por Gabriel Almeida Prado
Steven Pinker poderia ser um acadêmico como qualquer outro. Professor de psicologia da Universidade de Harvard, onde obteve seu doutorado em 1979, Pinker fez uma carreira investigando a linguagem e a cognição humana. Seu trabalho é ainda hoje bastante influente entre os pesquisadores da área, mas certamente não foi o que fez ele deixar de ser um acadêmico como qualquer outro. Explicar como crianças aprendem verbos irregulares pode até fazer sucesso entre cientistas cognitivos, mas não incita o calor das massas.
Foi quando começou a escrever para o público geral que passou a chamar atenção. Em 2002, publicou Tábula Rasa, livro em que argumenta que o comportamento humano é substancialmente regido pela nossa história evolutiva e que características como as habilidades matemáticas ou a propensão à violência estão sujeitas a uma forte influência genética. Desagradou diversos acadêmicos que alegam que o que chamamos de natureza humana é só um conjunto de construções sociais, e que é a cultura — ou as condições materiais — que determina como pensamos e agimos. Seu ativismo a favor da ciência também acumulou descontentes, como grupos religiosos. Controvérsia a controvérsia, Pinker foi deixando de ser um acadêmico como qualquer outro para se tornar uma mente afamada do debate público, um nome indispensável nas listas de pessoas mais influentes do mundo.
No ano passado, ele voltou ao foco das atenções com seu novo livro, O Novo Iluminismo. A polêmica da vez? Dizer que o mundo nunca esteve melhor.
Ele já havia tratado do tema em um livro anterior, Os Anjos Bons da Nossa Natureza, publicado em 2011. Nele, Pinker argumenta que a violência tem declinado década após década e apresenta estatísticas para explicar por quê. Agora, em O Novo Iluminismo, ele vai além: não foi só em segurança que o mundo melhorou, mas também em democracia, longevidade, educação, paz, direitos civis… a lista continua. As razões do progresso? As ideias defendidas pelos filósofos iluministas, como a do uso da ciência para entender o mundo e aprimorá-lo. O livro se tornou o favorito de Bill Gates e angariou elogios de diversos intelectuais, como o biólogo Richard Dawkins e o historiador Yuval Harari.
Junto com a recepção positiva, veio uma quantia significativa de críticas. Foi acusado de desmerecer os problemas do mundo e de ser um “evangelista da ciência” e defensor do neoliberalismo.
Pinker me recebeu em seu escritório para conversar sobre o livro, suas ideias e seus críticos. A sala parece uma materialização das coisas que devem ocupar sua cabeça: pedaços de cérebro e reproduções da mente humana, prêmios nas paredes, artefatos esquisitos como uma réplica da barra de ferro que atingiu o famoso paciente neurológico Phineas Gage, e livros — muitos livros. Com seus longos cachos grisalhos e uma camisa azul (ele parece só usar azul ou roxo), ele sentou à minha frente na poltrona em que recebe visitas. Antes que eu pudesse começar a entrevista, uma mulher entrou na sala com um livro nas mãos: ela queria que Pinker autografasse pois daria o livro de presente. Após essa distração, pudemos começar nossa conversa.
Em seu novo livro, você usa evidências e dados para defender a tese de que o mundo nunca esteve melhor. A qualidade de vida tem crescido em todo mundo e as pessoas estão mais seguras, mais saudáveis e mais felizes. O que lhe motivou a escrever sobre isso?
Em parte foi a surpresa de descobrir esses fatos. Como a maioria dos leitores de jornais, eu partia do princípio de que as coisas estavam piorando porque as notícias são uma amostra não-aleatória das piores coisas acontecendo no mundo em um determinado dia. E num mundo com sete e meio bilhões de pessoas, sempre haverá coisas terríveis acontecendo todos os dias. Foi só quando eu vi gráficos, a começar pela violência, mostrando que as taxas de crimes violentos tinham caído; taxas de mortalidade e de guerra, número de países com violência institucionalizada como a pena de morte e a tortura: historicamente todos eles apresentam uma tendência de queda. E foi por meio de uma série de coincidências que eu me deparei com esses gráficos e percebi que muitas pessoas não sabem sobre eles, que valeria a pena colocá-los entre duas capas e explicar por quê. Como psicólogo, eu não fico satisfeito apenas vendo um monte de tendências e dizendo “Bem, é assim que o mundo funciona.”, eu quero saber por quê. E certamente quando se trata do progresso, da vida melhorando, é como um mistério, porque as forças do universo não melhoram a vida naturalmente; elas pioram a vida. As coisas quebram, a desordem aumenta… A evolução é um processo competitivo, então não importa o quão feliz e saudáveis nós estamos, sempre há parasitas e germes evoluindo para nos atacar. Como conseguimos melhorar nossa vida mesmo assim? Quando se trata de violência, atuando como psicólogo, eu fiz a pergunta de por que somos violentos para começo de conversa. Quais os diferentes motivos que fazem as pessoas violentas? E quais as partes da natureza humana que inibem nossos impulsos violentos? E então, o que há em uma determinada sociedade em uma determinada época que faz com que nossos “anjos bons”, como colocou Abraham Lincoln, controlem nossos impulsos violentos? Ao fazer essa pergunta de forma mais abrangente, para incluir não somente a violência mas também coisas como saúde, longevidade, democracia e educação, eu olhei para as ideias que permitiram que as pessoas melhorassem a condição humana. E eu usei o Iluminismo como uma diretriz, como um termo geral para os processos históricos que nos permitiram melhorar nossa situação, a saber a razão, a ciência e o humanismo. A razão e a ciência sendo a tentativa de entender o mundo para que possamos mudá-lo, o humanismo sendo o objetivo de aplicar nosso conhecimento para fazer a vida dos seres humanos melhor.
Em suas obras anteriores, você era conhecido por sua defesa do impacto dos genes em nosso comportamento e pela tese de que existe algo como uma natureza humana — características inatas e universais da humanidade. Escrever sobre propensões à violência fez você ser visto como tendo uma visão pessimista da humanidade, mas agora você é visto como o cara mais otimista do pedaço. O que mudou?
[Rindo] Sim, eu estou bastante ciente desse conflito. E é um conflito. Eu comecei meu interesse pela violência em meu livro defendendo a própria ideia de natureza humana, The Blank Slate em inglês — e acho que em português era Tábula Rasa. Primeiro de tudo, nós temos sim propensões violentas: você pode ver isso em crianças de dois anos de idade que chutam, mordem e batem, você vê isso em nossos parentes primatas, você vê isso no fato de que a violência é um universal humano: não existe sociedade sem violência e não importa quão longe você volte na história e na pré-história, você vê sinais dela. Mas, ao mesmo tempo, eu questionei a objeção que as pessoas têm ao aprender sobre esses dados, que era: “Nós não queremos que isso seja verdade, porque se for verdade isso indicaria que a violência é inevitável, que a guerra é inevitável, que seria inútil tentar buscar um mundo mais pacífico porque a guerra está nos nossos genes, ou em nossa natureza, e não queremos que isso seja verdade”. Então, em Tábula Rasa, eu argumentei que, primeiro de tudo, essa não é uma implicação lógica: mesmo se realmente tivermos propensões violentas, isso não significa que estamos condenados à violência porque a natureza humana é complexa, tem várias partes. Junto com nossas propensões à violência nós temos “anjos bons” que podem inibi-las, como o auto-controle, a empatia, as normas morais e os processos cognitivos que nos permitem resolver problemas. Se definirmos a violência como um problema a ser resolvido, então podemos pensar em soluções e alternativas para reduzi-la, como o sistema judiciário, o Estado de direito, as forças de paz, as normas contra a violência. E eu mencionei [no livro], de passagem, que havia exemplos claros na história em que a violência diminuiu, como a abolição da escravatura, a queda do Império Soviético, a redução dos homicídios desde a Idade Média (um fato com o qual eu tinha me deparado). E foi depois que eu publiquei isso que eu comecei a receber correspondência de acadêmicos de outros campos — sociólogos, cientistas políticos, economistas — dizendo: “Você poderia ter adicionado muito mais exemplos à sua lista”. Que não era só na Inglaterra que a violência havia diminuído desde a Idade Média, mas em todos os países europeus, e que as mortes em guerras haviam caído. Eu não tinha percebido que a violência contra as mulheres, como o estupro e a violência doméstica, a violências contra crianças, tudo isso tinha diminuído. E foi [só quando] eu direcionei minha atenção às forças que podem levar a violência para baixo que eu percebi quantos exemplos havia na história.
