por Eduardo Vicentini de Medeiros
Toda tarefa que impomos a nós mesmos deveria soar como um desafio, uma tentativa de desdobrar-se e expulsar o conformismo e a indulgência que carregamos perto demais do peito. E já que minha frase de abertura saiu com esse clamor incitativo, para não perder o embalo, exponho minhas pretensões. Em uma série de cinco artigos o desafio será, em poucas linhas, tornar claro para mim e, assim espero, para vocês, alguns dos temas que mapeiam a posição singular que Stanley Cavell ocupa na constelação caleidoscópica da filosofia contemporânea.
Começando pelo final, lá pelos idos de Dezembro – época propícia para recapitularmos promessas não cumpridas e renovar nosso ímpeto de continuar a fazê-las – discutiremos nossa insatisfação antiga e necessária com o rumo das sociedades democráticas, sobretudo com o rumo atual da política no Grande Irmão do Norte. Insatisfação e desconforto que serão examinados do ponto de vista do peculiar perfeccionismo moral proposto por Cavell em Conditions Handsome and Unhandsome – The Constitution of Emersonian Perfectionism (1988).
Em Novembro e Outubro, em plena primavera, nossa atenção repousará em duas obras originalíssimas, tanto para a crítica cultural quanto para a filosofia do cinema: Pursuits of Happiness – The Hollywood Comedy of Remarriage (1981) e Contesting Tears: The Hollywood Melodrama of the Unknown Woman (1997). Posso adiantar minha hipótese, a saber, que existe um antes e um depois de Cavell nas relações entre cinema e filosofia. Pensamos o cinema e o próprio cinema pensa por vias inauditas, movidos pelas interpretações de Cavell para clássicos absolutamente populares à sua época e absolutamente fascinantes nos dias que correm como It Happened one Night (1934) de Frank Capra ou Gaslight (1944) de George Cukor.
O acerto de contas com o opus magnum cavelliano deixaremos para Setembro. The Claim of Reason (1979) é osso duro de roer. Sua emblemática frase de abertura é estruturada em um longo parágrafo com oito, você leu bem, oito orações subordinadas que nos sugerem a intrincada trama entre Wittgenstein, ceticismo, moralidade e tragédia que é tecida nos demais parágrafos do livro.
Agosto nos trará arroubos de autoconfiança, identidades imperiais e otimismo irrefreável na nossa capacidade de aperfeiçoamento. Renovará a promessa do Novo Éden que surge no Transcendentalismo do século XIX – ponto de partida e momento de adeus do pensamento autóctone norte-americano. Ponto de partida de sua voz própria, adeus para as tradições enrijecidas da Europa. Ao menos é essa a interpretação que Cavell propõe para as intuições provocadoras de Ralph Waldo Emerson, força motriz do Transcendentalismo ou Renascença Americana. Agosto nos aproximará de um acerto de contas com Emerson, guiados por uma miríade de textos de Cavell.
Percorrido boa parte do périplo, com o mapa em mãos e algum fôlego no bolso, chegaremos onde estamos agora: Julho, mês do bicentenário de Henry David Thoreau, para quem Cavell dedicou algumas de suas horas mais despertas em The Senses of Walden (1972).
Usarei parte das palavras que me restam para dar conta da justa homenagem que precisamos prestar a Thoreau, lendo suas palavras com auxílio de Cavell. Aliás, é um tanto quanto exótico e inesperado que Thoreau tenha sido entronizado como um ícone norte-americano, ícone contracultural por certo, mas ícone. Se temos selo oficial e exposição em Nova York comemorando o bicentenário, camiseta com sua imagem estampada para vender no eBay e lápide gravada onde devotos prestam homenagem, é ícone.
Qualquer adolescente norte-americano alfabetizado já ouviu falar do camarada que passou uma noite na cadeia por se recusar a pagar o único imposto que lhe poderiam cobrar. Recusa que foi uma forma ensaiada de resistência ao governo norte-americano que à época promovia a instituição da escravidão e uma guerra absurda para anexar territórios do México. O relato desta noite na cadeia foi publicado originalmente em 1849 com o título “Resistance to Civil Government”, passou para posteridade como “Desobediência Civil” e foi lido atentamente por ninguém menos que Tolstói, Gandhi e Martin Luther King, Jr.
A desobediência civil é uma forma de exigir o reconhecimento pelo Estado de que alguém está contra o próprio Estado, sujeitando-se, no entanto, às sanções do descumprimento de uma lei particular, mesmo quando tida como injusta por aqueles que a desobedecem voluntariamente. Isso pode significar a prisão pela recusa de pagar a poll tax na Nova Inglaterra do século XIX. Isso pode significar expor-se à violência policial por infringir as leis coloniais de exploração do sal em 1930 na Índia de Gandhi. Isso pode significar o encarceramento de membros do Congresso Nacional Africano em 1952 na África do Sul segregada.
“Desobediência Civil” pode ser visto como a apoteose de uma ideia simples e potencialmente revolucionária da tradição contratualista, a saber, que nosso pertencimento na comunidade política não é um dado natural e sim o resultado de um consentimento. Por vezes até de um consentimento tácito, que pode se romper quando percebemos que o Estado já não é merecedor de nossa adesão.
Quase todos nós, aqueles que apreciam a companhia dos livros, associamos o nome de Thoreau a um exótico cidadão que passou uma temporada “sozinho na mata”, morando numa cabana que “ele mesmo construiu” à margem de um lago numa cidadezinha pacata da Nova Inglaterra. Walden é responsável por essa associação e inscreve seu autor, junto com John Muir, entre os pais fundadores do preservacionismo e do ambientalismo em solo norte-americano, servindo de inspiração para muitos que consideram a reforma em si mesmos como uma tarefa anterior e sabidamente mais árdua do que a reforma de multidões. Para Cavell, Walden é um tratado de educação política, um manual para convivência na polis, mesmo quando parte importante da lição passa pelo exercício do isolamento programado dos demais. Mas, ao contrário da imagem de eremita, Thoreau sabia que é difícil começar sem pedir emprestado, que precisamos ajustar nossa convivência nas bases mais saudáveis que possamos imaginar. Que as palavras de Thoreau e Cavell sejam um empréstimo valoroso nesta direção para quem tiver a disposição da leitura séria!
Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em filosofia pela UFRGS e pós-doutorando na Unisinos.
Leia os artigos da série Périplo com Stanley Cavell: