por Fabrício Tavares de Moraes
Com o título de sua recente obra, The Age of Anger – A History of the Present (“A Era da Raiva: Uma História do Presente”), Panjak Mishra talvez tenha apreendido, de modo perfeitamente sucinto, a disposição tensa de espíritos que atualmente permeia grande parte, se não a totalidade, das sociedades ocidentais e ocidentalizadas. Afinal, o autor consagra todo um estudo ao fenômeno hoje perceptível mesmo aos olhares mais superficiais, qual seja, a “pandemia global de fúria”, o ressentimento como novo motor da história, e as consequentes políticas advindas desse estado de coisas.
Mas, à vista disso, a situação mostra-se ainda mais perturbadora, já que um dos dilemas que mais afligem hoje os governos democráticos continua sendo a questão da legitimidade – a origem última e incontestável do poder. De maneira um tanto vertiginosa, os atuais pensadores políticos são testemunhas de como a modernidade passou da imagem de um Demos (o povo) trabalhando sinergicamente em prol de seu próprio aperfeiçoamento para a realidade, imaginada por Orwell, de uma bota esmagando eternamente um rosto humano.
Dito de outro modo, dificilmente é justificável a crença de que a democracia é a profilaxia infalível para os totalitarismos que ainda germinam pelas sociedades ocidentais e que se valem especialmente das paixões de toda sorte de ressentidos. Semelhantemente, tão ingênua quanto a ideia dos neocons de que a difusão das instituições democráticas em países ditatoriais promoveria seu desenvolvimento é a ideia de que a religião é um simples fóssil à deriva nas atuais dinâmicas ou um “vírus” que ameaça a saúde das civilizações.
Portanto, é a essa problemática – em especial, o impasse da legitimidade – que Mark Lilla se dirige em sua obra The Stillborn God: religion, politics and the modern West, publicada originalmente em 2007. Conhecido no Brasil por sua obra A mente imprudente (Editora Record), Lilla, embora descreva-se como liberal (progressista, conforme o jargão americano), conta, segundo o jornal britânico The Guardian, com mais inimigos na esquerda do que propriamente na direita. As razões são – além de suas profundas análises das influências de intelectuais em agendas e crimes políticos (não justificando nem poupando críticas aos ídolos arrivistas da esquerda como Paul de Man e Michel Foucault) – seu reconhecimento da religião, mais especificamente da teologia cristã, na formação do Ocidente moderno, conforme atesta o próprio subtítulo da obra em questão.
Para Lilla, o Ocidente moderno é de certo modo o resultado daquilo que denomina “a grande separação” (que aliás é o título da edição portuguesa da obra): o desmantelamento do “nexo divino”, comum a todas as civilizações, que coere homem, mundo e Deus num todo significativo. Nas suas palavras:
A teologia política é o discurso a respeito da autoridade política fundamentado num nexo divino revelado. É, explícita ou implicitamente, racional. Porém, visto que a teologia política se desenvolve dentre tradições religiosas, ela também se ancora em imagens simples desse nexo, que as tradições posteriormente apresentam a seus fiéis. Todas as religiões, mesmo as mais arcaicas, enfrentam um desafio em comum: tornar as relações entre Deus, homem e mundo simultaneamente inteligíveis para as almas simples e coerentes para as mentes pensantes.
Segundo o cientista político, essa ruptura não se deu propriamente com uma destruição do elemento religioso, mas sim com o descolamento da política em relação à teologia e à cosmologia, três linhas que, até então, balizaram o todo social no Ocidente. A “grande separação”, portanto, é o afastamento deliberadamente posto em marcha pela obra de Thomas Hobbes, que, distanciando-se da tradição teológico-política da Escolástica e da Reforma, “solucionou” o problema do nexo divino ao atribuir à religião uma origem meramente fisiológica. Isto é, Hobbes – que estranhamente tornou-se, tempos depois, benquisto por alguns nomes do liberalismo – inicia seu Leviatã não justificando ou impugnando a imagem à época vigente do nexo divino, mas sim compondo um tratado fisiológico, demonstrando como o homem adquire o conhecimento mediante as sensações. Daí facilmente reduziu a teologia, e mesmo a antropologia, ao fisicalismo mais brutal.
E assim, indo respectivamente de encontro à tradição tomista e agostiniana, Hobbes primeiramente declara que o Leviatã – o Estado ou Civitas – é um homem artificial, criação do próprio homem, munido de uma alma artificial (a soberania); e, em segundo lugar, diz que não há summum bonum (o bem supremo) que direcione a vida do homem, mas somente summum malum (o mal supremo), que é a morte. Nesse sentido, as origens da religião, segundo Hobbes, remontam ao simples temor da finitude; e o medo em relação aos outros é o “medo absoluto”.
Evidentemente nem mesmo naquele momento esse argumento gozava de ineditismo, já que se trata de mera repristinação das ideias epicuristas que, no século XVII, estavam mais uma vez recebendo guarida em vários círculos da intelectualidade europeia.
O problema, porém, ainda de acordo com o raciocínio de Lilla, é o projeto geral de Hobbes e o consequente afastamento da teologia política no pensamento ocidental:
Seu grande tratado Leviatã (1651) contém o mais devastador ataque sofrido pela teologia política cristã e foi o meio pelo qual posteriormente os pensadores modernos viram-se capazes de esquivar-se dela. Antes de Hobbes, aqueles que buscaram refutar essa teologia política continuaram adentraram-na cada vez mais, na proporção mesma em que buscavam solucionar os enigmas de Deus, do homem e do mundo. Hobbes apresentou a saída para isto ao fazer algo bastante engenhoso: ele mudou de assunto. O objetivo de Leviatã é atacar e destruir toda a tradição da teologia política cristã, aquilo que Hobbes chamava de “Reino das Trevas”.
Retomando a antropologia epicurista, Hobbes definia o homem como simples choque de forças físicas, um conjunto movimentos automáticos de reação à pressão dos objetos externos. Ora, se o homem é um tipo de autômato, segue-se que o Leviatã, além de homem artificial ou por esta razão, é também máquina, operando racionalmente para o controle dos impulsos humanos.
É parcialmente essa ideia do Estado que tempos depois culminará na febre de planejamento social do Iluminismo; e, curiosamente, já antes dos philosophes, o filósofo inglês tinha por certo que tanto o pensamento cristão quanto a filosofia clássica (à parte de alguns tratados de geometria da Antiguidade) seriam descartados e tornado prescindíveis com o advento do soberano postulado em seu Leviatã.
Porém, Lilla concede a devida honra a Hobbes em razão de seu entendimento de que as paixões políticas e as paixões religiosas provêm ambas da essência humana: “Ele foi o primeiro pensador a sugerir que o conflito religioso e o conflito político são essencialmente o mesmo conflito, que eles se desenvolvem conjuntamente porque compartilham de idênticas raízes na natureza humana”. E é neste ponto, de acordo com Lilla, que “reside o verdadeiro gênio de Hobbes e sua importância para a vida política moderna”.
Com efeito, num pós-escrito à obra, o cientista político e historiador norte-americano comenta a inabilidade de grande parte da inteligência ocidental, independente do espectro político, em compreender o extremismo islâmico ou mesmo aos conflitos de identidade religiosa na Ásia Menor, por exemplo.
Termos como sharia (a lei islâmica) ou halakha (a lei revelada segundo o judaísmo ortodoxo), apesar de constarem na maioria das análises políticas sobre crises religiosas, ainda são ecos longínquos ou conceitos obscuros para as nossas democracias liberais. E, ao contrário do que é dito, dificilmente essa nossa ignorância será uma bênção.
Para saber mais
“Os Três Poderes”, de Montesquieu
https://www.teatrodomundo.com.br/os-tres-poderes/
https://www.teatrodomundo.com.br/o-contrato-social/
https://www.teatrodomundo.com.br/uma-carta-sobre-a-tolerancia-estado-e-igreja/