por Eduardo Vicentini de Medeiros
Um dos cavalos de batalha da filosofia de Stanley Cavell é a importância dada aos temas da vida ordinária, em especial na descrição de nosso trato, no mais das vezes civilizado, com outras pessoas. A relação profunda que Cavell vislumbra entre temas de Austin e Wittgenstein, por um lado e Emerson e Thoreau por outro, nos oferecem uma visão da atividade filosófica como uma espécie de atenção ao que está ao nosso redor. Na introdução de Pursuits of Happiness, seu livro dedicado às Comédias do Recasamento, comentando uma famosa passagem do ensaio de Emerson “The American Scholar”, Cavell escreve:
“Algo do que Emerson quer dizer com o comum, o familiar e o baixo é algo que eu expressei (alegando a herança de preocupações comuns a J.L. Austin e Wittgenstein) em minhas várias defesas ao longo dos anos dos procedimentos em filosofia a partir da linguagem ordinária, a partir das palavras da vida de todos os dias.”
O que poderia nos ser mais próximo do que as diferentes conexões que construímos em sociedade? Quando Cavell isola o gênero das Comédias do Recasamento, marcando as características que propriamente o tornam um gênero e não uma mera coleção acidental de filmes realizados nas décadas de 30 e 40, o que ele está fazendo é chamar nossa atenção para um tipo particular de relação que mantemos ou podemos manter com outros, a saber, a relação conjugal. O interesse desta investigação parece estar naquilo que podemos aprender sobre a moralidade com os casais representados nos filmes que, emblematicamente, formatam o gênero proposto por Cavell: The Lady Eve (1941) de Preston Sturges, It Happened One Night (1934) de Frank Capra, Bringing Up Baby (1938) e His Girl Friday (1940) de Howard Hanks, The Philadelphia Story (1940) e Adam’s Rib (1949) de George Cukor e The Awful Truth (1937) de Leo McCarey.
No gênero proposto, o recasamento é uma alegoria do recomeço e o casamento é uma imagem de nossa aceitação do outro. A convivência do par romântico, antes do clímax da aceitação mútua, convivência no mais das vezes acidentada, é uma demonstração das dificuldades para que essa aceitação ocorra – como exemplificado na recusa inicial de Peter (Clark Gable) quando Ellie (Claudette Colbert) se confessa apaixonada em It Happened One Night.
Cavell deixa claro que “sem o modo de percepção inspirado em Emerson (e Thoreau) pelo dia a dia, o próximo, o baixo, o familiar”, acabará nos escapando tanto a poesia dos filmes quanto a própria reflexão filosófica naquilo que ela tem de mais característico: oferecer exemplos à nossa reflexão. Na filosofia moral, apropriar-se das relações entre as pessoas como exemplos da instanciação do que é a vida moral não é nenhuma novidade. George E. Moore, no clássico Principia Ethica, fala da relação amorosa como uma das formas de mostrar o que é moralidade (dado que o conceito de “bom”, segundo Moore, não é analisável, tudo o que podemos fazer é dar exemplos do que que todos concordam ser bom – e a relação amorosa cumpre este papel). A amizade, em toda tradição do pensamento ético, sempre foi trazida à baila quando se fazia necessário instanciar a virtude ou encarnar valores que tentava-se explicar. Cavell trata explicitamente o casamento como um tipo de amizade. Podemos citar várias razões para esta assimilação. Em especial um ponto merece destaque: a reflexão moral sobre a amizade parece pressupor uma tese anti-cartesiana (e anti-agostiniana) segundo a qual conhecemos a nós mesmos através de outras pessoas. Uma alegoria desta tese aparece em “Primeiro Alcebíades”, onde o olho vê melhor a si mesmo pelo reflexo no olho de outra pessoa. Imagem que, segundo o erudito estudo de Richard Sorabji “Self – Ancient and Modern insights about individuality, Life, and Death” influenciou passagens de Aristóteles tanto na Ética a Eudemo quanto na Ética a Nicômaco que tratam o conhecimento do valor ou do erro nas ações de nossos amigos como mais fáceis de reconhecer do que o valor e erro em nossas próprias ações.
Partindo desta constatação, o prazer da amizade é visto como uma consequência do conhecimento de nós mesmos proporcionado por esta amizade. Parece estar aqui a raiz da ideia de que a perspectiva moral legítima é sempre uma perspectiva de terceira pessoa. Ideia recorrente, presente de diferentes maneiras em Platão, Aristóteles, Hume, Kant ou Adam Smith. E, porque não dizer, presente no perfeccionismo moral que Cavell vislumbra ao longo da história da filosofia, da literatura e também do cinema.
Ver nos outros algo mais do que “chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas” é o começo de nossa educação moral. O tema de reconhecimento do outro como um igual é um dos pilares da reflexão de Cavell sobre o casamento.
Todos nós conhecemos bem uma variedade incontável de enredos de filmes, peças e romances que nos falam de toda sorte de dificuldades superadas por um par romântico para, finalmente, depois de mil e uma reviravoltas, casarem. A novidade do gênero das Comédias do Recasamento não é a junção, casamento ou união do par romântico. A novidade é que eles recuperam o laço perdido, o que é intrigante é que eles ficam juntos, de novo, mais uma vez, depois de um rompimento. O divórcio ou a separação são realidades nestes contextos dramáticos. O que é intrigante no gênero proposto por Cavell é que tenhamos não um ou dois, mas uma série de filmes onde o enredo fala do recasamento, da reunião, da resolução para retornar e consertar laços rompidos. Agora, como o recasamento é reconquistado? Esta é a parte realmente sensacional do gênero: o recasamento é reconquistado em cenas de diálogos intermináveis, cheios de humor, duplo sentido, mordacidade, ironia, sátira e zombaria. Diálogos de igualdade entre uma mulher e um homem, diálogos que são uma celebração do som da fala, dos timbres de voz, da ruidosa interação entre sentenças e da velocidade espantosa com que estes homens e mulheres extraem as consequências do que é dito e ouvido. Se vocês querem ter uma boa ideia disso, tentem acompanhar os diálogos iniciais entre Walter Burns (Cary Grant) e Hildy Johnson (Rosalind Russell) em His Girl Friday. É estonteante.
É por meio destas cenas de conversação exuberante que o recasamento surge na trama desses filmes. Depois das realizações fabulosas das comédias do cinema mudo, a apoteose da fala, a exaltação da voz.
Assistir aos filmes do gênero com o livro de Cavell como guia é uma experiência única. Talvez não seja exagero dizer que é um dos momentos mais emocionantes da filosofia contemporânea acompanhar a densidade das leituras de Cavell para comédias que, aparentemente, não tinham nenhuma pretensão intelectualizada, que estavam ali apenas para retratar uma das mais familiares experiências humanas, as idas e voltas de um casamento. Mas é exatamente na atenção para o familiar, para o comezinho, para o vulgar, que reside o charme da prosa filosófica de Cavell. Se vocês ainda não acreditam no que estou dizendo, deixo aqui uma provocação: assistam It Happened One Night, prestem especial atenção na cena onde Peter estende uma coberta, dividindo o espaço entre a sua cama e a cama de Ellie. Depois leiam o comentário de Cavell para esta cena no capítulo ‘Conhecimento como transgressão’ de Pursuits of Happiness. Feito isso, voltamos a falar. Se vocês não ficarem de queixo caído, eu vou ficar.
Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em filosofia pela UFRGS e pós-doutorando na Unisinos.
Leia os artigos desta série:
Periplo com Stanley Cavell – parte 1
Periplo com Stanley Cavell – parte 2
Periplo com Stanley Cavell – parte 3