Medida relativa e medida absoluta

O grupo Gnómon - Núcleo de Matemáticas e Ciências, do Centro de Estudos Helênicos Areté, apresenta uma tradução do artigo “Mesure relative et mesure absolue”, de Olivier Rey. Se os modelos da ciência moderna poderiam parecer, inclusive pela sua formulação, dotados de formas invariantes por escala dentro de um universo homogêneo, Rey mostra que a natureza, por outro lado, apresenta fenômenos relacionados a uma noção absoluta de medida, como já notado por Galileu. A forma é também determinada pela escala: o artigo traz tal ideia em relação a questões da física, da biologia e da política. O grupo Gnómon promoverá uma discussão sobre os temas levantados por Rey em uma live no próximo dia 8 de julho, das 19h30 às 21h30, transmitido através do canal YouTube da Areté.

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O grupo GnómonNúcleo de Matemáticas e Ciências, do Centro de Estudos Helênicos Areté, apresenta uma tradução do artigo “Mesure relative et mesure absolue”, de Olivier Rey — pesquisador do Instituto de História e Filosofia de Ciências e Técnicas (CNRS – Universidade Paris 1).

Se os modelos da ciência moderna poderiam parecer, inclusive pela sua formulação, dotados de formas invariantes por escala dentro de um universo homogêneo, Rey mostra que a natureza, por outro lado, apresenta fenômenos relacionados a uma noção absoluta de medida, como já notado por Galileu. A forma é também determinada pela escala: o artigo traz tal ideia em relação a questões da física, da biologia e da política.

Atualização: O grupo Gnómon promoveu uma discussão sobre os temas levantados por Rey em uma live no dia 8 de julho, transmitida através do canal YouTube da Areté:

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(Este texto foi originalmente publicado como “Mesure relative et mesure absolue”, Cahiers philosophiques, Réseau Canopé 2013, 135, pp. 36-50. Agradecemos a Olivier Rey pela disponibilidade para a publicação da tradução.)

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Medida relativa e medida absoluta

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por Olivier Rey

I – Medir num cosmos ou num espaço geométrico infinito

A passagem do sistema de Ptolomeu ao sistema de Copérnico pode, uma vez efetuada, ser vista como uma passagem do geocentrismo ao heliocentrismo e, desse ponto de vista, parecer resumir-se essencialmente a uma mudança de origem num referencial físico, acrescida de algumas revisões astronômicas — os outros planetas além da Terra não giram ao redor desta, mas ao redor do Sol. Desse ponto de vista, as oposições apaixonadas suscitadas por essa mudança de sistema parecem desproporcionais, quiçá, insensatas. Freud revelou aí os sintomas de um ferimento narcísico: o ser humano não suportaria deixar de estar no centro do mundo [1]. Por mais clarividente que Freud possa ter-se mostrado muitas vezes, aqui ele se enganou inteiramente. Nos tempos arcaicos, nos quais a Terra era concebida como plana, ela estava sob o céu. Quando passou a ser representada como redonda, a única maneira pela qual pôde permanecer em toda parte sob os céus foi estando no centro, circundada por eles. Assim, a posição que ela ocupava no esquema ptolomaico era tudo, menos um lugar privilegiado: era, ao contrário, o pior local do cosmos — local que lhe competia ocupar em razão de sua dignidade menor em relação aos astros. Desse modo, os adversários mais ferozes do sistema de Copérnico não foram movidos pela vaidade ferida de não ser mais o centro: eles foram tomados de indignação pelo insensato orgulho que consiste em pôr a Terra no mesmo nível que os astros. Montaigne, que não se costuma considerar como um espírito limitado ou retrógrado, é animado por esse sentimento quando escreve nos Ensaios: “A mais calamitosa e frágil de todas as criaturas é o homem, e a par e par [isto é, ao mesmo tempo] a mais orgulhosa. Ela se sente e se vê alojada aqui, entre a lama e os excrementos do mundo, atada e pregada à pior, mais morta e podre parte do universo, no último andar da residência e o mais afastado da abóbada celeste, com os animais da pior condição das três [isto é, terrestre, aquática e aérea]; e por imaginação vai-se instalando acima do círculo da lua e trazendo o céu sob seus pés” [2]. Além disso, aqueles que imaginam que o heliocentrismo trouxe danos ao narcisismo humano deveriam ter-se dado conta de uma dificuldade: considerava-se que o inferno estava situado sob a Terra. Dito de outro modo, o extremo centro do mundo era seu lugar, não o mais nobre, mas o mais abjeto.

Mas por que razão, então, opor-se com tanta veemência a uma teoria que elevava o homem? A humildade não é a única explicação. Decerto, na antiga distribuição cósmica, o homem tinha uma morada pouco resplandecente; mas, ao menos, ele tinha uma posição para si. No novo mundo, não lhe é mais atribuída nenhuma posição. Montaigne fala da vaidade da qual o homem fez a experiência ao se situar entre as estrelas: é o sinal de que, de sua parte, ele se situa sempre no antigo cosmos, pois no novo universo a vaidade desaparece, as estrelas não tendo mais nada de nobre. Antes, tinha-se uma Terra posicionada o mais abaixo de tudo — mas que, precisamente por isso, situava o homem num espaço ordenado e significante. A Terra é desde então um planeta entre outros, perdida na imensidão, no “silêncio eterno dos espaços infinitos” que apavora o libertino de Pascal. Com efeito, a partir do momento em que a distinção entre o mundo terrestre (sublunar) e o mundo celeste se apaga, os lugares tornam-se equivalentes, o espaço se homogeneiza, confunde-se com um espaço geométrico euclidiano sem lugares privilegiados, isotrópico, infinito.