Se o mundo tem melhorado tanto em tantos aspectos diferentes, o que leva tantas pessoas a acreditar que o mundo está terrível e, mais do que isso, piorando?
Acho que boa parte é devida simplesmente à natureza do jornalismo, que se você tem uma visão de mundo que é movida por acontecimentos — e são acontecimentos repentinos, que é do que se trata o jornalismo —, é muito mais fácil para algo ruim acontecer rapidamente do que para algo bom acontecer rapidamente. Que você pode ter uma ataque terrorista, uma guerra começando, uma crise de fome, uma pandemia, e essas coisas acontecem rapidamente e são consideradas notícias. As coisas boas tendem a consistir de nada acontecendo, como uma região do mundo que não teve nenhuma guerra nos últimos 30 ou 40 anos — mas isso não dá uma manchete. Ou as coisas que mudam gradualmente, como todos os dias 137 mil pessoas escapando da extrema pobreza. Acontecimentos graduais tendem a não ser notícia, então não ficamos cientes deles, enquanto as coisas que dão errado estão no topo dos sites de notícia e ficamos bem cientes delas. Também existe na cultura do jornalismo, além desse viés negativo inerente, um pouco de viés negativo proposital. Muitos jornalistas com os quais eu conversei acreditam que qualquer mudança positiva não é jornalismo real, sério e responsável; que é propaganda para o governo, que é relações públicas corporativas, que é imprensa cor-de-rosa, e que se você é um jornalista responsável você noticia corrupção, fracassos e catástrofes.
Algumas pessoas reconhecem que o mundo melhorou em diversos aspectos, mas argumentam que alguns acontecimentos recentes podem abalar essa tendência geral. Por exemplo, dados da organização Freedom House apontam que houve uma diminuição substancial no número de democracias no mundo e na qualidade das existentes. Vimos também a ascensão de movimentos políticos populistas. Como você vê esses acontecimentos e como eles se encaixam em sua perspectiva otimista?
Bem, eu tendo a resistir à ideia de que é uma perspectiva otimista. É só, na verdade, atenção aos dados. E isso inclui coisas que pioram, porque seria inconcebível que tudo melhorasse em todo lugar todo o tempo. Isso seria um milagre! E o progresso não é um milagre, ele consiste de seres humanos usando o conhecimento para resolver problemas. Mas problemas são inevitáveis, soluções criam novos problemas, então não deveria ser surpreendente que mesmo com esse cenário de progresso as coisas podem dar errado. Ao mesmo tempo, é importante quantificar as mudanças, mantê-las em proporção. É verdade que houve desafios à democracia durante a última década, mas o índice da Freedom House é um dos mais pessimistas — outros não mostram a mesma queda, embora eles certamente mostrem uma desaceleração. Mas mesmo com a Freedom House, em quaisquer das medidas, o mundo nunca esteve mais democrático do que ele esteve nesta década. A América Latina seria um caso para estudo: nos anos 1980, a maioria dos governos eram ditaduras de direita ou militares; hoje a maioria dos países latino-americanos são democracias. E isso é verdade no mundo inteiro. Países como Espanha e Portugal, que tão recentemente quanto nos anos 1970 eram ditaduras fascistas, hoje são democráticos. Todo o Leste Europeu, que estava sob o controle de ditaduras comunistas: todos democráticos. No Leste Asiático: Taiwan, Coreia do Sul, Filipinas. Portanto é fácil se deixar levar pelos países que se tornaram menos democráticos recentemente, como a Turquia e a Rússia, e esquecer o panorama geral. E é verdade que tem coisas que estão piorando, as emissões de carbono sendo um exemplo notável, e outras ameaças ao meio ambiente. E junto com mudanças específicas que são negativas, existem forças políticas e intelectuais que eu diria que estão lutando contra os motores do progresso, entre as quais o populismo autoritário é o exemplo principal. De muitas maneiras o populismo autoritário é um movimento contra-iluminista: ele exalta líderes carismáticos ao invés do processo democrático de pesos e contrapesos; ele glorifica a nação ou a tribo, às vezes a raça, ao invés de dar valor a toda a humanidade; ele tende a depositar muita confiança na religião ao invés de na razão e na ciência; e ele se opõe a algumas instituições específicas inspiradas pelo Iluminismo, como o livre comércio e os mecanismos de governança global, como a União Europeia e a ONU. E é o mais recente de uma série de movimentos que se opuseram aos valores iluministas desde o próprio Iluminismo.
Você mencionou “valores iluministas”. O nome do seu livro no Brasil é O Novo Iluminismo. O que tem de novo no Iluminismo que você defende e como ele é diferente das ideias dos séculos XVII e XVIII?
É, e na verdade eu inicialmente pensei em chamar a versão em inglês de The New Enlightenment [O Novo Iluminismo] — esse era meu título original. O Iluminismo do século XVIII não deveria ser visto como uma fonte de revelação ou uma espécie de era de ouro da qual devemos sentir saudade. Isso iria contra a própria ideia do Iluminismo, que é a de usarmos a razão e a ciência para constantemente atualizar nossas crenças à luz de novas evidências, de novos argumentos e da experiência. Portanto, eu vejo o Iluminismo como um processo contínuo mais do que um período histórico específico. Um dos motivos pelos quais eu acredito que realmente faz algum sentido falar sobre um novo Iluminismo é que vários dos ideais do Iluminismo original realmente só passaram a existir nos últimos 50 ou 60 anos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como os objetivos globais — de eliminação da pobreza no mundo, eliminação da fome —, igualdade para as mulheres, igualdade para os gays, igualdade de raças. Essas ideias foram abordadas no Iluminismo mas meio que se dissiparam, e foi só nas últimas décadas que esses ideais foram realmente implementados. Além disso, houve uma expansão incrível de nosso entendimento da natureza humana, algo pelo qual os philosophes iluministas eram obcecados, mas obviamente tinham muita pouca informação em sua época. Não existia nada como a neurociência, não existia nada como a biologia evolutiva, não existia nada como a genética, não existia nada como a psicologia experimental. Hoje temos uma ciência da natureza humana, o que realiza um dos sonhos dos filósofos iluministas, e nós estamos usufruindo dela hoje.
Em seu livro, você aborda bastante o progresso material, como os avanços tecnológicos e a melhoras nas condições de vida, mas também menciona o progresso moral, como o fim dos regimes autoritários, a abolição da escravatura e a expansão dos direitos civis. Você acredita que existe alguma distinção significativa entre essas duas formas de progresso?
Certamente há uma diferença conceitual significativa. Mas é interessante que, empiricamente, eles nem sempre andam em sintonia perfeita; mas eles tendem a se influenciar. Em média, países que são mais ricos têm muito do que nós geralmente consideramos ser valores morais melhores: igualdade para as mulheres, democracia, ausência de guerras civis, ausência de genocídios, ausência de guerras, mais proteção ambiental, melhor proteção dos direitos dos animais. São países como a Suíça, a Noruega, a Dinamarca, a Nova Zelândia e o Canadá que tendem a estar na vanguarda desses avanços morais. Com algumas exceções! Se você traçar um gráfico do Índice de Progresso Social, que é como uma soma de todas as coisas boas que acontecem em uma sociedade, em relação ao PIB per capita, você verá uma linha bem reta com exceção de alguns países árabes de extração de petróleo, como a Arábia Saudita e o Kuwait, que são podres de ricos mas de muitas maneiras atrasados moralmente, como em relação aos direitos das mulheres.
