por Juliana de Albuquerque
No contexto político recente, a expressão pós-verdade foi utilizada para caracterizar alguns dos acontecimentos mais importantes do ano que passou, dentre eles, o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, a disputa presidencial norte-americana e a chegada de Donald Trump à Casa Branca.
Diante desses eventos, muitos chegaram à conclusão de que nós vivemos num cenário político e cultural em que a verificação dos fatos foi substituída pela emotividade e pela prevalência de crenças e opiniões pessoais. Enfim, muitos acreditam que nós vivemos um momento histórico marcado pelo entrincheiramento ideológico, pela radicalização. Ou seja, no contexto em que a mentira bem contada vale mais do que a verdade. Mas, até que ponto se pode afirmar que vivemos num mundo em que a verdade se tornou irrelevante?
Segundo o Dicionário Oxford, que elegeu o vernáculo pós-verdade como a palavra do ano de 2016, a expressão, tal como a conhecemos atualmente, foi utilizada pela primeira vez em 1992 no texto do dramaturgo Steve Tesich veiculado pela revista The Nation.
Neste artigo publicado há vinte cinco anos, Tesich comenta sobre “ O Efeito Watergate” na consciência política do cidadão. Segundo Tesich, a partir deste evento, os norte-americanos teriam passado a desdenhar das verdades inconvenientes.
Para ele ocorreu, naquela ocasião, algo de inusitado: afetado pelos horrores da guerra do Vietnam e pelo escândalo de Watergate, o povo teria começado a achar que a verdade seria sinônimo de má notícia. Assim, não importando o quanto fundamental fosse a verdade para a saúde política da nação, o povo teria passado a desejar, apenas, que o governo lhe protegesse de qualquer verdade inconveniente; optando de maneira inconsciente pela manipulação ideológica.
Além de Watergate, Tesich cita outros eventos políticos importantes para embasar a sua teoria. Dentre eles, o lapso de memória do presidente Reagan durante o escândalo Irã-Contra e a censura midiática durante a Primeira Guerra do Golfo (1990-1991).
Pouco importa se a memória de Reagan estivesse a faltar com a verdade, ou se a cobertura da CNN fosse bastante para formar uma opinião realista sobre o conflito no Golfo Pérsico. Tesich escreve que, através desse medo da verdade, o povo americano estaria se transformando numa espécie de objeto de desejo para os aspirantes ao totalitarismo. Afinal, o dramaturgo nos explica que de “uma maneira bastante fundamental, nós, enquanto um povo livre, decidimos livremente que desejamos viver num mundo da pós-verdade.”
Em recente entrevista para a BBC, o filósofo A.C. Grayling explica que, na atualidade, esse desejo por habitar um mundo livre de verdades inconvenientes teria sido alimentado por dois fatores importantes. O primeiro: Grayling chama a nossa atenção para as consequências da crise econômica de 2008. Segundo ele, desde então o cenário político foi afetado pelo aprofundamento das desigualdades entre ricos e pobres e pelo aumento da insatisfação dos cidadãos de renda média, cujos ganhos encontram-se congelados há quase dez anos. O segundo: o avanço das mídias sociais. Grayling entende que uma das consequências disto seria o incentivo concedido a uma mentalidade alimentada pela ideia de que tudo pode ser reduzido a como se sente ou a como se quer sentir em relação aos acontecimentos.
Do ponto de vista freudiano, pode-se dizer que as redes sociais permitiram um ambiente favorável à propagação de comportamentos atribuídos ao Id (aqui entendido como a parte da estrutura da nossa personalidade afetada pelos instintos humanos mais primitivos), por exemplo, a necessidade de expressar a nossa agressividade para obter a aprovação de determinado grupo social. Diante de uma vida virtual pautada pela exaltação dos instintos e pela ideia de gratificação imediata, não é de se surpreender que a profusão agressiva de “achismos” tenha se tornado mais importante do que o exame e a compreensão dos fatos. Talvez seja por isso que estejamos cada vez mais vulneráveis às falsas notícias. Afinal, na ânsia por se fazer cumprir o princípio do prazer, buscamos apenas informações que emprestem validade ao sistema de opiniões dos grupos nos quais nos supomos admitidos ou inseridos.
Em um comentário publicado no site da revista Nature, Kathleen Higgins da Universidade de Austin, Texas, explica que a expressão pós-verdade carrega uma mensagem que vai de encontro aos ideais da ciência e da filosofia. Higgins ainda afirma que, embora muita gente tente culpar a filosofia pelo jargão pós-verdade, o fato é que mesmo aqueles filósofos que apoiam uma espécie de relativismo radical necessitam trabalhar com um conceito de verdade, seja de maneira crítica, ao questionar a ideia de verdade em si, seja enquanto ferramenta para solucionar os problemas propostos por suas obras.
Neste sentido, vale conferir o que nós podemos aprender sobre verdade e pós-verdade com a obra de Nietzsche, o filósofo mais identificado como um dos precursores dessa discussão.
Em seus fragmentos póstumos, Nietzsche escreve: “O mundo que nos importa é falso… sic… ele é composto de maneira fictícia por uma soma limitada de observações. Este mundo permanece ‘em fluxo’…. Uma falsidade em constante mutação que jamais se aproxima da verdade, pois a “verdade” não existe”. Sua advertência é clara: é muito limitado o que podemos dizer sobre a verdade. Assim, faz-se necessário cultivar a modéstia intelectual em relação a toda reinvindicação à verdade.
Voltando à pergunta feita no início deste artigo, seria possível dizer que a verdade está longe de se tornar obsoleta. Nem mesmo o relativismo com base na filosofia de Nietzsche tem por finalidade desacreditar toda e qualquer busca pela verdade.
O propósito do relativismo em Nietzsche é o de criar condições para que essa busca se distancie cada vez mais da certeza e do dogmatismo e, ao nos alertar sobre as nossas próprias limitações, Nietzsche, assim como Goethe, pede que aprendamos a utilizar essas mesmas limitações ao nosso favor.
Tais limitações nem invalidam a nossa busca pela verdade nem nos condenam ao niilismo e ao irracionalismo. Pelo contrário, em Nietzsche, a ênfase nas nossas limitações tem por objetivo fomentar a modéstia intelectual, o ceticismo e a tolerância. Características que, no fim de contas, apenas transformam a busca pela verdade num mais exigente e profícuo exercício.
Nietzsche nos ensina que o homem em busca da verdade deve acostumar-se com o fato de que talvez ela não seja o que há de mais salutar para a sua vida. Pois, dentre outras coisas, o conhecimento da verdade colocaria em jogo todas as ficções que nós desenvolvemos para sobreviver. A busca pela verdade compreenderia, assim, o aprendizado sobre os nossos próprios mecanismos de defesa, isto é, a busca pela verdade compreenderia o questionamento das nossas motivações.
Ao identificar as suas próprias vulnerabilidades e motivações, o homem percebe que a saúde e a doença, a dor e a alegria, a verdade e a ficção, encontram-se intimamente relacionadas. Por isso mesmo, o conhecimento sobre a verdade dependeria da nossa maior ou menor aptidão para perceber as nuances das motivações humanas.
O que Nietzsche nos ensina é que a superação deste momento político tão conturbado, em que está cada vez mais difícil distinguir verdade de ficção, depende da nossa coragem para enfrentar a vida como um jogo de contrastes entre diferentes perspectivas. O recado de Nietzsche para nossa época é que
“o valor do mundo reside em nossa interpretação (—que em algum outro lugar talvez sejam possíveis ainda outras interpretações que não as humanas—), que as interpretações até aqui são avaliações perspectivísticas, graças às quais nós nos mantemos na vida, ou seja, na vontade de poder, de crescimento de poder, que toda elevação do homem traz consigo a superação de interpretações mais estreitas, que toda intensificação e amplificação do poder alcançadas abrem novas perspectivas e conclamam a que se acredite em novos horizontes. ”
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.