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Montaigne

A questão da medida é perturbada por isso. Num cosmos, isto é, segundo o primeiro sentido do termo, num conjunto bem ajustado, harmonioso e finito, as dimensões de um objeto fazem parte de seu ser e participam de sua conjunção com o todo. Decerto, as medidas às quais procedemos são sempre, necessariamente, relativas: comparamos o tamanho de um objeto àquele de um outro, casualmente tomado como referência ou unidade de medida. Não é menos verdade, porém, que o tamanho de cada entidade, independentemente da unidade na qual o estimamos, tenha igualmente, à parte a inserção dessa entidade no cosmos, um sentido absoluto. No espaço geométrico euclidiano, que com o advento da ciência moderna se tornará o quadro explícito ou implícito para pensar o universo, não é assim. Esse espaço é ao mesmo tempo infinitamente extenso e, sendo todo ponto sem dimensão, infinitamente divisível. Portanto, não há mais nem elemento máximo nem elementos mínimos suscetíveis de fixar uma escala; nada mais que, na homogeneidade geométrica, possa fazer fronteira, limite. Pascal foi um dos primeiros, no século XVII, a tomar plena consciência da nova situação e a se dedicar a extrair as consequências dela. Tal é o propósito do fragmento mais desenvolvido de todos os Pensamentos e, como o testemunham as múltiplas correções de que foi objeto, um dos mais trabalhados, intitulado “Desproporção do homem” [3]. Por desproporção não se deve pensar aqui “má proporção”, ou “tamanho excessivo”, como o quereria o uso corrente do termo, mas sim ausência de referência com relação à qual poderíamos “estabelecer proporção”. “Eis onde nos levam os conhecimentos naturais”, escreve Pascal ao começar — confirmando com essas palavras que é justamente a nova ciência que o conduz a desenvolver as considerações que se seguem. O homem se encontra sem medida absoluta, sem proporção, pois “nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o encerram e lhe escapam”: o finito é tanto nada com respeito ao infinito quanto tudo com respeito ao nada. Para tornar esse último ponto mais compreensível, Pascal apresenta ao homem um siro, esse ácaro minúsculo que, à época, era o menor animal conhecido. De seu interlocutor ele exige que pense nas pernas e nas articulações de que é provido esse animal, quase invisível a olho nu; depois, que pense nas veias que o irrigam, no sangue que nelas circula, nos humores desse sangue, nas gotas desses humores, nos vapores dessas gotas, até o último objeto que a imaginação, perseguindo as divisões do siro, consiga conceber. Depois, o homem, que acreditava ter enfim atingido “a extrema pequenez da natureza”, é convidado a descobrir nesse mais ínfimo dos objetos um novo abismo: “que aí veja uma infinidade de universos, dos quais cada um tem seu firmamento, seus planetas, sua terra, na mesma proporção que o mundo visível; que veja nessa terra uma infinidade de animais e enfim de siros, nos quais ele reencontrará aquilo que os primeiros apresentaram, encontrando também nesses outros a mesma coisa, sem fim e sem repouso, de modo a perder-se nessas maravilhas tão espantosas em sua pequenez quanto as outras em sua extensão; pois quem não admirará que nosso corpo, que sequer era perceptível no universo, ele próprio imperceptível no seio do todo, seja agora um colosso, um mundo, ou antes um todo com respeito ao nada onde não podemos chegar?”

Não saberíamos exprimir melhor a relatividade de toda medida que se impõe ao pensamento moderno. Se Pascal se distingue aqui, é sobretudo por suas qualidades literárias: quanto à ideia que ele expõe, ela é compartilhada pela maior parte dos espíritos esclarecidos de seu tempo.

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II – A lição de Galileu

Acontece, porém, que a experiência mental que ele propõe, segundo a qual os mesmos fenômenos se reencontram de escala em escala, ao infinito, repousa sobre um falso postulado. Ela é inspirada pelo novo olhar científico sobre o mundo; e, no entanto, esse mesmo olhar a invalida. Para mostrá-lo, poderíamos invocar a ciência contemporânea. Com efeito, segundo as teorias hoje correntes, não está excluído que o universo seja de extensão finita (mas de tamanho crescente e sem fronteiras, como a noção matemática de variedade o permite conceber); de todo modo, ele não é nem homogêneo nem isotrópico (quer dizer, ele não apresenta as mesmas características em todo ponto e em toda direção, pois a métrica do espaço-tempo é modificada pela matéria e pela energia, conforme as equações de Einstein). Ademais, sabemos que as forças preponderantes não são as mesmas segundo a escala, o que enseja fenômenos de naturezas em si mesmas diferentes — o mundo subatômico não se parece de modo algum com o macroscópico. Quanto à divisão ao infinito do espaço, ela é provavelmente desprovida de sentido físico (segundo a teoria das supercordas, por exemplo, não haveria sentido em se falar de um comprimento inferior ao comprimento de Planck, da ordem de 10-35m). Isso posto, para contradizer o argumento de Pascal, não é preciso fazer qualquer referência a teorias tão recentes e sofisticadas, que não poderiam deixar de ser ignoradas por ele e por seu século. Para tanto, basta a física de Galileu.

A coisa, a priori, pode parecer espantosa. De fato, Galileu foi um dos grandes artesãos da liquidação do antigo cosmos, finito e hierarquizado, em favor de um universo infinito, escrito do início ao fim em linguagem matemática [4]. Tycho Brahe em 1572, Kepler em 1604, ambos tinham notado e descrito o aparecimento de novas estrelas no céu, o qual, portanto, não se revelava tão imóvel como se acreditara (o aparecimento dessas estrelas, qualificadas à época de novae, é hoje compreendido como o resultado da explosão de estrelas em fim de vida), e Galileu, através de sua luneta, observou os satélites de Júpiter, as fases de Vênus, as montanhas da lua e as manchas solares: os astros não tinham, portanto, a absoluta regularidade que se creditava a eles e, escrutinados com atenção, traíam semelhanças perturbadoras com a Terra. Reciprocamente, o movimento de queda dos corpos sobre a Terra, que a tradição opunha aos movimentos regulares dos astros no céu, revelava-se matematizável. Galileu concluiu disso que não havia duas naturezas, mas uma só e uma só física válida por toda parte. Seria preciso esperar por Newton e a lei da gravitação universal para que essa afirmação adquirisse um conteúdo verdadeiro. Mas a descoberta das leis gravitacionais, às quais concernem tanto a queda da maçã sobre a Terra quanto o movimento de um planeta no céu, necessitava que os dois fenômenos, o terrestre e o celeste, pudessem ser concebidos em conjunto; dito de outro modo, necessitava que a natureza já fosse, em pensamento, unificada. O vetor dessa unificação era a geometria [5] — ela não é mais língua dos astros eternos, mas do universo inteiro, assim homogeneizado. Tal é o pano de fundo sobre o qual se desdobra o raciocínio de Pascal.

Mas com Galileu as coisas não param por aí. Dele, conhecemos mais seu Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, que lhe valeu seu segundo e célebre processo em 1633, do que sua última obra, seus Discursos sobre duas novas ciências, publicados em Leiden em 1638. No entanto, o principal objetivo do Diálogo sobre os dois grandes sistemas era provar que o sistema de Copérnico não era apenas uma hipótese conveniente para realizar cálculos astronômicos, mas uma verdade física, atestada pelo fenômeno das marés, que teria se mostrado como uma consequência desse sistema [6]. O Diálogo expõe um grande número de argumentos interessantes. Mas, por fim, a teoria das marés de Galileu, não podendo levar em conta a atração gravitacional e omitindo a grande influência da lua, é uma teoria errada: seria preciso esperar mais de meio século para que Newton desse a primeira explicação mais aproximadamente correta do fenômeno. Quanto aos Discursos, porém, eles são inteiramente inovadores, em particular no que concerne à sua primeira parte, consagrada ao estudo da resistência dos materiais. O texto se inicia com uma visita ao Arsenal de Veneza. Ao redor de um galeão à espera de ser lançado à água, está montado um aparelho de suporte, bem maior em proporção do que aquele ao redor dos navios menores. Um velho garante que isso é feito com o galeão “para evitar que ele se quebre, esmagado pelo peso de sua enorme massa, enquanto os navios menores estão isentos desse inconveniente” [7]. Sagredo, o personagem inteligente e sem a priori dos diálogos de Galileu, critica essa opinião popular segundo a qual muitos projetos viáveis ??em pequena escala não poderiam ter sucesso em larga escala; uma vez que, como ele avalia, as demonstrações mecânicas baseadas na geometria e as propriedades geométricas de uma figura são as mesmas em qualquer escala, uma máquina grande deve funcionar da mesma maneira e com a mesma eficiência que uma pequena, caso sejam idênticas as proporções entre os diferentes elementos que as compõem. Salviati, o porta-voz de Galileu, concorda com Segredo na crítica à opinião popular. De fato, ele observa, às vezes é o contrário que se mostra verdadeiro, a saber: aquilo que funciona em grande escala é inoperante em menor escala. Mas Salviati também contradiz seu interlocutor: “Não creia mais o senhor, talvez juntamente com muitos daqueles que estudaram mecânica, que máquinas e construções feitas com os mesmos materiais, reproduzindo escrupulosamente as mesmas proporções entre as partes, devam ser igualmente ou, melhor dito, proporcionalmente aptas a resistir ou a ceder às arremetidas e aos choques vindos do exterior, pois pode-se demonstrar geometricamente que as maiores são sempre proporcionalmente menos resistentes que as menores; de modo que, no fim das contas, todas as máquinas e construções, sejam artificiais ou naturais, têm um limite necessário e prescrito que nem a arte e nem a natureza podem ultrapassar — entendendo-se, é claro, que as proporções e os materiais permaneçam sempre idênticos” [8].

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Galileu

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O que Galileu afirma é que o mundo não poderia ser invariante por uma mudança de escala [9]: em termos modernos, falamos de não-linearidade. Pensemos, para tomar um exemplo muito simples, nos gigantes que aparecem em certos contos, dez vezes maiores que um homem normal. Se todas as suas dimensões são multiplicadas por dez, seu volume e seu peso são multiplicados por mil (um homem de 2 metros e de 100 quilos torna-se um gigante de 20 metros e de 100.000 quilos). Disso resulta que os esforços exercidos por unidade de superfície da seção de um osso como o fêmur, quando o gigante está de pé, são multiplicados por dez, e que, ao primeiro passo, o gigante quebra a perna. De maneira geral, por meio de numerosos argumentos e cálculos, Galileu destaca “a impossibilidade, não apenas para a arte, mas para a própria natureza, de aumentar suas construções para dimensões enormes; assim, será impossível fabricar navios, palácios ou templos de tamanho extremo e cujos remos, mastros, vigas, chaves, em uma palavra, todas as partes ainda se mantivessem unidas; de sua parte, a natureza será incapaz de produzir árvores de tamanho excessivo, uma vez que os galhos, dobrando-se sob seu próprio peso, acabariam quebrando; do mesmo modo, aliás, será impossível, tanto para os homens quanto para os cavalos ou os outros animais, produzir esqueletos capazes de durar e cumprir regularmente suas funções, à medida que esses animais cresçam imensamente em altura: a não ser, é claro, que fosse possível usar um material muito mais duro e mais resistente que o habitual e deformar seus ossos aumentando-os desproporcionalmente, o que resultaria em torná-los monstruosos na forma e no aspecto. Para ilustrar brevemente o que estou dizendo, representei um osso cujo comprimento só foi aumentado três vezes, mas cuja espessura foi aumentada para que ele possa executar a mesma função em um animal grande que o menor em um animal pequeno; eis as figuras nas quais o senhor percebe como o osso aumentado adquire uma forma desproporcional. Portanto, parece claro que, — se alguém quisesse preservar num gigante particularmente grande a proporção que os membros têm num homem comum —, seria necessário encontrar uma matéria muito mais dura e resistente para constituir os ossos, ou admitir que sua robustez seria proporcionalmente muito mais fraca que a de homens de média estatura; caso contrário, ao aumentar sem medida sua altura, ele seria visto dobrando-se sob seu próprio peso e desmoronando” [10].

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(Reprodução)

III – A importância decisiva da escala

Essas observações podem parecer triviais. É preciso, entretanto, que o pensamento moderno seja penetrado por elas. É significativo a esse respeito que Sagredo, o veneziano esclarecido, ou Pascal, em seu argumento do siro (o qual, é verdade, não tem valor senão metafórico na argumentação pascaliana), mostram-se, sobre esse assunto, mais distantes da verdade do que o velho imbuído de sabedoria tradicional encontrado no estaleiro. A liberação da reflexão face às dimensões naturais oferecidas à experiência aparece, de certa forma, como uma conquista da modernidade. O biólogo D’Arcy Thompson cita, como exemplo, as reflexões de dois grandes cientistas do século XIX e do início do século XX: “Oliver Heaviside costumava dizer […] que não há escala absoluta de tamanho no universo, pois ele é ilimitado em direção ao grande e também ilimitado em direção ao pequeno. É da própria essência da filosofia newtoniana que possamos estender nossos conceitos e deduções de um extremo da escala de grandeza ao outro; e Sir John Herschel disse que ‘o estudioso deve abandonar sua busca pela distinção entre o grande e o pequeno, completamente aniquilados na natureza’” [11]. Mesmo quando essa posição não é, ou não é mais, reivindicada, ela sempre tende a informar o pensamento, impedindo de dar às questões de escala a atenção que merecem. J. B. S. Haldane percebeu isso em biologia: “As diferenças mais óbvias entre diferentes animais são diferenças de tamanho, mas por alguma razão os zoólogos lhe deram, curiosamente, pouca atenção. Num espesso manual de zoologia diante de mim, não encontro indicação que a águia seja maior que o pardal, ou que o hipopótamo seja maior que a lebre, embora algumas indicações sejam feitas de maneira hesitante no caso do rato e da baleia. No entanto, é fácil mostrar que uma lebre não pode ser tão grande quanto um hipopótamo, ou uma baleia tão pequena quanto um arenque. Para todo tipo de animal há um tamanho mais conveniente, e uma grande mudança de tamanho traz consigo inevitavelmente uma mudança de forma” [12]. D’Arcy Thompson, como Haldane após ele, insistiram sobre o fato de que, por simples razões de física, como aquelas trazidas à luz por Galileu, a dimensão não pode ser considerada como um parâmetro secundário na caracterização de uma forma viva: o tamanho determina, em grande parte, o tipo de organização possível.

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Sir John Herschel

Se a célula, unidade estrutural do vivente, tem um tamanho entre um e cem micrômetros (ou seja, entre um milésimo e um décimo de milímetro), é porque ela não poderia ser pequena demais, pelo risco de não conseguir reunir em seu interior as estruturas moleculares necessárias à sua constituição e ao seu metabolismo, nem grande demais, pelo risco de não ser mais capaz de alimentar esse metabolismo. As necessidades alimentares, com efeito, são proporcionais ao volume, enquanto as possibilidades de alimentação são proporcionais à superfície. Ora, numa forma constante, a razão da área ao volume varia como o inverso do tamanho: grande demais, a célula não consegue mais se alimentar, e uma divisão se torna necessária para restabelecer uma razão superfície/volume que seja viável (sem prejudicar os mecanismos efetivos que controlam essa divisão). Organismos multicelulares são confrontados ao mesmo tipo de problema e, de maneira geral, “um desafio da evolução está implicado na manutenção do devido equilíbrio entre superfície e massa à medida que o crescimento avança” [13], de modo que as soluções válidas em uma determinada escala encontram rapidamente seus limites. O tamanho crescente coloca dificuldades que exigem estruturas cada vez mais complexas de serem superadas, e “os animais mais evoluídos [higher animals] não são maiores que os menos evoluídos [the lower] porque são mais complicados. Eles são mais complicados porque são maiores” [14]. Assim, a oxigenação dos insetos pela difusão simples do ar ao longo dos finos tubos em “becos sem saída” que são as traqueias e as traquéolas é praticável somente em distâncias muito curtas, do que se conclui que a espessura do corpo de um inseto ou de um aracnídeo dificilmente pode exceder meio centímetro, e que, na realidade, as aranhas gigantes dos filmes de terror, além de nunca poderem atingir aquele tamanho, morreriam durante o filme de asfixia. Os crustáceos, cujo plano anatômico se assemelha ao dos insetos, podem atingir maiores dimensões porque possuem um sistema respiratório; são portanto as restrições mecânicas ligadas ao exoesqueleto que limitam seu tamanho, que não excede o de caranguejos e de lagostas.

A importância da escala nos fenômenos físicos, bem apreendida por Galileu, é suficiente para compreender que a forma e organização dos seres vivos é necessariamente muito diferente de acordo com a ordem de grandeza de seu tamanho — quer nos coloquemos na escala do bacilo, do inseto ou do homem. As forças de contato, em particular, não agem senão proporcionalmente à superfície que lhes é oferecida, enquanto a força da gravidade é exercida uniformemente sobre todas as partículas do corpo — as primeiras são proporcionais à  interface interior/exterior; a segunda, proporcional à massa, e, portanto, salvo por um fator [16], ao volume. Do fato de que a razão superfície/volume diminui rapidamente com o tamanho, segue-se que “se as forças físicas moldam os organismos diretamente, então as pequenas criaturas devem ser o produto de forças de superfície, e grandes criaturas, de forças gravitacionais (volumétricas)”. Daí decorre que, “nos maiores e nos menores organismos, há uma diferença essencial de espécie entre os fenômenos de forma”. Na escala humana, a força da gravidade é tão determinante que se ela “duplicasse, nossa bipedia seria um fracasso, e a maior parte dos animais terrestres se pareceria com sauros de pernas curtas, ou então serpentes. […] Por outro lado, se a força da gravidade fosse reduzida pela metade, nós seríamos mais leves, mais esbeltos, mais ativos, necessitando de menos energia, menos calor e menos sangue, e nosso coração e nossos pulmões poderiam ser menores” [17]. Mesmo que não exista um limiar absoluto de viabilidade para este ou aquele tipo de forma e organização, existem no entanto descontinuidades: “A escala de mamíferos, à medida que os tamanhos diminuem, interrompe-se abruptamente em um peso de cerca de 5g, aquela dos besouros em um comprimento de cerca de meio milímetro, e cada grupo de animais tem suas limitações superior e inferior de tamanho” [18]. Como enfatiza ainda Haldane, para cada tipo de animal existe um tamanho ótimo. É apenas na imaginação de Swift e de seus leitores que Gulliver, os Brobdingnags e os Liliputianos podem coexistir: na realidade, uma mesma forma orgânica não poderia ser viável em escalas tão diferentes.

