Michael Oakeshott: A Política da Fé e a Política do Ceticismo

O Estado da Arte reproduz o ensaio de Daniel Lena Marchiori Neto, posfácio de "A Política da Fé e a Política do Ceticismo" para a obra do filósofo Michael Oakeshott, publicada pela É Realizações.

Posfácio

Confira o livro de Michael Oakeshott publicado pela É Realizações

por Daniel Lena Marchiori Neto*

A publicação de A Política da Fé e a Política do Ceticismo em língua portuguesa cumpre importante papel para difundir a memória e o pensamento de Michael Joseph Oakeshott (1901-1990) no Brasil. Embora ele seja considerado um dos mais proeminentes filósofos conservadores do século XX, reverenciado e revisitado nos mais importantes círculos intelectuais do mundo, seu nome é quase desconhecido pelo público brasileiro – sendo largamente ignorado pelo meio acadêmico especializado. Não resta dúvida de que a ausência de traduções é um fator que obstaculiza a popularização de um autor estrangeiro – até o momento, apenas alguns ensaios e o livro On History and Other Essays estão acessíveis em nosso idioma. No entanto, há boas razões para crer que o fato de Oakeshott adotar uma posição autodenominada conservadora em política seja o motivo principal para a resistência ao seu reconhecimento como destacado filósofo político.

Há um estigma inegável do que é ser conservador(1), e Oakeshott conviveu com esse rótulo durante toda a sua carreira(2). É corrente a assertiva de que todo conservador é, por natureza, uma espécie de reacionário, um sujeito retrógrado e moralista, defensor da permanência de certos arranjos e costumes de uma forma intransigente e impassível perante qualquer vicissitude do tempo. Há um elemento romântico e quase trágico que delineia esse arquétipo. O conservador é um homem inebriado pela fantasia de um passado repleto de virtudes e que, no momento presente, somente é capaz de enxergar decadência e ruína.

Tal visão, contudo, não encontra nenhuma correspondência na obra de Oakeshott. Em vez de uma defesa nostálgica do pretérito, suas páginas propõem um diálogo entre presente, passado e futuro, buscando construir uma proposta original em torno do conservadorismo, libertando-o das “tradicionais amarras com a religião, o historicismo, o moralismo, a hierarquia social e o nacionalismo, ao mesmo tempo que o reedifica sobre uma epistemologia cética e uma teoria da identidade humana cuidadosamente construída”(3).

Oakeshott é peculiar tanto em seu estilo como em suas escolhas. Para ele, é possível conciliar o idealismo de Hegel com o empirismo de Hume. Tratando-se de Thomas Hobbes, vê no autoritarismo do Leviatã a gênese do império da lei e seu absolutismo como a fundação de um estilo limitado de governo. Admirava a prudência de Burke tanto quanto a arte da conversação em Montaigne. Reconhecia o ceticismo de John Locke, “o mais ambíguo de todos os escritores políticos dos tempos modernos”, ainda que identificasse nele o idioma da fé.

Adotou o ensaio como estilo primordial, demonstrando erudição e leveza na escrita. Nenhuma ideia lhe parecia mais valorosa que aquela que pode ser facilmente compreendida por pessoas comuns, e por isso rejeitava a prolixidade do mundo acadêmico e a necessidade de buscar respaldo em autoridades em detrimento do próprio juízo(4). Seu ímpeto de moderação conteve a ansiedade de responder a seus críticos de forma incisiva. Preferia a maturação lenta e refletida das ideias, insinuando revisões, respostas e réplicas muitas vezes difíceis de ser identificadas.

Para os padrões contemporâneos, Oakeshott é um acadêmico nada convencional. Sua escrita literária é repleta de metáforas e carente de referências e citações. Aliada a um gosto apurado por autores e temas tão diversos, sua obra expôs as limitações da teoria política normativa, contrapondo-se aos discursos e modelos baseados no uso abstrato da razão.

Esse é um alerta importante especialmente para aqueles que estão iniciando seus estudos no autor. Quem busca fundamentos filosóficos visando à solução de problemas concretos da vida política e econômica certamente irá se decepcionar com Oakeshott. Por mais que o autor desenvolva uma sofisticada teorização do Estado moderno e da própria natureza da atividade política, seu trabalho encontra-se essencialmente no campo da metalinguagem. Para ele, portanto, saber identificar quais são as perguntas adequadas é muito mais significativo que qualquer eventual resposta. Menções a fatos e personalidades históricos são envoltos em uma linguagem metafórica, transformando-se rapidamente em alegorias para a contemplação poética.

Embora o universo oakeshottiano da política deva ser mais bem compreendido mediante uma longa meditação entre os idiomas da história, prática e poesia, ensaios como The Political Economy of Freedom e Rule of Law oferecem pistas para tentar desvendar a posição de Oakeshott no pensamento político contemporâneo. Entretanto, essa não é uma tarefa simples. Durante sua vida, foi tachado de inúmeros rótulos: conservador antidemocrático (5), niilista (6), utópico (7), romântico (8), liberal (9), direitista intransigente (10), dentre outros, o que evidencia a dificuldade de enquadrar sua obra, visto que seu trabalho é reconhecidamente complexo e de difícil classificação (11).

Além disso, dentre os principais comentadores, há um profícuo debate a respeito da unidade do seu pensamento. Em linhas gerais, a crítica identifica três momentos distintos ao longo de sua trajetória intelectual, representados pela publicação de suas obras mais conhecidas: Experience and Its Modes (1993), Rationalism in Politics and Other Essays (1962) e On Human Conduct (1975). Cada um desses livros guarda uma preocupação específica, ainda que os temas estejam de alguma maneira vinculados. A primeira obra é um tratado sobre o conhecimento humano e o conceito de filosofia, marcado pelo idealismo de Hegel e Bradley. O segundo livro reúne ensaios sobre o racionalismo na política, contendo uma descrição daquilo que denomina disposição conservadora. O terceiro livro, por fim, representa o mais elevado grau de teorização sobre a política e o Estado moderno, sendo por isso considerado sua obra-prima.

Oakeshott ainda publicaria outros dois livros durante sua vida. On History and Other Essays (1983)(12) é uma coletânea de textos palestras proferidas na London School of Economics and Political Science (LSE). Seu último livro, The Voice of Liberal Learning (1989)(13), reúne ensaios sobre a temática da educação, em que Oakeshott ressalta o valor da educação liberal não como um ensino vocacional, direcionado a formar trabalhadores, mas como um convite e uma iniciação aos diversos idiomas do conhecimento humano (14).

Após sua morte, em 1990, uma série de escritos inéditos foi revelada e publicada em partes, despertando grande interesse na comunidade acadêmica americana e inglesa. Sob a competente organização de Timothy Fuller e Shirley Robin Letwin, foram trazidas a lume as obras Morality and Politics in Modern Europe: The Harvard Lectures (15), Religion, Politics and the Moral Life (16) e The Politics of Faith and The Politics of Scepticism (17).

