosofia da UFRGS.
Bruno Guedes Santiago é advogado e Pós-Graduando em Direito Tributário pela PUCRS/IET.
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