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Gulliver e o Imperador de Lilliput, em ilustração de edição francesa da década de 1850 d’As Viagens

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IV – As razões de uma ignorância

É notável que Galileu, enquanto trabalhava constantemente para desmantelar o cosmos tradicional e, com isso, parecia abrir caminho para uma concepção puramente relativa da medida, tenha também, ao fim de sua vida, dado os meios para refundar a ideia de medida absoluta sobre novas bases, ao mostrar que o mundo, mesmo considerado more mathematico, não poderia ser invariante por mudança de escala [19]. A oposição ou a disjunção entre quantitativo e qualitativo encontra-se aí amplamente enfraquecida, porque a quantidade determina em uma larga medida as qualidades possíveis, e as qualidades não podem ser alcançadas senão no interior de limites quantitativos muito pouco extensíveis.

Não é menos digno de nota constatar o quanto o pensamento moderno parece evitar essa relação. Para Aristóteles, o único movimento perpétuo concebível era a descrição periódica de uma trajetória fechada, porque a natureza não dava outro exemplo dele. Seria preciso abstrair do mundo tal como ele se dá aos nossos sentidos para poder formular o princípio de inércia, segundo o qual, na ausência de toda força exterior, um corpo conserva sua velocidade em intensidade e direção (num referencial dito galileano). Mas é como se esta abstração, muito útil nesse caso, em seguida houvesse presidido a apreensão do mundo em geral, visto como uma acumulação de corpos que são primeiramente independentes entre si e, num segundo momento, entram em interação. Ao seguir esse modo de proceder — que foi estimulado pelo desenvolvimento de concepções individualistas, as quais, por sua vez, eram por ele favorecidas —, tornou-se muito difícil captar o caráter essencial do tamanho, pois “o efeito de escala não depende de um objeto em si mesmo, mas sim de sua relação com todo o ambiente, com o meio; esse efeito está em conformidade com a ‘posição do objeto na natureza’, com seu campo de ação e de reação no Universo. Todo o funcionamento da natureza é perfeitamente ajustado, e o tamanho de cada objeto é precisamente adaptado a esse funcionamento” [20].

Aristóteles com um busto de Homero, Rembrandt, 1653

Outra razão para a subestimação, por assim dizer, sistemática da importância das questões de grandeza na própria definição das coisas se deve à progressiva autonomização, durante o período moderno, disso que se chamava de início filosofia natural, o que levou, no século XIX, a uma separação quase total entre as ciências e as letras [21]. Segundo Heidegger, a universidade deveria ter sido organizada em três grandes faculdades: ciências, letras e uma terceira entidade que reuniria matemáticas e filosofia. As coisas não se passaram assim: as matemáticas foram colocadas ao lado das ciências, em vista de sua implicação essencial na física e, de modo mais geral, no ideal científico moderno; a filosofia foi colocada ao lado das letras, em virtude de um vínculo persistente com as humanidades e porque ela se encontra despojada pela nova ciência de suas antigas pretensões científicas. Por conseguinte, o pensamento filosófico terá a tendência a fazer da necessidade virtude, a ostentar certa indiferença, até mesmo um crescente desdém, em face das questões quantitativas, relegadas aos cientistas e aos seus cálculos — chegando muitas vezes, ao que parece, a ter como ponto de honra ignorar o número no momento mesmo em que ele ganhava cada vez mais importância na condução dos assuntos humanos.