A partir de 2004, documentos de Oakeshott arquivados na biblioteca da LSE começaram a ser organizados e publicados na Inglaterra. O material inclui diversos ensaios, resenhas, palestras, aulas, bem como sua correspondência pessoal. É o caso das obras What is History? and Other Essays (18), Lectures in the History of Political Thought (19), The Concept of a Philosophical Jurisprudence: Essays and Reviews 1926-51 (2), The Vocabulary of a Modern European State: Essays and Reviews 1952-88 (21), Early Political Writings: 1925-3o (22) e Michael Oakeshott: Notebooks, 1922-86 (23, 24).

Dentre as publicações póstumas, A Política da Fé e a Política do Ceticismo é, sem dúvida, a mais surpreendente e significativa de todas. De acordo com o professor Timothy Fuller, trata-se de uma exposição completa de seu pensamento naquele estágio, escrita provavelmente no final dos anos 1940. O livro é frequentemente apontado como uma espécie de esboço preliminar de On Human Conduct, sendo empregadas as expressões fé e ceticismo como sinônimos da política ambígua e ambivalente do Estado moderno.

Tratá-la como um simples esboço, todavia, não faz jus à importância dessa descoberta. Ao longo do texto, diversas passagens insinuam movimentos de continuidade e ruptura conceituais, antecipando posições que iriam ocupar lugar de destaque mais adiante, como a metáfora da conversação da humanidade e o próprio conceito de civilidade. Para resgatar esses elementos, é necessário, primeiro, traçar um breve percurso de sua trajetória intelectual.

Oakeshott nasceu em dezembro de 1901, filho de um funcionário público e de uma enfermeira, simpáticos ao socialismo fabiano. Foi um estudante destacado no prestigioso Gonville and Caius College da Universidade de Cambridge, onde, por muitos anos, atuou como fellow da faculdade e professor assistente no Departamento de História.

Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu à Força Aérea britânica e esteve na Inglaterra, na França e na Alemanha. Ao retornar do conflito, lecionou brevemente na Universidade de Oxford até ser nomeado professor Catedrático de Ciência Política na LSE, em 1951. Nessa instituição, dentre muitas atividades, foi o responsável pela criação do famoso mestrado em História do Pensamento Político. Após a sua aposentadoria, em 1968, manteve constante atividade nos seminários da LSE, atraindo um grupo ilustre de acadêmicos e pesquisadores como John Charvet, Maurice Cranston, Elie Kedourie, Wolfgang von Leyden, Kenneth Minogue, Robert Orr, entre outros. (25)

Ao contrário do que em geral é exigido para um acadêmico, Oakeshott publicou relativamente pouco em vida. Seu primeiro livro, Experience and Its Modes (1933), consiste em um longo e minucioso tratado acerca da teoria do conhecimento e do conceito de filosofia, seguindo a tradição do idealismo britânico, e influenciado especialmente por F. H. Bradley e Hegel. (26)

Nele, Oakeshott descreve a tese de que o mundo e a ideia de que se tem do mundo são inseparáveis.(27) Toda experiência é resultado do pensamento, não sendo possível conhecer algo que exista de forma independente e anterior à ideia. O mundo é um todo, e esse todo é um mundo de pensamento. Os seres humanos não têm acesso a nada que não esteja no pensamento, não há acesso a algo que não possa ser pensado. A realidade, portanto, é um mundo de ideias. Mas não meras ideias; as ideias formam um conjunto, uma totalidade, e há apenas um critério para avaliá-las: seu grau de coerência.

Outra afirmação importante do livro é a de que a experiência humana não pode ser teorizada por uma única modalidade de pensamento, reconhecida, portanto, com base em diversas modalidades, mundos de discurso independentes e regidos por seus próprios postulados. As modalidades não são tipos de experiência. São a totalidade da experiência tomada de um ponto de vista. Assim, a ciência é a forma de ver o mundo todo por um conjunto de ideias quantitativas, estáveis e absolutamente comunicáveis entre os indivíduos (o mundo é entendido sub specie quantitatis). A história trata da experiência
sub specie praeteritorum, ou seja, é um discurso no presente sobre o passado. A prática vê o mundo pela tensão entre o que é e o que deveria ser, um mundo sub specie voluntatis, definido pelo desejo e pela aversão, aprovação e desaprovação. (28)

Não há nenhuma hierarquia entre as modalidades. Tampouco há qualquer tipo de absorção de uma modalidade por outra. O historiador pode elaborar uma história da ciência, mas sua atividade não é científica, nem mesmo consiste em uma alternativa ao método científico. Da mesma maneira, a ciência não pode afirmar nada relevante para a prática ou para a história; uma explicação científica da política, nos termos oakeshottianos, nada mais é que uma confusão de modalidades, uma ignoratio elenchi. Em suma, a autossuficiência e independência de cada modalidade significam que nenhuma delas pode querer explicar a atividade da outra com base em seus próprios pressupostos.

E, por serem apenas apreensões da realidade, são mundos de ideias abstratos e incompletos. Abstração significa tentar explicar o todo pela parcialidade de um modo particular. O conhecimento filosófico, contudo, não corresponde a uma modalidade. Trata-se de uma “atividade parasitária, que emerge ao examinar os postulados e os pressupostos de cada atividade”.(29) Para Oakeshott, a filosofia significa “experiência sem reserva ou pressuposição, experiência que é autoconsciente e autocrítica por toda a parte, em que a determinação de permanecer insatisfeito com nada menos que um mundo coerente de ideias é absoluta e incondicional”. (30)

O livro Experience and Its Modes garantiu a Oakeshott prestígio e reconhecimento, lançando seu nome como uma das grandes promessas da filosofia inglesa do século XX. Não é à toa que R. G. Collingwood, consagrado acadêmico da época, reconheceu a tese de Oakeshott como “tão original, tão importante e tão profunda que a crítica deve ser silenciada até que seu significado tenha sido longamente ponderado”. (31)

Nos anos que se seguiram à publicação de Experience and Its Modes, Oakeshott publicou uma série de artigos no Cambridge Journal e, especialmente, uma introdução ao Leviatã, de Hobbes, pela editora Blackwell (1946). (32) Uma segunda versão dessa introdução encontra-se, juntamente com outros artigos sobre Hobbes, na coletânea Hobbes on Civil Association (1975).(33)

Em 1962, Oakeshott lança aquela que viria a ser a sua obra mais conhecida: Rationalism in Politics and Other Essays (uma edição expandida foi publicada em 1991, a cargo de Timothy Fuller, professor titular de Ciência Política do Colorado College).(34) A obra reúne ensaios bastante variados, o que proporciona ao leitor uma visão ampla de sua trajetória. No entanto, os temas mais recorrentes versam sobre a natureza da atividade política, contendo uma crítica incisiva ao que o autor chama racionalismo.

Para Oakeshott, “política é a atividade de atender a arranjos gerais de um grupo de pessoas que por acaso ou escolha encontram-se reunidas”.(35) Atender a arranjos é algo completamente diferente de inventar arranjos, ou fundá-los com base em alguma teoria abstrata como a democracia, os direitos do homem, o materialismo científico ou ainda o livre mercado.(36) As gerações que se sucedem não dispõem de uma carta aberta para simplesmente começar a escrever sua história. O transcorrer do tempo carrega consigo uma série de arranjos, instituições, práticas, formas de comportamento, que compõem a herança que é transmitida. Uma comunidade, portanto, não escolhe o seu modo de vida, ela o reconhece com base em um conhecimento prático, herdado de forma não refletida, algo quase espontâneo.

Outra espécie de conhecimento é o domínio da técnica, cujo traço principal é a capacidade de ser formulado de maneira precisa. Trata-se do conhecimento que pode ser sistematizado, suscetível a regras, princípios, direções, máximas. Ao contrário do conhecimento prático (que não é nem ensinado nem aprendido, mas somente transmitido e adquirido), a técnica é aprendida de forma mecânica. “Pode ser aprendido de um livro; pode ser aprendido por um curso por correspondência.” (37)

Essas duas espécies de conhecimento (prático e técnico) estão envolvidas em toda atividade humana. O problema que Oakeshott atribui ao moderno racionalismo (38) é a assertiva de que somente o conhecimento técnico é o verdadeiro conhecimento. Para o racionalista a razão representa a soberania da técnica, sendo o único conhecimento apto a entender o que se passa no mundo.

No que concerne ao campo político, o racionalista acredita na possibilidade de a conduta humana ser guiada de acordo com uma razão autônoma e predeterminada. Desse ponto de vista, a atividade política nada mais é que uma série de doutrinas que determinam propósitos a serem posicionados e perseguidos, bem como a descrição de atividades direcionadas a tais fins. Para cada problema há uma solução, universalmente aplicada e premeditadamente encontrada. Não há espaço para erros nem tentativas. Se a solução não funciona, a culpa é da má aplicação da técnica, do fato de não se seguir à risca a cartilha ideológica.

Para Oakeshott, contudo, cada situação política deve ser sempre considerada como um produto da ação humana (39), fruto de escolhas, e não de uma necessidade natural ou de interesses racionais. Cada escolha é uma resposta, dentre muitas possíveis, a uma dada situação. As instituições, hábitos, regras que existem numa determinada comunidade são escolhas que resistiram ao tempo e compõem a herança dessa comunidade.

Tal herança não tem ponto de partida ou de chegada. Não há um momento histórico definido em que se perceba a intenção do agente ou a doutrina que fundamenta a sua escolha. Tampouco há um caminho a ser trilhado ou uma ordem premeditada que possa definir o que deve e o que não deve ser feito.

A pretensão de Oakeshott, portanto, não é estabelecer uma crença ou uma doutrina, mas uma disposição. Ser conservador é estar disposto a preferir certos tipos de conduta e certas condições das circunstâncias humanas a outras. É estar disposto a fazer certos tipos de escolha. É perseguir aquilo que as contingências insinuam, em vez de procurar respostas em princípios abstratos. “Ser conservador é, pois, preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao abundante, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica.”(40)

A disposição conservadora em respeito à política requer uma visão bastante distinta da perspectiva racionalista quanto à atividade de governar. O conservador não entende que o governo tenha missão entusiasta de promover determinado projeto político peculiar, convocando seus súditos a unirem-se em torno desse fim. O ingrediente cético do conservadorismo sugere uma desconfiança em torno de qualquer forma de perfeição ou de destino à humanidade. Não se trata de insuflar as paixões e as crenças dos indivíduos, mas de reconhecer os perigos que tais sentimentos podem representar para a convivência social.

Por isso, o conservador prestigia as regras de conduta que impõem ordem sem direcionar nenhum cometimento. O valor de uma norma dessa natureza está na facilidade com que é reconhecida pelos indivíduos no curso ordinário de suas vidas, sem impedir a realização dos anseios de cada um, mas moderando as ações mais invasivas.

O arranjo de direitos e deveres, do qual o governo (41) é o responsável pela manutenção, não é o resultado de nenhuma obra intencional. São insinuações de modos de comportamento que uma determinada comunidade reconhece por um hábito de afeição e comportamento e não por um hábito de reflexão. Segundo Oakeshott, tal ordem “não nasce da consciência de possíveis formas alternativas de comportamento e escolha, determinada por uma opinião, regra ou um ideal, dentre essas alternativas; a conduta é, o mais próximo possível, sem reflexão”.(42)

A proposta conservadora de Oakeshott, deve-se deixar claro desde já, não é de nenhum modo uma apologia ao passado, a determinados valores, ou mesmo uma forma de contemplação da tradição pelo simples fato de ser tradição. Ser conservador é estar disposto a reconhecer que os modos tradicionais de comportamento formam uma herança, e que a atividade política não se resume a uma especulação teórica sobre a mais correta ou desejável corrente de pensamento.

A publicação de Rationalism in Politics and Other Essays é um marco importante em sua carreira. Apesar de boa parte da crítica, especialmente nos Estados Unidos, ter sido bastante hostil, atribuindo-lhe pejorativamente um caráter burkeano, o livro alçou Oakeshott à vitrine dos grandes pensadores políticos contemporâneos.(43) No entanto, sua principal obra viria a ser lançada alguns anos depois: On Human Conduct (1975).(44)

Nesse livro, Oakeshott apresenta sua principal contribuição à teoria política: a distinção entre a associação civil (civil association) e a associação empresarial (enterprise association). Esses conceitos não se referem a nenhum Estado, organização ou partido político existentes na história política de qualquer país. Trata-se de construções ideais sobre como os indivíduos entendem estar relacionados numa determinada comunidade.

Cada um desses estilos revela uma forma completamente diferente de tratar conceitos como governo, direito e liberdade. O esforço de Oakeshott é direcionado em dois planos. Primeiro, ocupa-se de descrever os postulados teóricos que condicionam essas modalidades, identificando-as não como categorias opostas, mas como formas extremas que concorrem entre si no mesmo cenário. Segundo, em demonstrar que essas formas de associação podem ser notadas no plano prático. Aqui, Oakeshott defende a tese de que o Estado moderno europeu é caracterizado por uma mistura ambígua desses
dois estilos, sendo que nenhum deles prevalece em sua forma pura ou impõe-se perante o outro de forma exclusiva.

