por Eduardo Vicentini de Medeiros
O ceticismo filosófico desperta sentimentos equívocos. Visto de fora é vizinho da parvoíce, mas quando exploramos suas entranhas argumentativas, é quase irresistível. Este sentimento dúbio – um adjetivo que capta com propriedade nossa perplexidade – é encenado em uma passagem justamente memorável da primeira das Meditações de Descartes: “E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos. Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes, menos verossímeis que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito?”
O que era considerado insanidade veste-se ligeiro com as cores da plausibilidade no espaço de poucas frases. Este é um dos méritos retóricos do argumento do sonho, que aparece no percurso do exercitante das Meditações naquele insidioso ‘todavia’ e coloca as crenças perceptuais na existência do mundo exterior na categoria das coisas duvidosas. Que estas mãos e que este corpo sejam meus já não é garantido. Não por algum efeito dos vapores malignos da bile, mas pela calma consideração de que nossos critérios para distinguir sono e vigília são falíveis, como já argumentava, supostamente, o velho Pirro de Élis.
Se não bastasse insuflar a dúvida sobre a existência do meu corpo e, no limite, do mundo exterior, o ceticismo erode igualmente a certeza sobre a existência de outras mentes. Lá pelas tantas o personagem da trama das Meditações olha pela janela o movimento de transeuntes e já não sabe se o que vê são homens ou “chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas.”
Uma história da filosofia moderna poderia ser escrita tendo como fio condutor as diferentes saídas do labirinto argumentativo do início das Meditações, ou, para dizer de modo mais direto, das diferentes saídas do estado da dúvida cética hiperbólica.
Um batalhão de pensadores modernos e, em grande medida, a filosofia como um todo, não depositam esperanças no percurso pirrônico que levaria da dúvida à tranquilidade, ou, para dizer de modo mais pomposo, da epoché à ataraxia. O soar das trombetas para o acerto de contas com os céticos de qualquer estirpe é antes um chamado à refutá-los. Das Meditações até as Investigações Filosóficas de Wittgenstein, passando pela Refutação do Idealismo da Crítica da Razão Pura de Kant e pela Prova do Mundo Exterior de Moore, o calibre do armamento utilizado varia enormemente. Mas o inimigo é sempre o mesmo.
Uma das vias de contramão assumidas por Cavell em The Claim of Reason (1979) é sugerir que há uma verdade no ceticismo, a saber, que a insatisfação do cético com a falibilidade dos critérios que governam os conceitos que utilizamos na linguagem é uma das marcas de nossa finitude.
Seguindo a leitura de Cavell, antes de reagrupar forças para o próximo ataque ao ceticismo, seria mais prudente e proveitoso recuperar algumas das suas lições contra o pano de fundo das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
Os critérios que utilizamos para coordenar nosso uso da linguagem são compartilhados em formas de vida. Formas de vida, por sua vez, possuem uma organicidade e fluidez que não excluem a possibilidade de projeções equivocadas, de acordos e desacordos mutáveis, de incompreensões e estranhamentos mútuos. No limite, este estranhamento pode assumir uma mistura perigosa de ceticismo sobre outras mentes e desconsideração moral, que é o não reconhecimento da humanidade do outro, daquele que nos é alheio. Quando isso acontece, o ceticismo sobre outras mentes, esta aparente ficção de filósofo, se transforma em tragédia.
Este último parágrafo, aliás, é uma tentativa tímida e apressada de dar conta do subtítulo do magnum opus cavelliano: “Wittgenstein, Ceticismo, Moralidade e Tragédia”, indicando sumariamente como estes temas estão conectados em The Claim of Reason.
Cavell igualmente transitou na contramão por ter assumido o risco de escrever filosofia como se a divisão entre analíticos e continentais não existisse. Ao pé de letra, esta pretensa fronteira não existia no cenário da filosofia praticada no final do século XIX e, felizmente, perde a cada dia mais nitidez na medida em que nos aproximamos da segunda metade do XXI. No entanto, entre o começo da década de 60 e o final dos 70 do século passado, no período de gestação, amadurecimento e publicação da obra que aqui nos interessa, a filosofia norte-americana processava o impacto inicial do positivismo lógico nos anos 30 e 40, bem como a recepção das obras de Wittgenstein e Austin, na segunda metade dos anos 50.
Em outras palavras, Cavell escreve The Claim of Reason no exato momento em que, para a historiografia oficial, a divisão entre filosofia analítica e continental é transplantada das margens do Canal da Mancha para o outro lado do Atlântico. Se hoje caminhamos a passos largos para a dissolução desta fronteira, este não era o clima de opinião em 1961 quando a tese The Claim to Rationality (que deu origem ao livro publicado em 1979) foi depositada na Biblioteca Widener de Harvard.
O último trajeto na contramão que gostaria de comentar é a tentativa de aproximação entre a escrita da filosofia e a escrita da literatura. Tentativa que dá o leitmotiv do último capítulo de The Claim of Reason. Se a tragédia é uma transfiguração do ceticismo sobre outras mentes, a imaginação literária teria muito o que nos dizer. E não é por outro motivo que Otelo de Shakespeare é convidado de honra no capítulo final que leva o sugestivo título de Skepticism and the Problem of Others. Mas o que me impressiona nesta aproximação cavelliana entre filosofia e literatura não é seu caráter extemporâneo para o ambiente acadêmico norte-americano, não é a originalidade de suas leituras de Shakespeare, nem mesmo o ineditismo de encontrar menções a Blake, Wordsworth, Yeats, Thoreau, Emerson, Tolstói, Stendhal, Sófocles, Mary Shelley, Sade, Hemingway, Kafka, Dickens, Coleridge, Kleist ou Dostoievski em um livro que pretendeu apresentar uma leitura das Investigações Filosóficas de Wittgenstein.
O que de fato me impressiona é o fôlego renovado que todos estes textos literários ganham a partir das conexões vislumbradas por Cavell. Não conheço outro livro escrito nas vizinhanças da filosofia do século XX que tenha apontado com mais vigor que The Claim of Reason para a dimensão moral e epistemológica da literatura de ficção. Certamente é um tema controverso se ao ler ficção, podemos aprender sobre o mundo e as pessoas que o habitam. O que não é controverso é o protagonismo de Cavell na reapresentação de uma mais uma solução para o velho problema das relações conflituosas entre o filósofo e o poeta. Se esta não configura uma boa razão para ler The Claim of Reason nos dias que correm (dias onde a imaginação artística está, mais uma vez, tristemente, sitiada), eu não saberia indicar outra mais urgente.
Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em filosofia pela UFRGS e pós-doutorando na Unisinos.
Leia os artigos desta série:
Periplo com Stanley Cavell – parte 1
Periplo com Stanley Cavell – parte 2
Periplo com Stanley Cavell – parte 4