Um dos críticos da sua obra, o filósofo John Gray, propõe que o progresso moral que você descreve no livro é ilusório. A qualquer momento, nós poderíamos ter um retrocesso imenso. Como evidência disso, poderíamos citar o apoio à tortura após o 11 de setembro, os crescentes movimentos xenofóbicos e homofóbicos nos Estados Unidos, ou os casos de antissemitismo na Europa. Essa crítica afeta sua tese geral?
Pois é — ela está completamente errada! A tendência geral vai imensamente contra a tortura, apesar do aparecimento bem breve da ideia de que suspeitos de terrorismo poderiam ser coagidos a divulgar informações que poderiam salvar vidas, como no “cenário da bomba-relógio”. Você não pode comparar isso de jeito nenhum com o uso da roda de tortura, com a flagelação e a evisceração, com a morte na fogueira para hereges e criminosos, onde a tortura era usada como punição, não como um método de coerção para obter informações para salvar vidas. Agora, isso não é uma defesa da tortura para obter informações para salvar vidas, mas moralmente elas são coisas bem diferentes. E mesmo o uso da tortura para extrair informações foi denunciada rapidamente e logo abandonada. Da mesma forma, […] o fato de que nem 100% do mundo é a favor dos direitos dos gays não significa que o mundo esteja ficando menos tolerante à homossexualidade — pelo contrário. Se você olhar para o número de países que descriminalizaram a homossexualidade, se você olhar para as posições em relação aos gays, pelo menos entre os países ocidentais, para os quais temos dados (na verdade acredito que no mundo todo), a tendência vai imensamente na direção de maior tolerância. Da mesma forma para o antissemitismo: ele certamente não foi extinto da face da terra, mas dizer que depois de séculos de pogroms e expurgos, e depois o Holocausto, que não houve avanços na luta contra o antissemitismo nos últimos 70 anos seria um delírio, iria de encontro aos fatos.
John Gray também lhe chamou de “evangelista da ciência”, sugerindo que você trata a ciência como uma religião e a razão como um dogma. Mas é interessante que tanto você como Gray são ativistas do ceticismo. Como você vê os comentários dele?
O fato de que Gray hipoteticamente alegaria ter um argumento razoável, que o que ele está dizendo é racional, que é uma implicação lógica, significaria que ele próprio tem um compromisso com a razão. Dado que a ciência não é nada mais do que o uso da razão para entender o mundo físico, seria inconsistente produzir um argumento para dizer que quando se trata de entender como as coisas funcionam, deveríamos voltar para a superstição e a intuição. Então ele seria completamente inconsistente se ele não fosse um um ativista da ciência para entender o mundo. E de fato o ceticismo é o fundamento da razão, pelo menos desde Descartes e provavelmente antes, desde Erasmo. Não podemos aceitar nada pela fé, mas devemos ser persuadidos pelas evidências e pela lógica. Então sim, nós compartilharíamos o ceticismo como um ponto de partida, apesar de que ser cético sobre tudo a despeito de evidências e argumentos também não seria racional — apenas ter um ônus da prova de que uma pessoa só deve acreditar em coisas para as quais há evidências e argumentos.
Nessa tendência de progresso moral da qual temos tratado, há movimentos crescentes nas universidades nos Estados Unidos e no Brasil para limitar a liberdade de expressão de discursos ou palestrantes considerados reacionários ou conservadores. Ativistas pela justiça social argumentam que o racismo, a homofobia e o machismo não devem ser considerados parte da liberdade de expressão, e que precisamos de estratégias como não dar palanque a essas pessoas e criar espaços livres desses discursos para garantir o progresso moral que atingimos nessas áreas. Como você vê esses movimentos?