Em linhas gerais, o que os diferencia é a forma como os indivíduos se reconhecem mutuamente. A associação empresarial é uma associação em termos substantivos. Por meio dela, os agentes buscam realizar um projeto ou propósito compreensivo, pouco importa se se trata de uma barganha mercantil ou uma cruzada no além-mar. Como lembra David Mapel (45), as associações empresariais devem adotar uma prática (46) (considerações, modos, princípios, padrões, máximas, regras, etc.), que é sempre instrumental ou prudencial com relação ao propósito a ser alcançado. Tal prática ganha autoridade à medida que contribui, direta ou indiretamente, para a finalidade almejada.

Já na associação civil, os indivíduos não se reconhecem como parceiros em um empreendimento comum. A única coisa que compartilham é a mesma linguagem coercitiva de regras. Trata-se de uma relação não instrumental, ou seja, puramente formal. O principal caráter dessa prática é o fato de que ela não apresenta nenhum propósito intrínseco; ela não é meramente imparcial, mas indiferente a qualquer propósito. Não prescreve comandos nem escolhas, não compele os agentes a agir de uma determinada maneira. Simplesmente, essa prática estabelece algumas condições que os agentes devem levar em consideração quando decidem agir para buscar seus propósitos pessoais. Os agentes são livres para fazer suas escolhas, mas devem ter o cuidado de subscrevê-las às restrições impostas pelas regras gerais a que estão vinculados.

A associação civil é um modo de relação humana em termos de uma prática não instrumental. A não instrumentalidade é uma ideia que caracteriza muitas coisas, como os códigos de etiqueta, os jogos, a moral, e também compromissos humanos como o amor e a amizade (47). Oakeshott é bastante cauteloso, contudo, ao distinguir a moralidade das demais práticas não instrumentais ao referi-la como uma linguagem vernácula.

Uma linguagem consiste em certas condições formais, tal qual as regras de uma gramática. Do mesmo modo, essas condições não dizem o que deve ser feito ou dito, mas estabelecem o que deve ser observado ao fazer ou dizer qualquer coisa. É importante enfatizar também que uma linguagem envolve muito mais que considerações de certo ou errado. A moralidade, como uma linguagem vernácula de conduta, envolve regras, mas tais regras são uma mera abreviação ou abstração que ajudam a prática a manter sua forma, mas não dão sua forma. O que dá forma à moralidade são as contínuas autointerpretações e escolhas contingentes dos participantes envolvidos. (48)

Sendo a associação civil um exemplo de associação formal em detrimento de uma associação com fins específicos (ou seja, uma prática moral em relação a uma prática meramente instrumental), o que distingue as suas normas dos múltiplos códigos morais existentes numa comunidade? A grande diferença das normas de uma associação civil para as demais é que elas passaram por um procedimento específico que as reconheceram como leis (leges). A prática deixa de ser uma prática moral como as demais, para ser a prática da civilidade. As normas adquirem um caráter autoritário. E é somente no reconhecimento da mesma autoridade que reside a relação entre os agentes numa associação civil.

Uma observação importante, aqui, diz respeito ao modo como é entendida a atuação do governo em cada uma dessas formas. Na associação empresarial, o governo é o agente responsável por gerenciar o propósito comum que dá origem à associação. Ele coordena as ações dos indivíduos, usando de todo o poder possível para maximizar esse propósito. Por outro lado, na associação civil, o governo não persegue nenhum propósito, porque não há finalidades a promover. Cabe ao governo manter a ordem, ou seja, fazer com que as normas gerais de conduta sejam rigorosamente subscritas pelos indivíduos, possibilitando um modus vivendi de paz e tranquilidade.

Em On Human Conduct, Oakeshott afirma que o caráter ideal do Estado moderno pode ser compreendido em dois polos. Oakeshott considera essas associações por seu caráter ideal. Isso não significa que o ideal implica um desejável estado das coisas. É o ideal no sentido das características que ele considera logicamente necessárias para identificá-lo. (49)

A associação civil (societas) é identificada como a associação de pessoas (cives) em termos de um direito reconhecido como um sistema de condições prescritivas (respublica) indiferentes (não mera mente imparciais) à satisfação de propósitos substantivos, devendo tais condições ser subscritas por aquelas pessoas na tomada de suas próprias escolhas sobre o que fazer ou dizer em suas transações com o outro.(50) A associação empresarial (universitas) é identificada como a associação de pessoas para a realização de um propósito comum substantivo, em que o direito é visto como regras que promovem esse propósito, e na qual os associados se reconhecem como companheiros num empreendimento. (51) O que distingue uma associação civil de uma associação empresarial, fundamentalmente, é que a primeira não tem objetivos, por não ter projetos próprios, enquanto a outra é constituída justamente por ter um projeto. Para Oakeshott, a associação civil é uma associação não instrumental, enquanto a associação empresarial é instrumental.

Essa distinção proposta por Oakeshott não é facilmente aceita para muitos de seus comentadores. A maior parte das críticas é dirigida ao formalismo de sua teoria, especialmente quanto ao significado do conceito de instrumentalidade. De todo modo, há algo que os comentadores compartilham de maneira quase consensual: a prática da civilidade é eminentemente uma prática jurídica. “A civilidade é um tipo de limitação ‘adverbial’ na linguagem cívica com que nós nos comunicamos com o outro.” É comumente identificada com o império da lei, uma prática em que os indivíduos se relacionam entre si respeitando as mesmas condições, o mesmo sistema articulado de leis(53). Agir civilizadamente, em palavras mais simples, significa para Oakeshott agir de acordo com a lei.

O termo civilidade, no vocabulário filosófico, atravessa as fronteiras da ética e da filosofia política. Sua terminologia tanto pode considerá-la uma virtude que requer do sujeito o igual respeito e consideração pelo outro como denota um bem procedimental que visa à exclusão da arbitrariedade e da parcialidade injustificada. (54) Esses dois sensos de civilidade têm chamado a atenção de muitos filósofos, e constituem um conceito-chave para a compreensão do estado liberal moderno.

Atendo-se estritamente à leitura de On Human Conduct, tudo indica que Oakeshott vincula a sua civilidade ao segundo sentido acima. A prática da civilidade, entendida como o estabelecimento de normas de conduta que os indivíduos têm a obrigação de observar, é a forma legítima que elimina a arbitrariedade de uma associação empresarial. A societas é o procedimento que liberta o cidadão da imposição de qualquer propósito compreensivo pela autoridade estatal.

O formalismo da associação civil, contudo, não a isenta de objeção daquilo que Wendell Coats Jr. chamou de “infinito problema  político”(55). Uma das grandes dificuldades na teoria oakeshottiana é estabelecer o elo entre a estética puramente formal da associação civil e o conteúdo das normas não instrumentais. De que maneira a civilidade lida com as diversas insinuações do universo político e define suas leis?

Muitos críticos apontam uma falha estrutural nesse raciocínio, desqualificando-o de forma radical. Bernard Crick, por exemplo, enxerga na obra de Oakeshott uma tentativa de esvaziar o elemento político, mascarando interesses privados de grupos dominantes sob a fórmula da imparcialidade das leis. “O conservantismo é, portanto, uma doutrina política como qualquer outra. Essa política é, quase sempre, parcialmente verdadeira, porém a sua verdade variará, dependendo das circunstâncias. Ela pode alegar ser antidoutrinária, mas, em qualquer formulação específica, poderá conter partes de dogmas arbitrários – como o da ‘tradição’ de Oakeshott.”(56)

A filósofa belga Chantal Mouffe oferece uma interessante contribuição a esse debate. Nos últimos anos, aliás, tem sido uma das principais referências entre os estudiosos da obra de Oakeshott. Sua proposta de democracia radical e agonismo inspirou vários trabalhos doutorais, incluindo a marcante tese de Steven Gerencser (57). Mouffe considera o modelo de societas uma forma bastante adequada para compreender a associação política. Contudo, contesta o uso conservador que Oakeshott faz ao diferenciá-la da universitas. Para ela, “o conservadorismo de Oakeshott reside no conteúdo que ele coloca na respublica, e que isso pode obviamente ser resolvido com a introdução de princípios mais radicais”.(58)

O grande desvirtuamento da obra de Oakeshott, segundo Mouffe, é que ele lida de forma muito falha com o vocabulário da política da societas. Sua concepção de política é uma linguagem compartilhada da civilidade que só é adequada num aspecto da política: o ponto de vista do nós, o lado amigo. Mas a relação da política é o embate entre o lado amigo e o lado inimigo. “O que é completamente esquecido em Oakeshott é a divisão e o antagonismo, que é o aspecto do ‘inimigo’. É uma falta que deve ser remediada para termos uma noção apropriada de societas.” (59)

A obra de Michael Oakeshott suscita divergências profundas entre comentadores das mais diversas orientações políticas. A publicação de A Política da Fé e a Política do Ceticismo vem contribuir de maneira significativa para esse debate, adicionando uma visão revigorada da natureza e da extensão da atividade política.

Neste livro, Oakeshott argumenta que a política moderna europeia revela uma ambiguidade envolvendo dois estilos ou modos sobre os quais é entendida a atividade de governar e ser governado. Esses estilos foram moldados ao longo dos últimos cinco séculos, pela renovação de práticas herdadas desde o período medieval.

Para Oakeshott, não há nenhuma relação simples e direta entre o estabelecimento da autoridade política e a delimitação das funções do governo. O vocabulário político sempre acaba por revelar traços de ambiguidade. Expressões como salus populi ou direito apresentam múltiplos significados. Ora salus populi pode ser entendida como a segurança dos cidadãos, ora como a bonança, a busca pela prosperidade material. Direito pode significar simplesmente a reparação de um dano sofrido, como pode igualmente ser a exigência dos mais diversos desejos de que a criatividade humana é capaz.

A ambiguidade do vocabulário político e a sua correspondente ambivalência de condutas devem ser distinguidas de uma mera corrupção da linguagem ou de uma eventual dissimulação por parte de governantes e escritores. Segundo Oakeshott, a origem disso se encontra em dois estilos de política, opostos e extremos, que ele denominou política de fé e política de ceticismo. Ambos os estilos jamais se encontram em sua forma pura, constituindo-se muito mais em tendências que em doutrinas propriamente ditas.

A política de fé é o estilo de governar caracterizado pela incessante busca pela perfeição da humanidade. Mas tal perfeição nunca está presente, e por isso deve ser buscada a todo custo, usando todo esforço humano que for preciso. A perfeição é a imposição de um único caminho a ser trilhado. É a criação de um estado de coisas, um propósito a ser compartilhado. A decisão que estabelece esse caminho é a percepção daquilo que o bem comum é, e não um expediente temporário para deixar as coisas fluirem.

E mais, a perfeição deve ser alcançada no mundo, como uma condição também das circunstâncias humanas. De modo mais simples, “perfeição” é mudança para melhor, em que o “melhor” pode significar tanto o caminho específico a ser aprimorado quanto a direção geral pela qual a atividade humana deve ser guiada (pouco importando o caminho).

O agente responsável por assegurar a perfeição é o governo. Se é utópico ou se visa aprimorar a sociedade em determinado rumo, tal estilo sustenta que somente o poder humano pode atingi-lo. Não apenas busca, mas supervaloriza esse poder, deixando a cargo dos governantes uma competência quase ilimitada para conduzir a sociedade. Consequentemente, o estilo requer uma dupla confiança: a convicção de que o poder necessário está disponível (ou pode ser gerado) e a certeza do caminho a ser percorrido (mesmo que não se saiba exatamente o que constitui a perfeição).

Nesse estilo de política, o formalismo passa a se tornar algo perigoso. Governar é uma boa aventura que não deve ser atormentada pela observância de regras. Como representante legítimo do interesse comum, tem o dever de direcionar a conduta humana mediante ações que estejam meticulosamente relacionadas para administrar e maximizar o propósito desejado. Os indivíduos estão vinculados justamente por esse propósito. Portanto, as regras emitidas pelo governo são meramente instrumentais para atingir o fim comum.

Ao falar de fé, não está se referindo à religião, mas ao próprio racionalismo em política. Trata-se de uma crítica incisiva, e por que não dizer irônica, ao projeto iluminista de superar a imperfeição da prática pela fé na razão abstrata. Oakeshott não está perfazendo qualquer forma de apologia ao irracionalismo. Como ele iria descrever mais adiante, há uma distinção entre ser racional e ser racionalista em política. A racionalidade em política é a exploração das alternativas que, de algum modo, já estão presentes e se insinuam dentre os arranjos de uma dada comunidade. Ser racionalista em política é desconsiderar totalmente a prática, acreditando cegamente na visão de que os arranjos podem ser escolhidos de maneira premeditada, seguindo o receituário de uma ideologia política.

A nêmesis da fé é sua incapacidade de autolimitar-se. Como governar é uma atividade sem controle, a imposição de um padrão único de atividade pode levá-la à ruína pelo excesso. Ainda que se objetivem intervenções limitadas, o resultado muitas vezes é diverso do que foi antecipado. Enquanto pequenas proteções são providas, lançam-se inevitáveis e imensas concentrações de poder.

O estilo de governo que se opõe abstratamente à política da fé é o ceticismo. A postura cética é aquela que desconfia da capacidade humana de atingir a perfeição. Sustenta que o governo possui uma função bastante específica e limitada: estabelecer e manter um sistema de direitos e deveres que tem como único propósito evitar conflitos invasivos e garantir um ambiente mínimo de convivência pacífica.

Segundo Oakeshott, o ofício do governo não é ser o arquiteto de um modo perfeito de vida, ou (como a fé prescreve) de um aprimorado modo de vida ou mesmo de qualquer modo de vida em especial. O cético em política observa que os homens vivem em proximidade uns com os outros e que, cada um perseguindo várias atividades, tornam-se aptos a entrar em conflito. E esse conflito, quando atinge determinadas dimensões, não apenas pode tornar a vida bárbara e intolerável como pode até terminar abruptamente. Nesse entendimento da política, portanto, a atividade de governar subsiste não porque é boa, mas porque é necessária.

De outro modo, esse estilo crê na atuação independente dos indivíduos para deliberar sobre os seus fins. Não confia ao governo a tarefa de definir os projetos de seus governados. Para o cético, governar é uma atividade judicial, apoiada na prerrogativa autoritária de decidir conflitos com base numa linguagem pública de regras coercitivas. O poder concentrado pelo governo não deve ser empregado para impor ou promover qualquer projeto em particular.

Tomando Hobbes como um dos principais intérpretes do ceticismo, Oakeshott considera que a soberania do governo, embora potencialmente absoluta, possui um âmbito bastante limitado de atuação. Ele não pretende estabelecer o que é a verdade nem conduzir a sociedade a um determinado rumo. Seu objetivo está vinculado à manutenção de uma ordem superficial de direitos, deveres e meios de reparação.

Contudo, essa ordem não é estática nem imutável, pois está sempre suscetível às contingências da fortuna. O aprimoramento, no entanto, deve ser distinguido da política de fé. O que deve ser aprimorado não são os seres humanos, a conduta humana ou mesmo a amplitude da circunstâncias humanas. Seu objeto envolve apenas alterações esporádicas e específicas na própria ordem, buscando corrigir os arranjos que se tornaram inoportunos ou obsoletos com o passar do tempo. Para o cético, o aprimoramento não é uma atividade independente e adicional da manutenção da ordem. Manter a ordem é também um exercício contínuo de reflexão e julgamento sobre a conveniência de seus próprios termos.

A noção de aprimoramento não distorce o caráter cético quanto aos limites da atuação do governo. Ser cético não é ser cético em relação a tudo, pois o cético absoluto, nesses termos, é uma contradição. O cético aqui é aquele que desconfia de grandes mudanças institucionais e de revoluções. Prefere a reforma à construção, mudanças lentas a grandes rupturas.

A metáfora predileta de Oakeshott para ilustrar essa disposição é o personagem do estivador de Halifax. Estivador é o trabalhador encarregado de distribuir a carga de um navio no porão ou convés, sendo igualmente responsável por descarregá-la quando do desembarque. É a profissão mais humilde na hierarquia portuária, normalmente desempenhada por trabalhadores com menor nível de instrução formal.

Diferentemente do capitão, o estivador desconhece a linguagem das cartas náuticas, não domina a ciência da navegação e tampouco é versado em operação de maquinaria sofisticada. Seu conhecimento não decorre de tratados e manuais, mas da própria experiência vivida dentro do navio, pela repetição contínua de suas atividades. Com a prática, acabou adquirindo um aguçado senso de equilíbrio, dominando com mestria a arte de distribuir a carga ao longo do convés, contrabalançando, se preciso, o próprio peso para nivelar a embarcação. Evita movimentos abruptos a todo custo, não sente nenhuma satisfação por navegar em mares desconhecidos e não se prende a uma única direção – pois é indiferente a toda sorte.

Enquanto o racionalismo se ocupa do local de chegada, destacando a importância dos líderes que devem conduzir a embarcação, Oakeshott prefere ressaltar as virtudes do homem simples. A política estivadora procura cultivar a prudência e a moderação. Ela se vale do conhecimento prático não com a intenção de chegar com mais rapidez ao destino, mas com o intuito de manter o barco navegando com segurança durante todo o percurso. Talvez a imagem mais bela dessa metáfora seja a de que o destino de todos acaba recaindo nas mãos do mais singelo dos tripulantes, provando que a virtude da política
reside na experiência e no comedimento.

No entanto, a política de ceticismo também encontra sua nêmesis. O paradoxo da política cética é que, enquanto é um estilo de governo com a mais larga reserva de poder disponível para o uso em caso de emergência, é igualmente o mesmo disposto a usar essa reserva. Ele responde lentamente aos perigos que se aproximam. Às vezes tarde demais. Justamente pelo medo de agir indevidamente, por ser contido e autolimitado ao extremo, corre o mesmo risco de dissolução da fé, que não conhece limite algum.

Não se pode negar que Oakeshott nutre uma preferência implícita pelo ceticismo, da mesma forma como a teoria da associação civil em On Human Conduct. Há uma relação claramente assimétrica entre as categorias. Enquanto a fé se vê arruinada pelo excesso de seu pecado (a arrogância da certeza), o destino final do ceticismo é marcado pelo excesso de sua virtude (a autocontenção). É necessário encontrar um ponto de equilíbrio (que Oakeshott denomina princípio da média) em que o ceticismo possa salvar a fé quando a concentração de poder ameaça a vida comum, da mesma forma como a fé deve resgatar o ceticismo quando sua inércia ignora o perigo que se aproxima.

Isso não quer dizer que fé e ceticismo acabariam se tornando equivalentes em termos categóricos. O equilíbrio consiste em buscar um abrigo no espaço intermediário, distante o suficiente das extremidades. Nesse local, versões mais tênues poderiam coexistir de maneira tolerável, simbolizando algo significativo de maneira mútua. Fé e ceticismo continuariam rivalizando e disputando aguerridamente cada centímetro desse espaço, revezando-se nas vitórias e derrotas. Contudo, ser o vencedor do dia não é tão importante quanto a sensação de permanecer distante das extremidades.

Essa é a imagem da vida civilizada, que caracteriza a política de ceticismo e representa uma tentativa de reconciliação com a fé. Trata-se do jogo como elemento da cultura, que Oakeshott se apropria da obra Homo Ludens, do historiador holandês Johan Huizinga. A Política da Fé e a Política do Ceticismo comprova a influência de Huizinga na formulação de teses posteriores, como a metáfora da conversação da humanidade.

Segundo Oakeshott, “a conversação não é uma iniciativa destinada a produzir um ganho extrínseco, uma competição em que o vencedor ganha o prêmio, nem é uma atividade de exegese; é uma aventura intelectual não ensaiada. Ocorre com a conversa o mesmo que com o jogo. Sua importância não reside nem em ganhar nem em perder, mas sim em jogar”.(60)

O homem civilizado aceita essa condição, buscando explorar os diversos caminhos a que o conhecimento conduz, sem ponto de partida ou de chegada. O jogo é uma atividade contínua e ininterrupta, que só termina quando a ansiedade pela vitória sucumbe a mente do jogador, que não percebe mais graça alguma. Essa talvez seja a grande lição que a dimensão poética da civilidade, da conversação e do ceticismo pode expressar: a contemplação do presente, a crítica à intencionalidade e a aceitação de que talvez a única vocação que se pode ter na vida, lembrando John Gray, “é brincarmos seriamente e sermos sérios alegremente, vivendo sem pensar em destino final”.

Pelotas, inverno de 2018.

Daniel Lena Marchiori Neto é Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande.

(1) Steven J. Wulf, “Oakeshott’s Politics for Gentlemen”. The Review of Politics, Cambridge, vol. 69, n. 2, 2007, p. 244-72.
(2) Timothy Fuller, “Michael Oakeshott, 1901-1990”. The Review of Politics, n. 71, 2009, p. 100.
(3) Bhikhu Parekh, “Algunas Reflexiones sobre la Filosofía Política Occidental”. La Política: Revista de Estudios sobre el Estado y la Sociedad. Barcelona, n. 1, 1996, p. 5-22.
(4) Michael Oakeshott, Experience and Its Modes. 7. ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 8.
(5) Hanna Fenichel Pitkin, “Inhuman Conduct and Unpolitical Theory: Michael Oakeshott’s On Human Conduct”. Political Theory, vol. 4, n. 3, p. 301 20, ago. 1976.
(6) Bernard Crick, “The World of Michael Oakeshott: Or the Lonely Nihilist”. Encounter, vol. 20, p. 65-74, jun. 1963.
(7) David Splitz, “A Rationalist Malgré Lui: The Perplexities of Being Michael Oakeshott”. Political Theory, vol. 4, n. 3, ago. 1976, p. 335-52.
(8) Colin Falck, “Romanticism in Politics”. The New Left Review, n. 18, p. 60-
72, jan.-fev. 1963.
(9) Paul Franco, “Michael Oakeshott as Liberal Theorist”. Political Theory, vol.
18, n. 3, p. 411-36, ago. 1990; Wendell John Coasts Jr., “Michael Oakeshott
as Liberal Theorist”. Canadian Journal of Political Science, vol. 18, n. 4, p.
773-87, dez. 1985; Efraim Podoksik, “Oakeshott: What Kind of liberal?”. In:
Political Studies Association Annual Conference, 54, 2004, Hull. Papers. Hull:
University of Lincoln, 2004, p. 1-10; John Gray, Gray’s Anatomy: Selected
Writings. London, Penguin, 2009.
(10) Perry Anderson, “The Intransigent Right at the End of the Century”. London Review of Books, vol. 14, n. 18, p. 7-11, set. 1992.
(11) Paul Franco, The Political Philosophy of Michael Oakeshott. New Haven,
Yale University Press, 1990, p. 11.
(12) Michael Oakeshott, On History and Other Essays. Indianapolis, Liberty
Fund, 1999, p. 178.
(13) Michael Oakeshott, The Voice of Liberal Learning. Indianapolis, Liberty Fund, 2001.
(14) “O que eu estou sugerindo, portanto, é que, do ponto de vista da educa-
ção liberal, a cultura não é uma miscelânea de crenças, percepções, ideias,
sentimentos e engajamentos, mas deve ser reconhecida como uma variedade
de distintas linguagens do entendimento, e seus incentivos são convites para
se tornar familiar com essas linguagens, aprender a discriminá-las, e a reco-
nhecê-las não meramente como modos diversos do entendimento do mundo,
mas como as mais substanciais expressões que temos do autoentendimento
humano.” Michael Oakeshott, The Voice of Liberal Learning, p. 29.
(15) Michael Oakeshott, Morality and Politics in Modern Europe: The Harvard
Lectures. New Haven, Yale University Press, 1993.
(16) Michael Oakeshott, Religion, Politics and the Moral Life. New Haven, Yale
University Press, 1993.
(17) Michael Oakeshott, The Politics of Faith and The Politics of Scepticism, 1996.
(18) Michael Oakeshott, What is History? and Other Essays. Exeter, Imprint
Academic, 2004.
(19) Michael Oakeshott, Lectures in the History of Political Thought. Exeter, Imprint Academic, 2006.
(20) Michael Oakeshott, The Concept of a Philosophical Jurisprudence: Essays
and Reviews 1926-51. Exeter, Imprint Academic, 2007.
(21) Michael Oakeshott, The Vocabulary of a Modern European State: Essays and Reviews 1952-88. Exeter, Imprint Academic, 2008.
(22) Michael Oakeshott, Early Political Writings: 1925-30. Exeter, Imprint
Academic, 2011.
(23) Michael Oakeshott, Michael Oakeshott: Notebooks, 1922-86. Exeter,
Imprint Academic, 2014.
(24) Um pequeno esclarecimento merece ser relatado com relação à biografia
do autor. Em sua vida, Oakeshott publicou apenas um livro não acadêmico,
em coautoria com seu colega de Cambridge Guy Griffith. Trata-se do livro
A Guide to the Classics, or How to Pick the Derby Winner (1936), um manual
sobre como fazer boas apostas em corridas de cavalos. (N. T.)
(25) Kenneth Minogue, “The History of Political Thought Seminar”. In: Jesse Norman, The Achievement of Michael Oakeshott. London, Duckworth, 1993.
(26) A influência desses autores é inegável, especialmente no início de sua carreira.
Em Experience and its Modes, Oakeshott afirma que sua visão deriva de uma
“afinidade com aquilo que é conhecido pelo nome, um tanto ambíguo, de
Idealismo, e as obras em que admito ter aprendido mais foram A Fenomenologia
do Espírito, de Hegel, e Aparência e Realidade, de Bradley”. Michael Oakeshott,
Experience and its Modes. London, Cambridge University Press, 1933, p. 6.
(27) Timothy Fuller, “Michael Oakeshott, 1901-1990”. The Review of Politics, n. 71, 2009, p. 102.
(28) Bhikhu Parekh, “The Political Philosophy of Michael Oakeshott”. British Journal of Political Science, vol. 9, n. 4, p. 481-506, out. 1979.
(29) Elizabeth Campbell Corey, “The World of Michael Oakeshott”. Modern
Age, vol. 48, n. 3, verão 2006, p. 259-66.
(30) Michael Oakeshott, Experience and Its Modes, p. 82.
(31) R. G. Collingwood, “Oakeshott and the Modes of Experience”. The Cambridge Review, n. 55, fev. 1934, p. 249-50.
(32) Michael Oakeshott, “Introduction to Leviathan”. In: Thomas Hobbes, Leviathan or The Matter, Form, and Power of a Commonwealth, Ecclesiastical and Civil. Oxford, Blackwell, 1960.
(33) Michael Oakeshott, Hobbes on Civil Association. 3. ed. Indianapolis,Liberty Fund, 1991.
(34) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays. 2. ed. Indianapolis, Liberty Fund, 1991.
(35) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 56.
(36) John Casey, “Philosopher of Practice”. In: Norman Jesse, The Achievement of Michael Oakeshott. London, Duckworth, 1993, p. 61.
(37) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 15.
(38) Oakeshott considera o racionalismo moderno como vertente surgida
a partir do século XVII, tendo Bacon e Descartes como as figuras mais
representativas do período: “Eu proponho resumir minha consideração sobre
o surgimento do moderno Racionalismo, o caráter intelectual e a disposição do
Racionalista, pelo início, momento em que ele se demonstra inequivocamente,
e por considerar somente um único elemento no contexto do seu surgimento.
Esse momento é o início do século XVII, e está conectado, inter alia, com a
condição de conhecimento – tanto o conhecimento natural quanto civilizado
do mundo – do seu tempo”. Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and
Other Essays, p. 18.
(39) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 70.
(40) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 408.
(41) Para Oakeshott, seguindo a tradição da literatura insular, o estado (state)
é uma associação de indivíduos, enquanto o governo (government) é uma
organização específica presente nessa associação. Nessa linguagem, o governo
não se confunde com a associação, mas faz parte dela em virtude das funções
que lhe são atribuídas. Quem elabora as leis, decide conflitos e administra a
máquina pública é sempre o governo e não o Estado. O Estado é a associação
de indivíduos tomada apenas em seu caráter ideal. Nesse sentido, Friedrich
Hayek esclarece que “em inglês é possível, como tem sido usualmente, discutir
esses dois tipos de ordem em termos de uma distinção entre ‘sociedade’ e
‘governo’. Não há nenhuma necessidade para a discussão desses problemas,
enquanto se está considerando um único país, de trazer o termo ‘Estado’, de
forte conotação metafísica. Foi basicamente por influência do pensamento da
Europa continental, sobretudo o hegeliano, que, no curso dos últimos cem
anos, adotou-se amplamente o costume de falar do ‘est
ado’ (de preferência
com ‘E’ maiúsculo) em casos em que o ‘governo’ seria mais apropriado
e preciso. No entanto, quem exerce ou adota uma política é sempre a
organização a que chamamos governo; em nada contribui para a clareza
introduzir sem propósito o termo ‘estado’ quando ‘governo’ é suficiente.
Isso se torna particularmente enganoso quando o termo ‘estado’, em vez de
‘governo’, é usado em contraposição a ‘sociedade’ para indicar que o primeiro
é uma organização e o segundo é uma ordem espontânea”. Friedrich August
von Hayek, Law, Legislation and Liberty: A New Statement of the Liberal
Principles of Justice and Political Economy, vol. I: Rules and Order. Chicago,
The University of Chicago Press, 1973, p. 48.
(42) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 468.
(43) Timothy Fuller, “Oakeshott’s Rationalism in Politics Today”. In: Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays. 2. ed. Indianápolis,
Liberty Fund, 1991, p. xiii.
(44) Michael Oakeshott, On Human Conduct. Oxford, Oxford University Press, 1975.
(45) David Mapel, “Purpose and Politics: Can There Be a Non-Instrumental Civil Association?”. The Political Science Reviewer, vol. 21, n. 1, p 1992,
p. 63-80.
(46) Para Oakeshott, toda ação ou escolha humanas possui um atributo formal
e substantivo. A substância de uma ação é a performance pela qual alguém
busca uma satisfação. A forma de uma ação é a maneira como a performance
é praticada, é a ação em respeito ao reconhecimento de um procedimento.
Esse procedimento é aquilo que Oakeshott denomina prática: “[…] uma
lista de considerações, maneiras, usos, observâncias, costumes, padrões,
cânones, máximas, princípios, regras e ofícios que especificam procedimentos
úteis ou denotam obrigações ou deveres que estejam relacionados às ações
ou a expressões humanas”. Uma prática pode ser instrumental, quando há
alguma finalidade a ser alcançada e o procedimento indica a conveniência
ou a utilidade de se promover tal propósito. Ou a prática pode ser não
instrumental, quando não possui nenhum propósito extrínseco; nesse caso, o
procedimento trata de condições a ser subscritas pelo agente nas suas escolhas
e ações – provê apenas os meios para a consecução de um grande número de
diferentes propósitos que, em sua totalidade, ninguém conhece. Para tornar
ilustrativa essa diferença, tomem-se os exemplos de um manual de instruções
de um aparelho e as regras de um jogo de xadrez. No primeiro caso, o
manual contém regras instrumentais, que indicam o procedimento correto de
instalação de determinado aparelho, especificando as etapas e os cuidados.
Por outro lado, no caso das regras do xadrez, não há propósito extrínseco,
nenhuma finalidade a ser atingida, mas somente a definição das regras de
conduta dos jogadores: cada participante movimenta somente uma peça por
vez, o bispo move-se apenas na diagonal, o peão não pode movimentar-se
para trás, etc. A estratégia de cada jogador e a decisão que ele toma ao longo
da partida são indiferentes para as regras do xadrez em si. Essa indiferença
quanto aos propósitos é o que caracteriza a não instrumentalidade. Michael
Oakeshott, On Human Conduct, p. 55.
(47) John Gray, Liberalisms: Essays in Political Philosophy. London, Routledge,
1989, p. 211.
(48) David Mapel, Purpose and Politics, p. 65.
(49) Glenn Worthington, “Oakeshott’s Claims of Politics”. Political Studies, vol. 45, n. 4, set. 1997, p. 730.
(50) Michael Oakeshott, On Human Conduct, p. 243.
(51) Ibidem, p. 264.
(52) Richard Boyd, “The Value of Civility?”. Urban Studies, vol. 43, n. 5-6, p. 863-78, maio 2006, p. 864.
(53) Josiah Lee Auspitz, “Individuality, Civility, and Theory: The Philosophical Imagination of Michael Oakeshott”. Political Theory, vol. 4, n. 3, ago. 1976, p. 278-79.
(54) Peter Johnson, “Oakeshott’s Porcupines: Oakeshott on Civility”. Contemporary Political Theory, vol. 6, 2007, p. 312.
(55) Wendell John Coats Jr., Michael Oakeshott and the Character of Experience, 1978. 463f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Departamento de Ciência Política, University of Colorado, Boulder, 1978, p. v.
(56) Bernard Crick, In Defense of Politics. 4. ed. Chicago, The University of Chicago Press, 1993, p. 122.
(57) Steven Anthony Gerencser, The Skeptic’s Oakeshott. New York, St. Martin’s Press, 2000.
(58) Chantal Mouffe, “Democratic Citizenship and the Political Community”. In: Chantal Mouffe (org.), Dimensions of Radical Democracy: Pluralism, Citizenship and Democracy. London, Verso, 1992, p. 234.
(59) Chantal Mouffe, “Democratic, Citizenship and the Political Community”. In: Chantal Mouffe (org.), Dimensions of Radical Democracy: Pluralism, Citizenship and Democracy. London, Verso, 1992, p. 234.
(60) Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, p. 490.

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