por Eduardo Pohlmann
A sociedade contemporânea é marcada por divergências políticas profundas, que dizem respeito a questões fundamentais, como identidade, comunidade, autonomia, igualdade, questões de vida e de morte. Quando o filósofo norte-americano John Rawls afirmou que não se faz análise política séria sem levar em conta “o fato do pluralismo”, era a essas divergências que ele se referia. Em sociedades que levam tal fato a sério, um dos maiores problemas é determinar qual visão do bem comum deve prevalecer e quais normas devem regular as relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado e, portanto, como arbitrar conflitos entre essas opiniões. Sobre essa questão básica a ciência política, a filosofia política e a teoria do direito se debruçam. Há uma resposta simples e óbvia: a decisão, qualquer que seja ela, deve ser tomada pela maioria. Essa visão clássica da democracia, no entanto, evoluiu muito. Ao mesmo tempo em que várias instituições se erigiram em torno dela, várias outras surgiram exatamente para fazer frente ao que se convencionou chamar o perigo da “tirania da maioria”. Uma Constituição e uma Suprema Corte que tem a primazia de interpretá-la muitas vezes cumprem exatamente esse papel, atuando como limite ao avanço (e, mais recentemente, também à omissão) legislativo sobre direitos e garantias fundamentais insculpidos na Carta Magna. A Corte Constitucional exerce, assim, uma função contra-majoritária. A tensão entre a legislação, o instrumento por excelência da vontade da maioria, e a função das Supremas Cortes como órgãos de controle de constitucionalidade se manifesta especialmente quando questões de vida e morte, as questões mais fundamentais que podemos enfrentar, estão em debate. Não há caso mais emblemático disso do que a discussão sobre o aborto, recentemente retomada no Brasil após a polêmica decisão (HC 124.306/RJ) da 1a Turma do STF.
É importante que tenhamos em mente os principais argumentos do ministro Luís Roberto Barroso para defender a não recepção pela Constituição de 1988 dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto com consentimento da gestante. A tese defendida por Barroso, nas suas próprias palavras, é esta: “o bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.” Segundo Barroso, para o embate entre as concepções que defendem que a vida existe desde a concepção e os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência (o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação), “não há solução jurídica”, e que ela dependerá “sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida”. Sendo esse um ato discricionário de escolha, não poderia o Estado impor uma visão em detrimento da criminalização da outra. Ademais, criminalizar o aborto atingiria diversos direitos fundamentais da mulher, como sua autonomia, sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, a igualdade de gênero, além de impactar desproporcionalmente sobre mulheres pobres. Por fim, a criminalização do aborto ofenderia o princípio da proporcionalidade, por não tutelar adequadamente a vida do feto, por haver outro meio que proteja igualmente esse bem jurídico e que seja menos restritivo aos direitos das mulheres e por ser injustificável a partir de uma análise dos seus custos e benefícios. Quanto aos três meses como critério cronológico para marcar até quando o aborto seria permitido, Barroso segue o marco estabelecido por leis e pela jurisprudência de outros países, já que, segundo ele, “praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante a fase inicial da gestação como crime”.
Barroso, portanto, adentra numa argumentação substantiva sobre o aborto, indicando não apenas preceitos constitucionais supostamente violados, mas também sopesando direitos e interesses envolvidos, utilizando pesquisa empírica sobre os dados de saúde pública referente ao tema e analisando doutrina, jurisprudência e legislação comparadas. O leitor pode se perguntar: não seria esse um trabalho próprio do legislador? Não teria o STF se substituído ao papel que cabe, de forma mais apropriada, aos representantes populares?
Não se está aqui, necessariamente, pondo em xeque o papel do STF no controle de constitucionalidade. Tal controle, que se fundamenta na hierarquia da Constituição Federal e na necessidade de todas as normas se conformarem a ela, tem uma função importante na manutenção da unidade e coerência do ordenamento jurídico, sendo função precípua do STF realizá-la quando o legislador infraconstitucional ofende norma constitucional. É o caso, por exemplo, de normas estaduais que invadem competência privativa da União, ou normas que disciplinam, de maneira contrárias à Carta Magna, matérias já tratadas nela. Mas há casos difíceis e verdadeiramente trágicos, em que não é claro o que a Constituição exige do legislador, bem como se a lei infraconstitucional viola seus termos ou não, e em que o tema é alvo de profunda discordância e debates acalorados na sociedade. Nesses casos, fica a pergunta: tem o STF a legitimidade para invalidar leis aprovadas pelos representantes do povo?