Eu sou um forte opositor desses movimentos, por diversas razões. Uma delas é que se eles querem justificar qualquer uma de suas ações, eles próprios estão exercendo a liberdade de expressão, e a menos que eles estejam dispostos a alegar que são infalíveis, oniscientes e angelicais, eles não podem negar esse mesmo direito às pessoas que discordam deles. Em segundo lugar, dado que os seres humanos falham, que as convicções de qualquer época e local podem ser — e frequentemente foram — demonstradas falaciosas em retrospecto, isso significa que se buscamos o progresso moral, fazer do mundo um lugar melhor, nós temos que deixar as opiniões serem expressas e avaliadas, já que esse é o único caminho para o conhecimento. Ninguém é inspirado por Deus, ninguém é infalível, nem mesmo o Papa — apesar de alegações do contrário —, e expressar opiniões e permitir que elas sejam avaliadas é o único caminho pelo qual podemos obter progresso. E também a história nos mostra que ideias que tomamos como certas hoje foram polêmicas em suas épocas, que as pessoas que primeiro se opuseram, digamos, à escravidão, ou à perseguição dos hereges, ou ao direito divino dos reis, ou à negação dos direitos das mulheres, ou à glorificação da guerra, todos essas ideias foram opostas em seus tempos por vozes heterodoxas, polêmicas, e até “nocivas”. Temos que ser gratos agora que suas opiniões foram expressas em suas épocas e eventualmente foram vitoriosas e, portanto, nos tempos atuais, temos que preparar terreno para ideias desconfortáveis, porque não sabemos, até que permitamos que elas sejam avaliadas, se elas têm mérito ou não.
Como um defensor da razão, você também trata de muitas situações em que as pessoas não pensam racionalmente. Como você sabe, há uma área de pesquisa crescente que busca entender como e por que cometemos erros de raciocínio. Como pessoas leigas podem usar essas novas descobertas para tomar decisões melhores?
Eu acredito que precisamos estar cientes de nossas próprias limitações. Que deveria ser parte da sabedoria de toda pessoa educada que a intuição humana do dia a dia é falha, que todos nós somos vulneráveis a ilusões e vieses, e que precisamos estar cientes deles, tentar colocá-los de lado. [Temos que] perceber que nossa confiança em anedotas, por exemplo, não deveria ser a base de nosso conhecimento sobre o mundo, que nossa tendência a pensar em estereótipos sempre merece ser repensada, e que vieses como a falácia dos custos irrecuperáveis e a falácia da regressão à média… tem uma lista saudável de irracionalidades previsíveis da mente humana que uma pessoa educada, e as instituições da razão, como as universidades, a imprensa e o Estado, devem estar cientes e buscar combater.
Deveríamos ensinar esses erros cognitivos nas escolas?
Eu acho que sim. Eu acho que isso deveria ser uma parte tão básica da educação quanto a alfabetização e a aritmética: o pensamento crítico.
A existência da natureza humana, que você defendeu em livros anteriores, é uma ideia ainda muito controversa, especialmente em departamentos de ciências humanas. Muitos acadêmicos alegam que nossos comportamentos e ideias são socialmente construídos, e não universais, e você escreveu um livro inteiro contra-argumentando essas ideias. Por que você acha que ainda existe tanta resistência à ideia de natureza humana?
É, você está certo de que existe resistência. Eu tenho um paper que vai sair daqui a algumas semanas sobre a universalidade da música, com um time de Harvard, em que incluímos no apêndice uma sondagem com antropólogos sobre se música é universal, se existe nas sociedades que eles estudaram. Recebemos muitas respostas inflamadas, de que isso é racista e colonialista; bizarramente dado que você poderia imaginar que mostrar que algo é universal provaria a igualdade de toda a humanidade, mas não. Uma razão é que muitos intelectuais ficam aterrorizados com a ideia de que se a natureza humana existir pode haver diferenças entre os sexos, entre indivíduos, entre grupos étnicos, e isso justificaria a discriminação e a opressão. Eu defendo que isso é um non sequitur, que é ilógico, que o princípio da igualdade é de que as pessoas devem ser tratadas de forma justa como indivíduos e não por preconceitos pelas estatísticas de seus grupos. E portanto podemos afirmar o princípio da igualdade mesmo que seja o caso que grupos de pessoas não sejam indistinguíveis; isto é, que o conceito de equidade não deve ser confundido com o de homogeneidade. A segunda objeção é um medo do fatalismo, que se seres humanos têm defeitos “de fábrica”, então nunca poderemos ter uma sociedade perfeita; logo seria uma perda de tempo tentar fazer do mundo um lugar melhor. Eu defendo que isso também é um erro básico, porque como a natureza humana é complexa, nós temos características bem desagradáveis mas também temos empatia, temos auto-controle, temos cognição, temos linguagem, e podemos pensar em alternativas para os defeitos em nossa natureza. Isso abre caminhos para melhora, e como falamos anteriormente na entrevista, eu mostrei que isso aconteceu de fato quando se trata de violência. Um terceiro medo é o medo do determinismo, de que se nosso comportamento é determinado por nossa história evolutiva, por nossos genes, por nossos estados mentais, então ninguém poderia ser considerado responsável por suas ações, que todo mundo terá uma desculpa: “Não fui eu! Meus genes me fizeram agir assim!” e ninguém poderia ser considerado responsável por nada. Agora isso, por sinal, atravessa o debate de “natureza versus criação”, porque mesmo se formos determinados pelo nosso ambiente, você pode dizer: “Bem, eu tive uma infância triste, sou uma vítima de abuso, tive um trauma, e por isso eu matei o vendedor”. Portanto eu acredito que essa objeção se aplica aos dois lados [do debate], mas é também irrelevante porque todos os fatores que influenciam o comportamento são probabilísticos; o determinismo é a rigor falso no sentido de ser capaz de prever exatamente o que alguém vai fazer. E, de qualquer maneira, se nós queremos considerar as pessoas culpadas, estamos, paradoxalmente, esperando que o comportamento delas seja previsível, isto é, nós presumimos que se ameaçarmos alguém com punição ou vergonha, este alguém melhorará o seu comportamento. Então na verdade nós estamos contando com alguma previsibilidade no comportamento pelo próprio ato de considerar as pessoas culpadas, por recompensá-las por coisas boas e puni-las por coisas ruins. A propósito, existe um medo mais confuso de que se for o caso que somos criaturas biológicas, de alguma maneira a vida perde todo o sentido e propósito, um medo da ideia de que nós morremos quando nosso cérebro para de funcionar. Que razão existe para viver uma vida moral se não vamos para o paraíso, ou não temos que nos preocupar com ir para o inferno? Se não temos uma alma imortal que pode sobreviver à morte do cérebro? E eu defendo que essa também é uma crença ilógica, que a moralidade vem do fato de que cada um de nós quer prosperar e florescer, que preferimos estar vivos a estar mortos, preferimos estar saudáveis a estar doentes, preferimos ser educados a ser ignorantes, e é inconsistente querer todas essas coisas para você sem desejar o mesmo para todo mundo. A moralidade vem da universalização de suas próprias preferências e isso dá sentido à vida: tornar a vida o mais benéfica possível para o maior número de pessoas possível; eliminar a fome, a doença, a guerra e a ignorância; e eu acho que isso fornece razões suficientes para a existência.
Nós conversamos bastante sobre progresso moral, então para terminar eu gostaria que você fizesse uma previsão. A humanidade mudou muitas de suas convicções morais nos últimos séculos. Quais de nossas convicções morais atuais você imaginaria que serão questionadas nas próximas décadas ou séculos?
Eu suspeito que nosso tratamento dos animais — esse é um candidato óbvio. Provavelmente algumas das práticas punitivas do sistema de justiça criminal; certamente punir crimes sem vítima como a posse de drogas e possivelmente a prostituição, e em geral a severidade da punição criminal. [Eu suspeito] que possamos pensar em maneiras melhores de influenciar o comportamento do que trancar pessoas por longos períodos de tempo. Vejamos… Eu suspeito que ter armas nucleares será visto como algum tipo de insanidade moral — mesmo que não as usemos, o fato de que temos a capacidade de causar mortes e destruição em larga escala. É também concebível que a lentidão em agir a respeito das mudanças climáticas poderia ser visto como um crime moral se as futuras gerações sofrerem por nossa inação hoje.