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Martin Heidegger

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Tomemos o exemplo da filosofia política. Na Grécia antiga, havia grande consciência do papel determinante desempenhado pelo tamanho de uma população. Eis por que Platão, nas Leis (V, 737e-738b) se preocupava com o número de cidadãos proprietários de sua cidade ideal (fixado em 7! = 5040, por razões de divisibilidade de qualquer número até 10 — mas é a ordem de grandeza que nos interessa aqui). Aristóteles, na sua Política, mostrou-se menos preciso, mas não deixou de dar grande atenção à questão: “O que também resulta claro do exame dos fatos é que é difícil e talvez impossível para um Estado de população muito numerosa ser regido por boas leis. Em todo caso, entre os estados com reputação de ser sabiamente governados, não vemos nenhum descurar de sua vigilância no tocante à cifra da população. Além disso, esse ponto se torna evidente com base em argumentos teóricos. A lei é, com efeito, certa ordem (?????), e a boa legislação é necessariamente uma boa ordem; ora, uma população que atinge uma cifra elevada demais não pode prestar-se a uma boa ordem; introduzir nela a ordem seria, portanto, um trabalho que se alça a certa potência divina, aquela mesma que garante a coesão das diversas partes de nosso Universo (?? ???). […] Existe, de fato, certa medida de grandeza para um Estado, como há também para tudo mais, animais, plantas, instrumentos: nenhum desses seres, se é pequeno demais ou de grandeza excessiva, conserva sua capacidade de cumprir sua função, mas por vezes terá perdido completamente sua natureza e por vezes verá sua condição viciosa” [22]. Vê-se que, para Aristóteles, a questão do tamanho era fundamental, porque só se tornava possível dar à cidade boas leis se esse tamanho se mantivesse dentro de suas fronteiras bem estreitas — por mais diferentes que tais leis pudessem ser de uma cidade a outra. O tamanho não era um parâmetro que se acrescia posteriormente ao sistema de leis, era o pré-requisito que permitia ou não a um sistema de leis cumprir seu papel. Se dermos um grande salto até o século XVIII, notamos que os filósofos das Luzes se dispunham de bom grado ao exame de diferentes tipos de regime in abstracto. Eles não deixaram, porém, de lembrar-se imediatamente da importância das dimensões do território e da população, e tinham em conta esses dados para determinar aquilo que, segundo eles, mais convinha a tal ou qual tipo de situação. Assim, Montesquieu ou Rousseau concordavam ao considerar que um regime democrático não era viável senão para populações pequenas (“um Estado muito pequeno, onde seja fácil reunir o povo e cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros” é o primeiro requisito enunciado em O contrato social). A partir do século XIX, no entanto, tem-se a impressão de que só os utopistas e os experimentadores socialistas levavam realmente a sério as questões de número, fazendo delas um elemento determinante da organização que imaginavam ou procuravam implementar (Charles Fourier com seus falanterios de cerca de 1600 membros, Robert Owen com seus paralelogramos reunindo de 500 a 3000 pessoas; Horace Greeley com suas associações que deviam contar com algumas centenas ou alguns milhares de membros).  Hoje, o uso do termo “democracia” para evocar tanto o sistema político da Atenas do século V antes da nossa era quanto o da Índia contemporânea parece não incomodar ninguém, como se houvesse uma essência da democracia que se conservaria inalterada quando se passa de uma população de 400.000 habitantes, dos quais apenas um décimo são cidadãos, para uma população de mais de 1,2 bilhões habitantes, com mais de 700 milhões de votantes nas eleições gerais (ou seja, respectivamente 3.000 e 18.000 vezes mais na Índia de hoje do que na Atenas clássica). Leopold Kohr [23], no século XX, foi um dos raros pensadores a ressaltar que a primeira característica de uma sociedade é o tamanho de sua população, e que há muito mais semelhanças, ou muito menos diferenças, entre uma “democracia” e uma “monarquia” com algumas centenas de milhares ou alguns milhões de cidadãos do que entre duas democracias ou duas monarquias, uma com cem, mil ou dez mil vezes mais habitantes do que a outra [24]. Aplicadas em escalas tão diferentes, as palavras “democracia”, “aristocracia” ou “monarquia” tornam-se uma “ilusão de ótica”, dando a impressão de uma essência comum onde, simplesmente por causa do número, não pode subsistir quase nada em comum.

A questão do tamanho, do número, permanece em larga medida um ponto cego na reflexão filosófica moderna e contemporânea, que se empenha em definir conceitos sem qualquer referência quantitativa, esquecendo-se de que a maioria dos conceitos foi elaborada dentro de um determinado horizonte para além do qual eles perdem seu sentido ou se tornam algo bem diferente, mesmo mantendo seu nome — de modo que a comunidade de termos semeia então confusão no pensamento. É tentador atribuir tal falha a uma “perda dos sentidos”, ou pelo menos a uma perda de confiança nos testemunhos dos sentidos e a uma redução da atenção lhes prestamos, algo que seria característico da modernidade. O corpo humano deixa de ser um padrão de medida para o mundo (como ilustra o apagamento pelo sistema métrico de unidades como o polegar, o pé, o côvado, o bastão etc.) e, com isso, a noção de dimensão absoluta é concretamente perdida. Entretanto, se Galileu confessou sua admiração por Aristarco e Copérnico, que foram capazes de imaginar o sistema heliocêntrico porque neles “a razão pôde violentar os sentidos a ponto de se tornar, apesar dos sentidos, senhora de suas crenças” [25], vimos que ele também notou e ressaltou que o mundo não é invariante por mudança de escala. Disso resulta que o nó entre quantidade e qualidade é impossível de desfazer. Apagado sob seu antigo disfarce cósmico pela apreensão matemática do livro da natureza, ele reaparece de imediato, precisamente, sob forma matemática. As não-linearidades (em outras palavras, as variações de uma grandeza em relação a outra que não são simplesmente de proporcionalidade) fazem com que o mundo não seja nem possa ser invariante por homotetia. Contribui para esconder de nós esse fato a inflação contemporânea das imagens e do “virtual”. As imagens nos acostumam a considerar as coisas ou os seres retratados independentemente da escala em que eles existem. Em uma tela de computador, podemos até mesmo variar o tamanho como desejamos: a medida não é só relativa, mas está à nossa disposição. Na realidade, porém, é diferente. Quando o tamanho aumenta (ou diminui), a forma não pode ser mantida por muito tempo: as não-linearidades geram limiares onde um sistema passa de um tipo de comportamento para outro, “catástrofes” [26] que, em alguns casos, podem ser eminentemente benéficas e desejáveis e, em outros, são sinônimo de destruição, de desmoronamento [effondrement] (como o significado corrente do termo em francês bem indica). As não-linearidades dão um sentido à noção de medida absoluta, embora isso implique compreender que tal caráter absoluto não é um número preciso, mas uma ordem de grandeza que, para qualquer objeto, faz parte de sua essência. Ao insistir neste ponto, a ciência moderna poderia contribuir para refundar uma forma de sabedoria cósmica, em vez de nos fazer esquecê-la.

Detalhe de  Etablissement de l’Académie des Sciences et fondation de l’observatoire, Henri Testelin, 1666

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Notas:

[1] Ver a 18ª lição de Introdução à psicanálise, “A fixação no trauma; o inconsciente”, proferida em 1916, e Uma dificuldade da psicanálise [1917].

[2] Ensaios [1580-1588], Livro II, Capítulo XII: “Apologia de Raimond Sebond”, em Oeuvres complètes, Paris, Seuil, 1967, p. 187. De modo mais geral, sobre o estatuto da Terra no sistema de Ptolomeu, ver Rémi Brague, “Geocentrism as a Humiliation for Man”, Medieval Encounters n° 3, 1997, pp. 187-210.

[3] Pensamentos [1669], fragmento 185 da edição Le Guern, Paris, Gallimard, 1977 (Brunschvicg 161, Lafuma 174).

[4] Alexandre Koyré ressalta que no debate sobre a finitude ou infinitude do universo, Galileu não tomou partido, o mundo lhe permanecendo, antes, “indefinido” (ver o capítulo “Coisas que ninguém jamais viu”, em Du monde clos à l’univers infini [Do mundo fechado ao universo infinito] [1957], trad. Raissa Tarr, Paris Gallimard, coll. Tel, p. 122 ss.). Entretanto, acrescenta Koyré, ainda que Galileu não tenha jamais tomado o partido de tornar o mundo infinito, essa dimensão estava “implicada na geometrização do espaço, da qual ele foi um dos principais promotores” (p. 126).

[5] Galileu mostrou que, caso se negligencie a resistência do ar, a trajetória de um projétil sobre a superfície da Terra é uma parábola, e Kepler compreendeu que as órbitas dos planetas são elipses. Nos dois casos, lida-se com cônicas (figuras obtidas por intersecção de um cone e de um plano), e era preciso esse parentesco matemático para que Newton pudesse imaginar uma lei de gravitação universal.

[6] Ao fim do século, Leibniz procurou encerrar o debate entre heliocentrismo e geocentrismo ao fazer do movimento uma noção puramente relativa: a escolha do ponto fixo era, portanto, arbitrária. Mas o movimento não se reduz à cinemática — ele tem também efeitos dinâmicos: os partidários de Newton salientaram que, quando por meio de uma corda, fazemos girar horizontalmente ao redor de nós um balde cheio de água, a força centrífuga pressiona a água para o fundo do balde; ao passo que, quando corremos em volta do balde, o qual, de sua parte, não faz mais que girar horizontalmente sob o próprio eixo, a água mantém-se espalhada; na física galileano-newtoniana, portanto, deve ser feita uma distinção entre movimento relativo e movimento absoluto. É precisamente isso que Galileu pretendia fazer ao conceber as marés como um efeito dinâmico da rotação da Terra em torno do sol. (Foi necessária a relatividade geral para que, por meio das fórmulas adequadas de mudança de referenciais espaço-temporais, fosse abolida a distinção entre movimento relativo e movimento absoluto; neste contexto, tanto podemos dizer que a Terra gira em torno do Sol, quanto vice-versa).

[7] Discours concernant deux sciences nouvelles [Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze, 1638], trad. Maurice Clavelin, Paris, P.U.F., coll. Épiméthée, 1995, p. 7 (Le Opere, éd. G. Barbera, 20 vol., Florence, 1890-1909, t. VIII, p. 50).

[8] Id., p. 8 (Op. VIII, 58). Quando Sagredo pretende deduzir da geometria que todas as escalas são equivalentes, Galileu responde que se pode provar, de maneira geométrica, que isso é improcedente.

[9] Os objetos fractais, que oferecem a mesma fisionomia em qualquer escala em que sejam observados, parecem ser uma exceção; mas, de fato, eles são objetos excepcionais nas matemáticas e, no mundo físico, a similaridade de fisionomia entre diferentes escalas de observação, quando ocorre, permanece sempre limitada a algumas ordens de grandeza.

[10] Id., p. 106-107 (Op. VIII, 169-170). O osso grande tem três vezes o comprimento do pequeno, mas para estar em condição de transportar uma massa 27 (33) vezes maior, sua seção também deve ser multiplicada por 27, o que significa que seu diâmetro deve ser multiplicado por ?27 = 3 ?3 (ou cerca de 5,2). O desenho de Galileu exagera levemente a protuberância do osso grande para tornar ainda mais espetacular a mudança de forma.

[11] D’Arcy Thompson, Forme et Croissance [On Growth and Form, 1917, 1942], ed. John Tyler Bonner [Cambridge University Press, 1961, 1992], trad. Dominique Teyssié, Seuil, coll. Sources du savoir, 1994, p. 44-45.

[12] Haldane, J. B. S. “On Being the Right Size”, Harper’s Magazine, março 1926. Reeditado em Possible Worlds and Other Essays, Londres, Harper and Brothers, 1927.

[13] D’Arcy Thompson, op. cit., p. 60. Haldane também o diz: “A anatomia comparada é em grande parte a história da luta” para aumentar a superfície em relação ao volume (art. cit.).

[14] J. B. S. Haldane, art. cit.

[15] D’Arcy Thompson, op. cit., p. 52.

[16] Nota de tradução: a saber, a densidade, que é um fator constante salvo mudança de material.

[17] Idem, p. 9-10 (prefácio de Stephen Jay Gould), p. 61 e p. 57. Quanto mais o tamanho de um organismo cresce, mais a gravidade se torna para ele uma restrição importante, e um perigo — enquanto ela exerce pouco efeito sobre os organismos de pequenas dimensões. Galileu o notara: “Quem não vê que um cavalo quebrará seus ossos se cair de uma altura de três ou quatro côvados [um côvado mede cerca de 45 centímetros], mas que um cachorro, nas mesmas condições, ou um gato caindo de oito ou dez côvados de altura, não sofrerão nenhum mal, assim como um grilo solto de uma torre ou uma formiga caindo desde a órbita lunar?”  (Discours…, op. cit., p. 9). Isso ocorre porque a resistência que o ar oferece à queda de um objeto é proporcional à superfície desse objeto, enquanto a força gravitacional é proporcional à sua massa. Por outro lado, as forças de tensão superficial, que não têm por que nos assustar, são muito perigosas para os insetos. “Um homem que sai de um banho carrega consigo uma película de água com cerca de meio milímetro de espessura, pesando aproximadamente uma libra. Um rato molhado tem que carregar aproximadamente o seu próprio peso em água. Uma mosca molhada tem que levantar muitas vezes seu próprio peso e, como todos sabem, uma mosca, uma vez molhada com água ou com qualquer outro líquido, está de fato em uma posição muito perigosa. Um inseto que vai tomar uma bebida corre um perigo tão grande quanto um homem que se inclina sobre um precipício em busca de comida. Se em algum momento ele cair nas garras da tensão superficial da água — ou seja, caso se molhe — é provável que permaneça assim até morrer. Alguns insetos, como os besouros aquáticos, conseguem ser impermeáveis; a maioria mantém-se bem afastada de sua bebida por meio de uma longa tromba” (Haldane, art. cit.).