Nas últimas décadas, diversas Cortes Supremas pelo mundo, e o STF não é exceção, vêm tomando um papel ativo no controle jurisdicional e na implementação de direitos fundamentais. Esse ativismo judicial, por mais que muitos concordem com os resultados que ele alcança, não é despido de problemas na sua justificação e na sua prática. Em primeiro lugar, há o problema mais óbvio (mas nem por isso irrelevante) da separação dos poderes. O Estado de Direito se constrói a partir de uma divisão de funções que, embora não seja rígida, é bem marcada. O objetivo é que um poder controle o outro, evitando que um deles torne-se excessivamente poderoso, o que poderia impactar nas liberdades públicas e individuais (não à toa, o traço marcante de qualquer ditadura é um Executivo forte, um Legislativo de cabresto, um Judiciário cooptado e um Ministério Público ineficiente). Certamente há muito de exagero retórico na expressão “ditadura da toga”, mas ela aponta para uma crítica legítima: o ativismo judicial excessivo pode esvaziar a legitimidade do Poder Legislativo e desequilibrar as relações harmônicas entre os poderes.
Em segundo lugar, os membros do Judiciário não são eleitos. Como já foi dito, as sociedades contemporâneas são marcadas pelo fato do pluralismo, ou seja, por visões profundamente antagônicas sobre concepções do bem comum. Essas diferentes concepções articulam-se em ideologias, instrumentalizadas por partidos políticos. Simplificando de uma maneira um pouco grosseira, a função de uma eleição é garantir que aquela visão que tem mais apoio da sociedade dite as normas e arranjos sociais para todos. A legitimidade, portanto, é dada pelas urnas. Membros do Judiciário, no entanto, por não serem eleitos, não representam posições políticas, não defendem ideologias e sua função não é implementar políticas públicas. Seu papel é garantir a aplicação da lei e, no caso especial do STF, ter a primazia em verificar se elas não violam preceitos constitucionais. O problema é quando, no exercício dessa última função, ele avança sobre o papel próprio do Legislativo, implementando uma agenda política e substituindo-se ao legislador na adoção de uma visão de bem comum própria e sem respaldo popular.
Por fim, há a questão de saber se, de fato, a Suprema Corte é sempre a melhor intérprete da Constituição. Exemplos históricos não nos faltam para comprovar que muitas vezes ela padece dos mesmos vícios usualmente atribuídos apenas ao Legislativo. Em 1896, por exemplo, no famigerado caso Plessy v. Ferguson, a Suprema Corte Americana endossou a segregação racial no Estado de Louisiana, cunhando a odiosa expressão “separate, but equal” (separados, mas iguais). No mesmo período, a mesma Corte declarou inconstitucional o “Compromisso de Missouri”, uma lei que proibia a escravidão em parcela dos Estados Unidos. O argumento? A Quinta Emenda impedia que leis privassem um senhor de escravos de sua propriedade pela mera migração para um Estado livre.
Alguém poderia apontar que, se não fosse o ativismo judicial da Corte americana, a segregação racial nos EUA, antes endossada por ela, talvez ainda fosse um problema e, sendo assim, o mesmo raciocínio poderia ser estendido para o aborto, demandando uma postura ativa do STF no caso. No caso, por exemplo, de Brown v. Board of Education (em que o precedente estabelecido em Plessy v. Ferguson foi afastado), a Suprema Corte americana declarou inconstitucionais, por incompatíveis com a 14a Emenda, as leis estaduais que segregavam alunos negros em escolas públicas. Embora esse seja um caso claro de ativismo judicial, estendê-lo para o caso do aborto não é tão simples.
A peculiaridade de Brown v. Board era que, se de um lado havia um direito fundamental, do outro a justificação para a manutenção da lei, embora pudesse se assentar também em princípios como o federalismo e a separação dos poderes, dificilmente escaparia da acusação de puro e simples racismo e preconceito (esse, aliás, foi um dos principais argumentos do Chief Justice Earl Warren para persuadir seus colegas). Já o que torna o aborto um caso tão difícil é que os dois lados da contenda reivindicam que sua posição está lastreada num direito fundamental, e, muito embora haja opiniões espúrias e tacanhas dos dois lados do debate, não é possível atribuir a crença de qualquer deles exclusivamente à ignorância, ao preconceito ou à torpeza (isso não é adotar o relativismo moral e dizer que, nesse caso, “cada um tem sua opinião”. Pelo contrário, a seriedade e a forma ferrenha como as pessoas sustentam e defendem suas crenças nesses casos é um indício de que elas estão dispostas a convencer seu oponente das suas razões). Ao contrário do racismo, homens e mulheres com diversos graus de instrução e experiências de vida divergem profunda, genuína e sinceramente sobre o aborto.
Além do mais, se, no caso do racismo, a pseudociência que o fundamentava foi desmascarada, o mesmo não pode ser dito do aborto. Em primeiro lugar, porque a ciência não consegue eliminar as divergências de matriz não apenas religiosa, mas também moral, sobre o início da vida humana, e muito menos determinar se, além do momento da concepção, deve haver outros fatores (como a viabilidade extrauterina) que devem ser levados em consideração. Ainda mais importante, a ciência não responde às nossas inquietações sobre o valor intrínseco ou não da vida humana, mesmo a em desenvolvimento primitivo, e não oferece respostas sobre se há diferença moralmente relevante entre os diversos estágios do desenvolvimento do feto e entre ele e um ser humano desenvolvido. Todas essas são questões profundamente morais sobre as quais a ciência queda silenciosa.
Num tema com tamanha divergência e com tal carga explosiva, a necessidade de submetê-lo à apreciação do maior número de pessoas, e discuti-lo ouvindo o maior número de vozes, é imperioso. Ora, a nossa Constituição prevê mecanismos democráticos para isso, estabelecendo que os representantes do povo, reunidos no Congresso, devem elaborar as leis, além de prever instrumentos como o plebiscito e o referendo para garantir mais legitimidade às normas que orientarão nossa conduta. A decisão do STF, no entanto, não só não foi precedida por nenhuma audiência pública ou pela intervenção dos chamados amicus curiae (amigos da corte), como foi tomada por apenas cinco pessoas, por maioria exígua (três votos a dois), sendo que o argumento da descriminalização do aborto foi levantado por apenas um deles. Frente a um tema dessa magnitude, qual a legitimidade democrática dessa decisão?
Há, ainda, efeitos colaterais que devem ser considerados. O excessivo ativismo judicial politiza o Poder Judiciário e deslegitima o Poder Legislativo. Podemos ver esse fenômeno de forma muito clara no impacto da decisão da Suprema Corte americana que descriminalizou o aborto, o famoso caso Roe v. Wade. De lá para cá, a Suprema Corte americana tornou-se um campo de batalha política entre os grupos pro-choice e pro-life, sendo o tema do aborto sempre um fator decisivo na indicação dos juízes e na sua aprovação ou rejeição pelo Senado e pelo povo americano. A nomeação dos seus membros, e como eles se posicionam sobre o aborto, se tornou algo mais central do que as questões que eles vão enfrentar. Veja-se, por exemplo, a recente celeuma com a substituição de Antonin Scalia – cabendo a nomeação a Obama, os republicanos (tradicionalmente pro-life) ameaçavam vetá-la não importasse qual fosse o nome. Aqui no Brasil tivemos amostra semelhante dos perigos da politização do STF. A Emenda Constitucional 88 de 2015 alterou a idade da aposentadoria compulsória dos ministros dos Tribunais Superiores, com o objetivo de impedir que Dilma Rousseff nomeasse os substitutos dos ministros do STF que iriam se aposentar ainda no seu mandato (caso tivesse chegado a concluí-lo). Isso não foi mera picuinha do Legislativo com a ex-Presidente, mas uma decisão fortemente influenciada pela percepção de que, numa Corte que frequentemente substitui o julgamento jurídico pelo político, a ideologia dos seus membros passa a contar muito. Assim, as Supremas Cortes, que deveriam ser vistas como órgãos imparciais que julgam de forma técnica, transformaram-se numa arena de disputa política e ideológica, com prejuízos tanto para o direito como para a política.
Mas talvez haja um lado positivo nessa decisão: ela estimulou o Congresso Nacional a cumprir o seu papel – legislar (e talvez estimular o debate tenha sido a intenção do ministro Barroso. Lendo o acórdão do habeas corpus, logo se percebe que a questão debatida era menos a constitucionalidade da criminalização do aborto e mais se os requisitos da prisão preventiva estavam presentes. Barroso deliberadamente trouxe à baila a questão da constitucionalidade do crime de aborto, mesmo ela não sendo necessária para o deslinde do caso). Logo após a decisão, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou a criação de uma comissão para discutir o tema. Esse, o Parlamento, é o foro correto para decidir sobre questões que tanto nos afetam e sobre as quais divergimos tão profundamente. Que os nossos congressistas cumpram o papel que a Constituição lhes outorgou e debatam o tema com a seriedade e a gravidade que ele merece.
Eduardo Augusto Pohlmann é advogado, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em direito público pela London School of Economics and Political Science (LSE).