por Felipe Freller e Roberta K. Soromenho Nicolete
Poucos governos na história do Brasil trouxeram a ideologia como questão tão central quanto o de Jair Bolsonaro, mesmo que esse governo se apresente como técnico, e não ideológico. O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, simboliza de modo agudo essa centralidade da ideologia: sem ter apresentado ainda diretrizes efetivas da política educacional que pretende implementar, a função que desempenha por enquanto é a de um “ministro pensador”.
Sem experiência política nem administrativa, o trunfo de Vélez Rodríguez parece ser o domínio intelectual das referências conservadoras e liberais que orientariam o atual governo. Boa parte das publicações listadas em seu currículo Lattes se refere a autores centrais do pensamento liberal, principalmente na França, como Benjamin Constant (1767-1830), François Guizot (1787-1874), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Raymond Aron (1905-1983). Estes dois últimos chegam a aparecer, no currículo Lattes do ministro, como organizadores de livro em coautoria com o próprio Vélez Rodríguez – um lapso na citação muito revelador da identidade intelectual do até então discreto acadêmico. Os que insistem em dizer que a universidade brasileira é dominada pelo marxismo justificam a pouca visibilidade de Vélez Rodríguez no meio acadêmico até sua nomeação como ministro pela recusa da universidade em lidar com referências liberais. Mas é possível dizer que a recusa vem justamente do curioso liberalismo propagado pelo governo e defendido por seu ministro da Educação – um liberalismo tão pobre e reducionista que por vezes parece mais uma caricatura feita pelos adversários da tradição liberal.
Vélez Rodríguez se apropria da tradição liberal com um objetivo bastante comum: a crítica das correntes socialistas e social-democratas das quais o PT seria uma expressão, acusadas de promover o gigantismo estatal e de violar a propriedade privada em nome da igualdade social, como se pode ver na resenha do livro O Estado fraturado: Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência, de Denis Rosenfield, escrita por Vélez Rodríguez e publicada em versão resumida neste mesmo Estado de S. Paulo em 3 de agosto de 2018). No entanto, os argumentos dos autores liberais estudados pelo ministro da Educação poderiam servir com maior rigor para criticar o próprio governo Bolsonaro. Além disso, fornecem uma chave teórica interessante para pensar a emergência um tanto inesperada de governos como este no interior de um quadro democrático.
A identidade política dos autores liberais do século XIX reivindicados por Vélez se definia por uma defesa do legado da Revolução Francesa contra filósofos contrarrevolucionários como Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de Bonald (1754-1840). Para esses liberais, o principal aspecto da nova sociedade consagrada pela Revolução Francesa era a “igualdade de condições”. Poucos levaram esse aspecto da nova sociedade tão a sério e o estudaram tão profundamente quanto Alexis de Tocqueville, o suposto coautor defunto de Vélez. Em sua obra-prima A Democracia na América, publicada em dois volumes em 1835 e 1840, a igualdade de condições é tratada como um fato “inelutável, duradouro e inescapável”. Era antes de tudo esse fato social, mais do que a organização das instituições políticas, que definia para o autor a palavra democracia. Ora, até mesmo o aristocrata de origem afirmou, na Advertência dirigida aos leitores no segundo volume da obra, que não seria sensato se opor à igualdade de condições. Parece, então, não haver muito sentido em tomar Tocqueville como autoridade – ou coautoria – para discursos que associam a simples busca por igualdade social como um caminho inevitável rumo ao gigantismo estatal e à tirania. Ao adotar esse discurso, Vélez e os demais ideólogos do bolsonarismo se alinham à filosofia contrarrevolucionária, adversária do liberalismo do século XIX. Ao afirmar que o governo da generalidade agiganta o Estado em detrimento dos indivíduos, o objetivo do atual ministro é sugerir uma incompatibilidade entre liberdade e igualdade. Ora, o principal esforço intelectual de seu falecido coautor do século XIX, Tocqueville, foi justamente negar essa incompatibilidade.
Não é que Tocqueville tenha deixado de indicar certos perigos que poderiam ameaçar a nova sociedade igualitária e certos fenômenos indesejáveis que ela potencializa, mas coisa muito diferente é fazer do pensador francês um adversário da igualdade – o que ele declaradamente não é. É preciso mais rigor e ousar ouvir o que o autor de A Democracia na América tem a dizer, antes de enredá-lo em ficções e preconceitos que não são os dele.
