por Gustavo Coelho
Ainda pouco conhecida em nosso país, a Olimpíada Internacional de Filosofia (IPO) ocorre anualmente desde 1993, reúne hoje cerca de cinquenta países e é o mais importante evento da comunidade filosófica internacional dedicado a estudantes de Ensino Médio. Realizada com sólido apoio institucional da UNESCO e da Federação Internacional de Sociedades de Filosofia (FISP), a IPO conta com uma rica programação acadêmica, cultural e social e tem em seu núcleo, assim como olimpíadas de outras áreas do conhecimento, uma competição. Sim, uma competição de Filosofia. No entanto, diferentemente do que poderia levar a pensar uma visão ainda bastante disseminada a respeito de como está, ou deveria estar, estruturado o currículo de Filosofia para a educação básica no Brasil, a competição que está no centro da IPO não consiste em uma “mera” prova de conhecimentos de história da Filosofia. Baseada em um consenso de que a principal contribuição que a Filosofia pode dar à educação básica é desenvolver nos estudantes a capacidade de pensar filosoficamente, a IPO demanda que eles não apenas possuam repertório filosófico no mais alto grau que puderem alcançar, mas que também saibam utilizá-lo para pensar sobre importantes questões filosóficas que lhes forem propostas.
Em até quatro horas de uma manhã de maio, antes que se inicie uma programação que envolve workshops, conferências, passeios culturais e, ainda, uma calorosa festa na noite que antecede a cerimônia de encerramento, cada estudante que participa da olimpíada tem a difícil tarefa de escrever um ensaio filosófico – e, portanto, um texto de caráter argumentativo – sobre um de quatro tópicos que são escolhidos por três autoridades da FISP e divulgados apenas no início da prova. Os tópicos, em geral apresentados na forma de pequenos trechos de textos filosóficos, devem, em princípio, cobrir diferentes áreas e períodos da Filosofia, bem como filósofos e filósofas de diferentes culturas – esse é um importante expediente previsto pelo regulamento da IPO a fim de tornar aquela tarefa, ainda que difícil, acessível, no que diz respeito ao conteúdo, a mais de cem estudantes de Ensino Médio de diferentes culturas e com diferentes interesses filosóficos. Os ensaios devem ser escritos em inglês, francês, alemão ou espanhol; e, para que a competição seja a mais justa possível, nenhum estudante pode escrever em sua língua nativa nem ter acesso a qualquer tipo de consulta, exceto a um dicionário bilíngue. Felizmente, tais obstáculos não impedem a produção de um número significativo de ensaios de grande qualidade, que é ainda mais impressionante quando lembramos das circunstâncias em que foram escritos e de quem são os seus autores: estudantes de Ensino Médio.
O processo de avaliação dos textos se dá, basicamente, em duas grandes etapas. Uma vez que cada delegação nacional é composta por até dois estudantes (dez, no caso do país sede) e até dois professores, a tarefa de avaliar os mais de cem ensaios produzidos pelos primeiros é inicialmente distribuída entre os últimos, um grupo misto de professores universitários e de escolas de excelência que compõem o Júri Internacional do evento. A fim de garantir a lisura desse processo avaliativo, os nomes dos autores dos ensaios são mantidos em sigilo e nenhum professor recebe, para avaliar, um ensaio escrito por um(a) estudante de seu país. Finalizada essa primeira etapa de avaliação, todos os membros do Júri Internacional se reúnem e deliberam, com base apenas nas notas geradas pelos diferentes grupos de avaliadores, sobre quais ensaios receberão Menção Honrosa e quais serão indicados a uma medalha. Os ensaios indicados a uma medalha (cerca de quinze por edição) são, então, relidos, cada um deles, por todos os membros do Comitê Diretor, que é formado pelas três autoridades da FISP que escolhem os tópicos da prova e por dois membros do Comitê Internacional, que administra a IPO e é formado pelos chefes das delegações dos países que já sediaram a olimpíada internacional no passado.
Pois bem, apesar da clara importância do evento e dos vários significados que ele assume para todos os que dele participam, o Brasil só começou a fazer parte dessa história em maio de 2017, quando a 25ª edição da IPO foi sediada em Roterdã, na Holanda. Esse passo começou a ser dado no final de 2016, quando um membro do Comitê Internacional entrou em contato com a Profa. Dra. Gisele Secco (então professora da UFRGS, hoje da UFSM) pedindo seu apoio para a formação de uma primeira delegação que representasse o Brasil na olimpíada. A professora Gisele, uma das pesquisadoras que mais contribuíram para estudos e debates sobre ensino de Filosofia em nosso país, e que conhecia meu trabalho como professor no Ensino Médio, entrou em contato comigo, assim como com outros professores de escolas públicas e privadas, propondo que eu tentasse participar do evento com dois de meus melhores alunos no Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre. O Brasil, no entanto, ainda não dispunha de algo que pudesse contar como seletiva para a IPO, devido ao que veio a se descobrir uma histórica resistência em nosso país à própria ideia de uma competição de Filosofia entre estudantes de Ensino Médio. Tampouco havia tempo suficiente para que uma primeira seletiva nacional fosse realizada e, principalmente, um aparente interesse por parte de outros professores que estavam cientes da oportunidade. Dessa forma, uma delegação chefiada por mim e composta pelos estudantes Antonio Simões Piltcher e Daniela Barcellos Amon foi aceita para participar da 25ª IPO com apoio institucional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Felizmente, com apenas dois meses de intensa preparação específica para o evento, tivemos uma experiência muito bem sucedida, com o Antonio, que hoje estuda na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, tendo sido agraciado com uma Menção Honrosa pela qualidade de seu ensaio. Certamente mais importante do que aquele resultado, os dias em Roterdã deixaram uma marca profunda nos dois estudantes: com uma programação riquíssima e um ambiente que estimulava muito mais o estabelecimento de vínculos humanos e acadêmicos do que a competitividade entre seus participantes, não poderia mesmo ter sido diferente.
Desde então, tenho tido a alegria e a responsabilidade, junto ao Comitê Internacional, de contribuir para a sedimentação da participação de nosso país na IPO através da organização e da realização de um forte, justo e cada vez mais inclusivo processo seletivo nacional, cujo objetivo principal é dar a cada vez mais estudantes brasileiros, de escolas públicas e privadas, a chance de participar de uma edição da IPO. Em fevereiro de 2018, com um júri formado por professores doutores de quatro universidades brasileiras, foram selecionados para participar da 26ª IPO, sediada na cidade de Bar, em Montenegro, os estudantes Monique Murer e Pedro de Oliveira, ambos da Escola Móbile, de São Paulo. Naquele ano, nossa delegação contou também com a participação da Profa. Dra. Mitieli Seixas da Silva, da Universidade Federal de Santa Maria, que vem dando grande apoio institucional à ampliação de nosso processo seletivo. Em Bar, tivemos a grande alegria de ver também a Monique ser premiada com uma Menção Honrosa pela qualidade de seu ensaio, tendo chegado, como viemos a saber depois, muito perto de ser indicada a uma medalha. Obviamente, assim como no ano anterior, o que mais valeu para os dois estudantes que representaram nosso país foi a experiência que ambos viveram, pela qual são gratos até hoje.
Por fim, em fevereiro de 2019, após divulgações públicas feitas meses antes em uma entrevista à TV Escola e no XVIII Encontro Nacional da ANPOF, foi possível aumentar consideravelmente o alcance de nosso processo seletivo, para o que também foi decisivo o envio de convites para mais de cinquenta escolas públicas e privadas de vários estados brasileiros. A prova foi aplicada simultaneamente em quatro universidades federais e três escolas de Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O júri da seletiva foi composto por vinte e um professores doutores de onze universidades e dois institutos federais, os quais foram encarregados tanto de avaliar os ensaios escritos pelos candidatos quanto de escolher os tópicos da prova. Entre os jurados estava o experiente Prof. Dr. Edgar Lyra, da PUC-Rio, que compôs a delegação que viajou para a 27ª IPO, sediada em Roma, na Itália, e para a qual foram selecionados os estudantes Theodoro Becker Ehrlich, do Colégio Israelita Brasileiro, de Porto Alegre, e Cauan Marques Negreiros, do Colégio Farias Brito, de Fortaleza. Fizeram parte da programação do evento, que contou com grande apoio do Ministério da Educação italiano, conferências sobre o tema “Herança Cultural e Cidadania” com professores das universidades Roma Tre e La Sapienza, bem como visitas aos Museus do Capitólio, ao Coliseu e uma inesquecível visita noturna ao Fórum de Augusto.
Felizmente, após três ótimas experiências na IPO e com um forte processo seletivo em expansão, o interesse de estudantes e professores brasileiros pela olimpíada internacional tem crescido. As sedes já confirmadas para as duas próximas edições do evento – cujos comitês organizadores se encarregarão, como sempre, de cobrir todos os custos de participação, exceto o de passagem aérea – são Lisboa, em 2020, e Astana, capital do Cazaquistão, em 2021. Entre os projetos para este ano no Brasil está criar uma página oficial na internet que armazenará um histórico de todas as nossas participações na IPO bem como de todas as seletivas nacionais para o evento, servindo também como plataforma de divulgação de seletivas futuras. Interessados em participar do próximo processo seletivo, que deverá ocorrer em fevereiro de 2020, podem escrever para o e-mail: seletiva.ipo.brasil@gmail.com. O Comitê Organizador fará o que estiver ao seu alcance para levar a aplicação da prova ao mais perto possível de todos os interessados.
Gustavo Coelho é Bacharel, Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor do Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre, e responsável por introduzir o Brasil na Olimpíada Internacional de Filosofia, em que atua como chefe das delegações brasileiras e membro do Júri Internacional desde 2017, coordenando também o processo seletivo nacional para o evento. Possui publicações como pesquisador, articulista e tradutor.