[18] D’Arcy Thompson, op. cit., p. 65.

[19] Por exemplo, dizer de um homem de 2,50 metros que ele é um gigante pode ser entendido de outro modo pela simples comparação com o tamanho médio observado: o tamanho de 2,50 metros poderia se avizinhar do limite além do qual a forma e a organização humanas não são mais viáveis. Um homem de 2,50 metros não seria grande em termos relativos à nossa experiência empírica, “provincial”, do real porque jamais vimos homens de 3  metros (como os antigos poderiam julgar extremamente rápido um cavalo ao galope porque não conheciam os trens de grande velocidade e os aviões); um homem de 2,50 metros seria muito grande em termos absolutos porque um homem de 3 metros é impossível.

[20] D’Arcy Thompson, op. cit., p. 45. Alexandre Koyré observa que “ao adotar universalmente o modelo atômico de análise e aplicá-lo a eventos e ações dados globalmente, faz-se com que essas totalidades não apareçam como reais, mas sim como meros resultados matemáticos e adições de fatores elementares sub-jacentes. Esse tipo de análise levou a uma má interpretação nominalista da relação entre um totum e suas partes; uma má interpretação que, de fato, leva a uma completa negação das totalidades (um totum reduzido à pura adição de suas partes não é um totum), algo que o pensamento dos séculos XIX e XX teve tanta dificuldade em superar” (“Sens et portée de la synthèse newtonienne” [1948], in Études newtoniennes, Paris, Gallimard, col. Bibl. des idées, 1968, p. 42).

[21] No final do século XVII, essa separação ainda não era concebível. O dicionário Furetière [1690] o atesta: LETRAS: também se diz das ciências. ‘Ele é um homem de Letras’, ‘ele foi educado nas Letras’, ‘ele dispõe das Letras’. ‘Os bárbaros são inimigos das Letras, não as cultivam’. […] Fala-se das ‘Letras humanas’ e, abusivamente, das ‘belas Letras’ como o conhecimento de poetas e oradores; ao passo que as verdadeiras belas Letras são a Física, a Geometria e as ciências sólidas. CIÊNCIA: Conhecimento das coisas, adquirido por uma grande leitura ou por uma longa meditação. ‘Erasmo tinha um grande acúmulo de ciência, de doutrina’. […] ‘A Filosofia inclui todas as ciências.’ […] Falamos de ‘ciências humanas’, do conhecimento de Línguas, Gramática, Poesia, Retórica e outras coisas que aprendemos nas Humanidades.

[22] Trad. Jules Tricot, Vrin, coll. Bibli. des Textes philosophiques, 1995, 1326a. Não eram apenas os filósofos que se preocupavam com o tamanho das cidades: elas próprias tomavam medidas concretas para controlar seu tamanho, fundando colônias justamente para aliviar seu excedente populacional.

[23] Kohr nasceu em 1909, na cidade de Oberndorf, perto de Salzburg, e morreu em Gloucester, no País de Gales, em 1994. Embora a anexação da Áustria (Anschluss) o tenha levado a expatriar-se nos Estados Unidos (ele lecionou na Universidade Rutgers e mais tarde na Universidade de Porto Rico) e a tornar-se um cidadão americano, durante toda sua vida ele permaneceu convencido de que a unidade de distância apropriada para organizar uma sociedade saudável era da mesma ordem que a distância entre Oberndorf e Salzburg, a capital do estado: vinte e dois quilômetros. Além disso, Kohr estimava que nenhuma sociedade humana, qualquer que seja sua forma de organização, poderia viver adequadamente além de um máximo absoluto de doze a quinze milhões de membros. Ele foi um dos primeiros a receber o Prêmio Nobel alternativo, em 1983. Seu livro mais importante é The Breakdown of Nations [1957] (reimpresso em Totnes (Devon), Green Books, 2001).

[24] Entre as poucas exceções à negligência geral do caráter essencial do número está Georg Simmel, autor de um estudo intitulado “The Number of Members as Determining the Sociological Form of the Group”, publicado no American Journal of Sociology, n.  8, 1902, pp. 1-46 e 158-196 (traduzido do alemão por A.W. Small). Nesse longo artigo Simmel observa, entre outras coisas, que enquanto um regime autenticamente democrático requer uma população limitada, tampouco um regime aristocrático poderia acomodar um número de cidadãos grande demais; com efeito, a aristocracia deve ter mais membros para estar em condições de controlar uma população crescente, mas deve permanecer pequena o suficiente para que sua coesão seja  mantida pelo conhecimento direto de seus membros entre si e por alianças matrimoniais em todo o corpo social. Há, portanto, um limite absoluto para o tamanho de uma sociedade aristocrática. Simmel sublinha também o fato de que, quanto mais numerosa for uma sociedade, mais a divisão do trabalho deve ser fomentada, porque só ela é capaz de manter certa unidade dentro de uma população, que, sem ela, fragmentar-se-ia na primeira ocasião (nos termos de Durkheim, a “solidariedade orgânica”, fundada na interdependência dos indivíduos, cada um especializado numa tarefa, substitui a “solidariedade mecânica”, de proximidade, que liga indivíduos no seio de pequenas comunidades); em outras palavras, uma divisão extrema do trabalho não só é permitida por uma sociedade numerosa como é também uma condição para a existência dessa sociedade como tal — de uma forma que não deixa de lembrar a complexidade necessariamente crescente das organizações que crescem em tamanho, tal como apontado por Haldane.

[25] Dialogue sur les deux grands systèmes du monde, trad. René Fréreux et François de Gandt, Seuil, 1992, p. 331 et 337 (Op. VII, 355, 362-363).

[26] Nota de tradução: o autor parece aqui fazer referência à Teoria das Catástrofes, do matemático francês René Thom (1923-2002).

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