por Horácio Neiva
A ideia de que somos titulares de alguns direitos invioláveis é um dos traços distintivos do discurso político contemporâneo. Libertários afirmam que a intervenção estatal viola, por definição, o direito de propriedade; socialistas afirmam, de outro lado, que o livre mercado viola, também por definição, o direito à igualdade. Existem variações entre esses extremos, mas todas mais ou menos compartilham a importância dada ao conceito de “direitos” como elemento essencial para definir os limites da atuação legítima do Estado. O discurso político contemporâneo é, sem dúvidas, um discurso de direitos.
Mas o que exatamente significa um “direito”? A Filosofia Política há tempos enfatiza o conceito e dá a ele uma definição ao mesmo tempo forte e limitada. Limitada porque a noção de “direito” estende-se a um âmbito limitado de interesses, já que não podemos afirmar que temos direito a tudo aquilo que é de nosso interesse. Por outro lado, a definição é forte porque esse conjunto relativamente restrito de direitos tem o poder de salvaguardar um domínio de atuação pessoal no qual o Estado não pode, sob qualquer pretexto, interferir.
Autores tão diferentes quanto Robert Nozick e John Rawls compartilhavam ideias similares sobre o que significa possuir um direito. Segundo Nozick, “os indivíduos têm direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer a eles (sem violar seus direitos)” (Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974, p. xix). Em sentido idêntico, Rawls escreveu que “cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que mesmo o bem estar da sociedade como um todo não pode sobrepor” (A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge: Belknap, 1999, p. 3).
O discurso comum dos cidadãos parece aceitar uma versão próxima dessa ideia de direitos. Quando defendemos a liberdade de expressão ou o direito de propriedade, assumimos que esses direitos protegem posições pessoais importantes e que, ainda que as consequências de uma intervenção estatal possam eventualmente ser benéficas, nada justifica a interferência na nossa “inviolabilidade fundada na justiça”.
Essa ideia foi bem capturada na definição clássica de Dworkin dos direitos como trunfos. “Se alguém tem um direito de publicar pornografia”, Dworkin escreveu, “isto significa que por alguma razão é errado que os oficiais ajam de forma que viole aquele direito, mesmo se eles (corretamente) acreditarem que a comunidade como um todo ficaria em melhor situação se eles o fizessem”. Em outras palavras: se você tem um direito, ele é um trunfo que impede que o Estado aja de qualquer maneira que o viole.
Essa definição, popular entre os filósofos políticos e morais e, de alguma maneira, impregnada no nosso senso comum, encontra, contudo, algumas dificuldades. A principal delas é que o discurso político contemporâneo é marcado por um outro fenômeno interessante: a inflação dos direitos.
O fenômeno é bem documentado. A Corte Europeia de Direitos Humanos, por exemplo, já afirmou existir um direito a “não ser direta e seriamente afetado pelo barulho ou outro tipo de poluição” (Hatton v. United Kingdom). O Tribunal Constitucional Alemão também tem um entendimento amplo de que todos têm o direito de “liberdade de ação”, ou seja, de agir da maneira que julgarem adequado. Aharon Barak, antigo presidente da Suprema Corte de Israel, já escreveu que todos temos um direito de… cometer crimes.
Não precisamos ir aos tribunais para detectar o fenômeno. Ele pode ser facilmente percebido na profusão de alegações de direitos que vemos nos discursos das redes sociais – e também fora dela. Direito à memória e direito ao esquecimento são apenas alguns dos “novos” direitos que passaram a ser moeda corrente em debates e discussões.
Outro exemplo ilustrativo é o direito ao aborto. Quando, na década de 1970, a Suprema Corte Americana julgou o famoso caso Roe v. Wade, o aborto foi permitido com base num direito à privacidade. Hoje, já não se fala simplesmente em direito à privacidade, mas num conjunto de “direitos reprodutivos” que protegeriam as escolhas das mulheres no que diz respeito aos seus próprios corpos.
O que essa profusão de direitos implica para a definição tradicional dos filósofos políticos? Em primeiro lugar, a noção tradicional de direito parece ter sido superada por uma noção mais ampla de interesses ou valores. Todos os interesses de uma pessoa podem ser, de alguma forma, entendidos como direitos seus – é a isso, afinal, que se refere o termo “inflação de direitos”. Talvez fosse possível substituir um catálogo de direitos por um abrangente e geral “direito à autonomia”, que abarcaria qualquer coisa relacionada a atuação livre e pessoal de um indivíduo.
Porém, se todos nossos interesses são direitos, qual é, de fato, a importância de se “ter um direito”? Se ainda aceitássemos a ideia tradicional de direitos como trunfos, como uma esfera de inviolabilidade fundada na justiça, teríamos que concluir: a todo momento nossos direitos estão sendo violados, e, aparentemente, isso não parece incomodar muita gente. Pior: se todos os nossos interesses são igualmente direitos, o conflito entre eles é inevitável, e a alegação de que um direito está sendo violado parecerá, além de óbvia, banal, pois é claro que está.
Ter um direito significaria, assim, ter um apenas “interesse” prima facie. O problema é que alguns interesses podem muito bem ser frustrados. E esse foi o passo seguinte – e lógico – da inflação dos direitos: você pode ter um direito, mas isso não significa que ele não possa ser limitado. Interferências são possíveis, desde que sejam, para usar um termo caro aos juristas, “proporcionais”.
Não é que Aharon Barak achasse que todos podemos sair por aí matando e roubando. É que, para ele, o fato de termos o direito de praticar essas violências não significa que não possamos ser proibidos de fazê-lo. Concluir o contrário seria confundir a noção tradicional de direitos como trunfos com a nova concepção de direitos como interesses protegidos, mas limitáveis.
Essa mudança de uma concepção de direito para outra, entretanto, gera situações problemáticas: em primeiro lugar, os conflitos de direitos tornam-se comuns, e a mediação deles passa a ser realizada com base em juízos muitas vezes discricionários sobre o que seria ou não proporcional. Alguém terá que dizer se a interferência em um direito seu foi ou não proporcional, e já não basta afirmar que houve a interferência: isso seria repetir o óbvio.
Em segundo lugar, e mais importante: com essa mudança, há uma perda qualitativa no nosso discurso político. Se tudo é direito, é evidente que nada é direito. A inflação, tanto aqui quanto na Economia, corrói o valor dos direitos. Uma das consequências problemáticas dessa corrosão é que o discurso político torna-se cada vez mais insensível a direitos genuinamente invioláveis: acabamos relegando à vala comum dos “interesses” ou “direitos prima facie“, direitos que deveriam funcionar – ou que acreditássemos que funcionassem – como os tradicionais trunfos indicados por Dworkin.
O resultado disso é visível nas decisões judiciais sobre liberdade de expressão no Brasil: rebaixada à condição de direito prima facie, ela é a todo momento limitada, sob o argumento de que tal limitação é proporcional ou que a liberdade deve ceder em face de algum outro interesse qualquer, mas igualmente protegido.
Qual das duas concepções é a melhor concepção de direitos? Se analisarmos a forma como os Tribunais – e também os cidadãos – têm tratado o conceito, a mudança para a nova concepção é evidente. A questão é: mudamos para melhor?