A divulgação em larga escala de ideologias políticas simplistas e reducionistas, mas adornadas com referências clássicas, longe de ser a criação de uma política “nova”, é um dos traços mais característicos, de acordo com Tocqueville, da sociedade democrática. Ao discutir a especificidade da forma literária nas democracias, Tocqueville constata que, mesmo com o verniz das belas-letras, certas pessoas dedicadas ao mundo das ideias carregam consigo aquilo a que estão acomodadas: uma existência prática e imediatista. Não deveria nos espantar que tal descrição apareça justamente no momento da obra em que Tocqueville faz referência às pessoas de carreira política das democracias. A densidade dos livros escapa a essas pessoas, porque, pela pressa em extrair ideias arrebatadoras das páginas (ou avolumar a lista de publicações), o que é nuance passa despercebido. Não é surpreendente, então, que a sede de setores da classe média radicalizados politicamente por essa “instrução sem trabalho”, de que falava o autor, esteja também na origem da importância conferida aos gurus da internet que “vendem” ideologias apartadas de seus fundamentos e de seu contexto político e intelectual. De fato, o que se manifesta é um dos principais riscos da sociedade igualitária apontados por Tocqueville: o nivelamento convertido em mediocridade.
É verdade que Tocqueville viu caminhos pelos quais o avanço da igualdade poderia comprometer a liberdade. Porém, a confusão dessa perda de liberdade sob a igualdade com um simples Estado de bem-estar social inflado e corrupto é uma caricatura do pensamento do autor e do liberalismo de modo geral. O que a leitura apressada de Tocqueville oculta é que existem muitas formas de o governo se converter em inimigo da liberdade. O modo mais silencioso e efetivo de se atacar a liberdade é isolando as pessoas nos assuntos privados; é deixando-as entregues exclusivamente aos prazeres da vida ordinária, aos assuntos familiares, ao cuidado dos filhos e dos amigos; é ensinando-as que os outros são uma ameaça à sua existência e aos seus bens; em uma palavra, é degradando os cidadãos sem os incomodar; é promovendo entre eles o ódio e a inveja, em vez de os aproximar.
Engana-se quem pensa que esse era o ideal de liberdade do liberalismo francês. Lúcidos pensadores do mundo em que viviam, sabiam que o isolamento entre os indivíduos não aumentaria o espaço das liberdades de cada um e não criaria uma força de coordenação espontânea do tipo “mão invisível”, mas deixaria um espaço vazio de poder sobre o qual um governante se colocaria acima de todos. Uma sociedade de indivíduos atemorizados e obcecados com a própria segurança, que apela a um poder forte e paternal para os proteger com mão firme, longe de ser o ideal de autores liberais, era seu pior pesadelo.
Que poder liberal é esse defendido pelo governo, afinal? É um poder que promete se encarregar da sorte das pessoas, nos menores detalhes da vida: a religião que você professa, o que o seu filho está aprendendo na aula de ciências, por quem você deve se apaixonar, as cores das suas vestimentas coordenadas com o seu gênero – que também é orientado pelo governo, sim! -, o comportamento associado às tradições “certas”. Ao dizer “deixa comigo que eu cuido de tudo: de seus negócios, da sua educação, da sua segurança!”, esse poder paterno e de braços abertos mente sobre suas raízes liberais, pois viola a independência individual, condição sem a qual a liberdade não pode ser completa. Ao procurar moralizar a sociedade pelo alto em nome de tempos passados em que os costumes eram mais puros, o projeto governamental atrai para si a crítica formulada por um Benjamin Constant no início do século XIX: um governo que não aceita o espírito dos tempos e procura impor aos indivíduos costumes de séculos passados fracassa necessariamente e não pode sobreviver a não ser pela tirania.
É verdade que se trata de um governo eleito. Mas essa é a combinação explosiva que a tradição do pensamento político liberal temia e que se deve temer: a soberania do povo combinada com a centralização. Quando a soberania do povo é invocada não para alargar os canais de participação política e de vigilância dos cidadãos e cidadãs sobre o governo, mas para legitimar todas as ações de uma autoridade que tem origem e apoio em setores majoritários da sociedade, aí sim a democracia é uma ameaça à liberdade. Talvez seja essa a principal lição da tradição liberal sobre a qual Vélez e os gurus do bolsonarismo pretendem se apoiar. Ao contrário do discurso do governo, transplantado diretamente da Guerra Fria e não inspirado em princípios liberais, nem toda crítica a ele é marxista.
Felipe Freller é mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorando em Ciência Política pela USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales/Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron (EHESS/CESPRA – Paris, França).
Roberta K. Soromenho Nicolete é doutora em Ciência Política pela USP e pela EHESS/ Centre de Recherches Historiques e pesquisadora pós-doc no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP.