por Andrea Faggion
“Fora Todos”, diz o adesivo colado no poste. Os políticos brasileiros nunca formaram uma categoria digna do apreço de seu povo. Porém, nossa histórica recente escancarou de tal maneira a forma como são feitas as salsichas em nosso país que não há mais como manter qualquer aparência de representatividade política. A maioria se tornou apática graças à desesperança em qualquer reforma política feita… pelos políticos que aí estão.
É como se aprendêssemos a tratar a política como uma intempérie qualquer: nós tentamos prever intempéries e nos protegemos delas como nossas capacidades permitem; fugimos delas, quando podemos; mas sabemos que pouco ou nenhum controle exercemos sobre elas. Uma minoria mais aguerrida e otimista cola adesivos em postes, enquanto sonha com um novo arranjo institucional. Ou será que sonham apenas em se livrar de todo e qualquer arranjo institucional? É bem capaz que a última opção seja a verdadeira!
Eu chuto – com base, confesso francamente, em observações pessoais e não em evidências científicas – que, quando um brasileiro dedica parte considerável de seu tempo a pensar sobre a política e até transforma essa reflexão em sua profissão, é bem provável que ele esteja sob algum tipo de influência de Karl Marx. Pois bem, Marx parece-me, justamente, o grande teórico da superação dos arranjos institucionais da política, essa parafernália toda a que costumamos dar o pomposo nome de “Estado”. Para Marx, é o Estado em si – não um governo específico de um dado grupo de políticos transitoriamente no poder – que se configura como instrumento de dominação de um grupo social (no caso, uma classe) sobre outro.
A interpretação do Estado, em Marx, é a denúncia desse mesmo Estado, o ato de desmascarar verdadeiros interesses particulares ocultos por trás de quaisquer pretensões universalistas de justiça institucionalmente organizadas. Não existe, no pensamento marxista, a concepção de uma autoridade legítima a quem, normativamente, devamos obediência. Existe o desvelamento da força que subjuga a quem não a detém. Daí que, primeiro, caiba ao proletariado tomar para si esse poder. Por fim, quando não houver mais classes e, por conseguinte, nem opressores e nem oprimidos, também não haverá mais razão de ser para o Estado, que, afinal, como dito, é o instrumento dos primeiros para exercer seu domínio sobre os últimos.
Ora, a guerra fria acabou, caiu o muro, mas – ainda que eu não tenha análises quantitativas a oferecer ao caro leitor para comprovar a impressão – quer me parecer que a esquerda brasileira continua bastante tributária de Marx. Talvez, no mais das vezes, não se trate de fazer o trabalho intelectual de blindar o sistema marxista contra qualquer possível ameaça externa, para então ler todo e qualquer fenômeno social à luz dele, mas, sim, de se manter fiel à estratégia da narrativa da denúncia do poder. Então, substitui-se a ciência econômica – “a ciência burguesa” – por algum discurso não científico, como, por exemplo, a psicanálise, que permita a construção do mesmo tipo de narrativa que vise expor estruturas de autoridade política, essencial e necessariamente, como estruturas de poder e, por fim, como estruturas de dominação e opressão.
Essas vertentes órfãs do pensamento econômico marxista gostam de se propagandear no mercado de ideias (em livros que, diga-se de passagem, vendem muito bem!) como exemplos de pensamento “crítico”, como se fossem monopolistas do honroso qualificativo. Porém, o termo “crítico” aqui, na verdade, refere-se ao mero uso da narrativa denuncista, que é o que lhes restou de Marx; e não, ao contrário do que se poderia imaginar, de um modo salutar de filosofar, em que se examine constantemente suas próprias evidências, bem como a capacidade de tais evidências para suportar o peso de suas teorias. A comparação com teorias rivais também não é o forte do nosso “pensamento crítico”, afinal, o rival intelectual é sempre aquele cujos interesses escusos devem ser desmascarados. O alvo do “pensamento crítico” não costuma ser o argumento do outro, mas a própria figura do outro. Não se pergunta com que razões o outro fala, mas em nome de quais interdesses.
E o que esses traços que, se eu estiver certa, são tão peculiares a quem pensa a política no Brasil tem a ver com nossa prática política? Penso eu que tenha tudo a ver! Por que fortaleceríamos o Estado de Direito se esse arranjo institucional como tal não é capaz de possuir qualquer valor moral intrínseco, mas apenas enquanto instrumental de dominação? Faz muito mais sentido lutar para assumir o controle dessa poderosa arma. É assim que se usa a denúncia dos interesses do outro, pressupondo a pureza dos interesses próprios.
Por outro lado, só faz sentido que discutamos como o Estado deveria ser constituído, exatamente para não ser aparelhado por grupos transitando pelo poder, se, antes de mais nada, tivéssemos uma teoria não denuncista do Estado em si. Se não temos, o que muitos chamam de “pensamento crítico” acaba se reduzindo ao planejamento estratégico de como fazer para que o próprio grupo consiga aparelhar o Estado. Ou então, se o grupo é mais otimista, trata-se de discutir como afundar de vez o Estado, para fazermos a transição para aquele mundo sem Estado, sim, aquele mesmo mundo com que Marx também sonhou, mas sobre o qual pouco nos explicou. Seja lá como for, com uma intelligentsia assim, fica fácil notar que não é apenas da parte de nossos políticos profissionais que não devemos esperar grandes propostas de reforma política. Pobre país do “pensamento crítico”!