por Juliana de Albuquerque
Literatura e filosofia, o que será que essas duas áreas do saber têm em comum? Hoje, para responder essa pergunta e, também, para marcar o meu retorno ao Estado da Arte, falo um pouco da minha trajetória acadêmica, do meu projeto de doutorado e, finalmente, sobre o livro que lançarei com o meu orientador Gert Hofmann pela editora Walter De Gruyter: uma coletânea de artigos sobre literatura e filosofia alemã, escrita pelos germanistas e filósofos integrantes da rede de pesquisa (Anti-) Classicism & (Anti-)Idealism, criada por nós dois e, atualmente, hospedada pelo Departamento de Alemão da University College Cork na Irlanda.
Desde os tempos de escola tenho dificuldades em aceitar a necessidade de uma barreira imposta entre filosofia e literatura. Entre os autores aos quais sempre retorno e os filósofos com os quais dialogo. Hegel, por exemplo, cuja obra esteve mais presente durante o meu período de graduação e mestrado, ganha uma nova dimensão a partir do momento em que passamos a entender a influência da tragédia grega, principalmente a partir dos textos de Sófocles e Ésquilo, na formação do seu pensamento. Sem os gregos, e sem a releitura dos gregos efetuada pela tradição literária alemã dos séculos dezoito e dezenove, seria quase impossível nos orientarmos no mapa da obra hegeliana.
Essa experiência de orientação espacial na leitura de textos filosóficos é descrita por Walter Benjamin como a atividade do flâneur, personagem que combina a errância ociosa pelos centros urbanos, com o desenvolvimento de uma maior sensibilidade para observar detalhes que passariam despercebidos para o transeunte apressado e imerso nas suas responsabilidades cotidianas.
Quando deixei o Brasil e fui morar em Israel, a minha dificuldade inicial para compreender o hebraico fez com que o ritmo da minha vida desacelerasse e, essa parada obrigatória, transformou a minha experiência naquele país em um estágio de reorientação e flâneurismo intelectual.
Assim, embora eu tenha deixado o Brasil com o propósito certeiro de escrever uma dissertação sobre a lógica e metafísica em Hegel, o meu isolamento social em Israel fez com que outras leituras e outros temas voltassem a chamar a minha atenção.
Pouco a pouco, senti-me novamente atraída pelos textos de Ésquilo, Aristóteles, Shakespeare, Goethe, Nietzsche e Freud. Através deles, comecei a pensar sobre temas como violência, melancolia, destino, digressões, experiência, sofrimento e conhecimento-de-si.
Este último tema representado pela famosa fórmula grega do pathei mathos (a “sabedoria pelo sofrimento”), tão importante para compreendermos a história da literatura ocidental — desde a Orestéia e da releitura de Goethe para a história de Ifigênia em Tauris à desconstrução do romance de formação na obra de Saul Bellow, em livros como Herzog e Henderson the Rain King — chamou-me tanta atenção que, não vi outra solução para mim, senão escrever uma dissertação de mestrado sobre a importância da literatura e do trágico para o pensamento alemão e, principalmente, para o desenvolvimento das ideias que informam as obras de Hegel e Hölderlin.
Enquanto estamos acostumados a estudar a relação entre filosofia e literatura através da discussão de temas filosóficos levantados por obras literárias, isto é, buscando no texto uma espécie de ensinamento, ou mensagem, o que eu me propus a fazer na pesquisa de mestrado foi mostrar como, durante um certo período da cultura alemã, as fronteiras entre os gêneros literário e filosófico se dissolveram a permitir o estabelecimento de uma relação de mutualismo.
Na biologia, o mutualismo é uma relação entre indivíduos de espécies distintas, cujo resultado gera benefícios recíprocos. Na história intelectual alemã dos séculos dezoito e dezenove, o mutualismo que encontramos na natureza torna-se uma metáfora eficaz para analisarmos o contexto histórico e as suas consequências para o tipo de relação nascente entre filosofia e literatura.
Já na década de 1930, a pesquisadora inglesa E. M. Butler escreveu que dentre as muitas consequências da Reforma Protestante para o desenvolvimento da literatura alemã, uma das mais importantes teria sido a perda do universo mitológico ligado às práticas litúrgicas e artísticas do catolicismo europeu. Desprovidos deste universo, os autores alemães precisaram recorrer a outras fontes culturais em busca de inspiração, dentre elas, a filosofia.
Em uma frase que sintetiza bem o seu estudo, Butler diz-nos que durante o período em questão — não importando para qual direção esteja lançado o nosso olhar — “encontraremos poetas alemães amparados em filósofos para conseguir enxergar o mundo e para buscar a beleza no território da verdade absoluta.”
Assim, por exemplo, seria impossível entendermos Goethe — autor sobre o qual eu dedico a minha pesquisa de doutorado — sem estudarmos as suas várias incursões cientificas e filosóficas, sem termos conhecimento sobre a sua recepção e critica à Isaac Newton sobre o diálogo da sua obra com o pensamento de Aristóteles, Platão, Spinoza e Leibniz; ou a tensão criativa que o grande poeta alemão manteve com a obra do suíço Jean-Jacques Rousseau.
Também seria contraproducente lermos Schiller, sem levar em consideração o resultado que a leitura de Immanuel Kant produziu em seu trabalho; ou mesmo os poetas do Romantismo e os Jovens Alemães, dentre eles, Henrich Heine —autor do belo ensaio Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland — sem nos familiarizarmos com os temas da filosofia do Idealismo Alemão.
Mas será que o inverso dessa relação entre literatura e filosofia também seria verdadeiro? Será que os filósofos alemães do final do século dezoito e século dezenove também teriam sido influenciados pela literatura do período?
No início desse artigo escrevi que sem os gregos e sem a releitura dos gregos efetuada pela literatura alemã dos séculos dezoito e dezenove, seria impossível nos orientarmos no mapa da obra hegeliana.
Ora, para os filósofos da geração de Hegel, Schelling e Hölderlin, uma das grandes empreitadas seria encontrar um discurso original e que, ao mesmo tempo, pudesse conciliar as influências de dois gigantes com visões-de-mundo diametralmente opostas, isto é: Goethe, representante por excelência do classicismo alemão e Kant, cuja filosofia transcendental lança, por assim dizer, a figura do filósofo acadêmico tal o conhecemos na atualidade.
Dessa geração em específico, talvez o autor mais interessante seja Hölderlin cuja obra além de ensaios e fragmentos filosóficos, também abarca grandes feitos literários tanto na poesia e na prosa, quanto no drama. Infelizmente, um comentário sobre a vida e a obra de Hölderlin não cabe no espaço deste artigo. No entanto, vale a pena frisar como a sua produção filosófica influencia a sua criação literária e vice-e-versa. Algo que fascinou filósofos de gerações de posteriores como Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger.
Pertence a Hölderlin e aos seus amigos de seminário, Schelling e Hegel, o manifesto que inspirou a criação da nossa rede de pesquisa e, por fim, da coletânea de ensaios acadêmicos que lançaremos em 2018. Esse manifesto, conhecido pelo título de O Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão (1796/7), vê no Belo um princípio unificador entre a Verdade e o Bem. Guiado pela ideia de que toda filosofia do espírito seria uma filosofia estética, o documento registra a opinião dos então-jovens filósofos de que, sem o senso estético, faltaria ao homem capacidade para lidar com a realidade. Afinal, segundo o texto, até mesmo o nosso entendimento da história dependeria da nossa maior ou menor capacidade para apreciar o belo.
Neste diapasão, O Mais Antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão lança uma provocação controversa para o leitor do século XXI, porém, bastante fértil, caso estivermos interessados em repensar os métodos e discursos aplicados às ciências humanas no contexto acadêmico atual.
Segundo esse documento, nós deveríamos criar uma mitologia da razão. Porque, em outras palavras, o ser-humano teria a necessidade de cultivar mitos que o tornem racional. “Neste sentido, a Poesia recobraria a sua dignidade maior e, ao fim de contas, voltaria a ser novamente aquilo que foi no começo: a educadora da humanidade.”
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.
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