Por Fabrício Tavares de Moraes
George Steiner, em seu recente e profundo ensaio Idea of Europe, diz que uma das características ou liames que coerem a Europa é a oscilação entre Atenas e Jerusalém, entre a filosofia e o profetismo, a qual constitui-se não como dicotomia, mas surgem ora em equilíbrio, ora em seus extremos puristas em toda a história do pensamento ocidental. O próprio Steiner, que em outra parte escrevera sobre as novas “mitologias” fundantes do freudismo e do marxismo, ilustra seu ponto dizendo que, na figura de Marx, vemos a revolta profética, uma espécie de arremedo do profeta Amós, e em Freud, a perscrutação das entranhas da consciência humana, semelhantemente aos ditos morais da tradição bíblica.
Permanece, contudo, o fato de que Atenas e Jerusalém não são passíveis de uma síntese numa estrutura superior; e quando são subsumidas numa mesma alma, como é o caso de Leo Strauss e Eric Voegelin, que valeram-se de ambas as tradições em suas respectivas filosofias, o público e os estudiosos em geral são tomados de desconfiança, pois creem que a objetividade ou cientificidade foram comprometidas por outros métodos e ideias menos tangíveis.
Talvez uma das características que definitivamente marcam a era presente no Ocidente seja a supressão quase absoluta dessa consciência tensional. Mark Lilla diz que “vivemos no lado oposto de todas aquelas civilizações, passadas e presentes, que organizaram suas vidas políticas e conduziram os argumentos políticos com base na revelação divina”.
É por isso que a consequência da “Grande Separação” iniciada por Hobbes – retomando o último ponto mencionado em nosso ensaio anterior – é seu soberano que encabeçaria a religião civil e o Estado, “tendo o monopólio absoluto sobre questões eclesiásticas, incluindo a profecia, os milagres e a interpretação das Escrituras. Ele também declararia que o único requisito para a salvação era a obediência total a si mesmo”.
No raciocínio de Hobbes, o poder atribuído ao soberano tem como finalidade o sufocamento de todas as crises internas provocadas pelas diferenças religiosas, de maneira que a religião civil e vida espiritual tornar-se-iam indistintas. Porém, tempos depois da publicação de O Leviatã, um outro componente “invadiu” (o termo é de Lilla) o pensamento ocidental, pois Rousseau, revoltado contra o reducionismo de Hobbes, propôs então que há somente duas forças antagônicas que perpassam a ordem social: “uma autoestima saudável (amour de soi-même) e um orgulho potencialmente corruptor (amour propre)”.
Se em sua obra Cidade de Deus Agostinho apresentou-nos duas forças hostis – amor de Deus (amor Dei) e o amor próprio (amor sui) –, Rousseau, ainda que defendendo a primazia do sentimento religioso, afirmou que as causas da desordem política encontram-se não no medo, mas no amor próprio.
No entanto, a partir disto, as reflexões sobre a teologia política tornam-se, segundo Lilla, cada vez mais problemáticas e generalizadas. Kant, um herdeiro intelectual mas não discípulo de Rousseau, de fato dispôs em ordem, pela primeira vez, o pensamento político “entusiasta” que grassava na Alemanha de sua época.
Apesar de inicialmente um epicurista moderno, analisando a religião como fenômeno meramente psicológico, Kant impressionou-se com a erudição e serenidade de (para ele) um fanático como Swedenborg. E não obstante sua rejeição da doutrina do “pecado original” como uma afronta à dignidade humana, Kant “jamais perdeu um senso cristão de algo obscuro e ingovernável na psique que jamais pode ser apagado, algo que os teólogos chamam de pecado e ele chamava de ‘mal radical’”.
Assim o homem moral, no entendimento do filósofo, luta cotidianamente contra essa instância obscura de sua essência unicamente por meio da razão. Mas há lugar, em seu raciocínio, para o amour de soi-même de Rousseau, que é, segundo este, a força diretriz da alma humana em sua conformação à ordem social? Em A Religião nos Limites da Simples Razão, numa interpretação da narrativa da queda, é-nos dito que Eva, quando escolheu o bom em vez do certo, inverteu a ordem correta de incentivos, cometendo assim o “mal máximo”; isto é, para Kant, o cumprimento perfeito do dever é o ideal da vida humana. De modo que a religião e Deus são sobretudo (ou mesmo unicamente) instâncias morais.
Nas palavras de Lilla: “Kant aceitava a naturalidade do orgulho, mas não poderia aceitar a doutrina cristã da graça, com base de que a virtude é genuína somente se a alcançamos por meio da liberdade – ‘autonomamente’, não heterononamente”. Desse modo, partindo do pressuposto de que a moralidade é o objetivo último do homem, Kant lança uma ponte (frágil) entre os polos da “Grande Separação”, reintroduzindo o cristianismo, “purificado pela razão”, como uma força para a moralização e universalização dos reinos humanos:
Kant afirma não apenas a fé cristã privada, mas também as igrejas cristãs como força moral-política no mundo moderno. Um século depois de Hobbes, Kant encontrou um caminho de trazer novamente a teologia ao centro do pensamento político.
A senda aberta por Kant culminou nos idealistas e na teologia liberal do século XIX na Alemanha. E é neste ponto que a análise de Lilla é singular, pois foca-se, como fazem outros raros trabalhos, nas teologias políticas protestante e judaica que dominavam o cenário europeu quando da irrupção dos movimentos totalitários. Não que esses teólogos per si tivessem fertilizado o solo para a ascensão dos Estados aspirantes a divindades, mas o contrário: revolucionários valeram-se da linguagem de autores como Karl Barth (que particularmente opunha-se ao nazismo), interpretando-a no sentido político-ideológico.
Tanto Barth (no protestantismo) quanto Franz Rosenzweig (judaísmo) escreveram suas obras em contraposição ao pensamento teológico e político da época, àquela estranha atmosfera que Carl Schorske chamou de Gefühlskutur [a cultura sentimental]. Curiosamente, e ao que hoje soaria controverso a muitos religiosos, esses autores criticavam o Kulturprotestantismus, o protestantismo cultural que Hegel colocara como o ápice do desenvolvimento histórico-psicológico da religião.
Não se tratava simplesmente da influência religiosa sobre a sociedade, mas de uma perspectiva culturalista do cristianismo, visto e justificado intelectualmente pelos teólogos liberais como a maior força cultural e desenvolvimentista da Europa, mas especialmente da Alemanha dos séculos XIX e XX. Nas palavras de Lilla,
Os teólogos liberais não pregavam um Deus que se revela e que decretava o caráter da boa sociedade. Pelo contrário, eles divinizavam os anseios religiosos humanos como intuições de um Deus que opera por meio da história, e então divinizaram a história como o teatro sagrado no qual a moralidade humana desenvolve-se e é concretizada.
A bem da verdade, nomes como von Harnack e Ritschl exaltavam a cultura alemã em nome do cristianismo, ao mesmo tempo em que perseveravam na tradição humanista. Porém, quando depararam-se com a destruição da Primeira Grande Guerra e “tiveram de lidar com uma civilização destroçada, paralisada pela falta de confiança”, lançaram-se na tentativa de “dar um sentido teológico à catástrofe após um século de celebração da sociedade ocidental e de santificação de sua cultura como a mais elevada realização da tradição bíblica”. E com isto, alguns desses teólogos identificaram perigosamente a causa de Deus com a causa da Alemanha destroçada.
O rompimento de Barth para com essa linha de pensamento deu-se com sua descoberta de que vários de seus professores liberais haviam defendido o militarismo alemão da 1ª Guerra Mundial com bases teológicas. Rosenzweig, por sua vez, numa espécie de epifania momentos antes de converter-se ao cristianismo, revoltou-se com a tradição messianista inaugurada por Hermann Cohen.
Para ambos, tanto a teologia liberal quanto o messianismo que andavam de mãos dadas com a vida social alemã da época nada mais eram do que uma forma de salvacionismo político, “seja a salvação para os judeus de seu exílio, seja a salvação de toda a raça humana da ignorância e da opressão mediante a secularização da mensagem cristã”. E, não obstante a diferença de abordagem e conteúdo desses teólogos, suas obras convergiam-se na afirmação de que o “destino final do homem não se encontra na política, mas somente na redenção divina”.
Porém, é surpreendente que os termos teológicos de Barth e Rosenzweig (que morreu em 1929, antes da ascensão de Hitler) como “choque”, “sublevação”, “crise”, “decisão” e “redenção” foram apropriados como matéria retórica pelos revolucionários e tiranófilos europeus. Assim, transmutaram todo o vocabulário teológico para conceitos políticos e discursos inflamados: “O colapso da civilização europeia na Grande Guerra era o ‘choque’; a Revolução Russa era a ‘sublevação’; a inflação e a depressão econômica eram a crise”.
Embora fossem na direção contrária, os tratados teológicos de Barth e Rosenzweig – quando interpretados sob o viés ideológico, reacionário e revolucionário – deram ou permitiram a composição de uma forma de argumentação política, que posteriormente revelou-se como a “celebração teológica da tirania moderna”. De fato, dificilmente concebemos o pensamento político nazista sem o decisionismo de Carl Schmitt.
À visto disto, mais do que nunca é cabível a definição dada por Kenneth Minogue de que as ideologias são os ramos da grande religião civil da soteriologia política; mas possivelmente cabe também a observação de que, por mais festivos e efusivos que sejam seus ritos, seus acólitos invariavelmente dirigem suas orações não a deuses orgásticos, como queria Nietzsche e como decerto acreditam, mas somente a deuses natimortos.
Para saber mais
Os deuses natimortos: Mark Lilla e a “Grande Separação” – Parte I: Leviatã
O “novo pensamento” de Franz Rosenzweig: pensar e viver diante da contingência