Périplo com Stanley Cavell, parte VI: in memoriam.

por Eduardo Vicentini Medeiros

Em 11 de Julho de 2017 prometi aos meus possíveis leitores do Estado da Arte que escreveria uma série de cinco artigos sobre Stanley Cavell. Cumpri o prometido. Escrevi, e foram devidamente publicados, os cinco artigos. Mas cometi um erro básico de aritmética: o elenco de temas que sugeri no primeiro artigo da série, que deveriam ser distribuídos entre os meses de Julho a Dezembro do ano passado, só teria sido integralmente cumprido se eu escrevesse seis e não cinco artigos. Ficou acidentalmente de fora o que considero a obra mais exigente de Cavell, Conditions Handsome and Unhandsome – The Constitution of Emersonian Perfectionism, publicada em 1990. 

Os meses foram passando, outros compromissos e prazos entrando na agenda e vez por outra ecoava na minha cabeça um dito popular que John Langshaw Austin tornou ainda mais célebre na filosofia da linguagem ordinária: our word is our bond. Seguidamente me vinha a dúvida: e se houver pelo menos um leitor, atento e caridoso, que tenha percebido a ausência e, por educação ou esquecimento, não tenha protestado? Confesso que essa possibilidade, mesmo que remota, me incomodava um tanto. Mas outros meses foram passando, outros compromissos e prazos continuaram entrando na agenda, até que recebo a tristíssima notícia da morte de Cavell no último dia 20 e decidi que tínhamos que acertar as contas com este improvável leitor.  

Promessas não cumpridas e erros não reconhecidos criam buracos no fino tecido da confiança. Afinal, “our word is our bond”, ‘falou tá falado, “promessa é dívida” são ditos preciosos em Oxford, Boston, São Paulo ou Porto Alegre. Devemos aprender a ouvir o que estes ditos querem nos dizer em praticamente quaisquer circunstâncias. Sendo assim, cumprir uma promessa esquecida será meu modo de homenagear Stanley Cavell. 

Uma das contribuições mais originais de Cavell para a filosofia contemporânea é a sua tentativa de capturar um modo peculiar de pensar a agência moral, isto é, um modo de pensar a vida digna de ser vivida e as instituições que possam garantir essa dignidade. Ele deu a este modo de pensar o nome de Perfeccionismo Emersoniano. Não se trata de uma teoria normativa sobre o bem, ou mesmo de um critério de decisão para a ação correta. Antes, é uma perspectiva sobre a agência moral que coloca o foco na capacidade de transformação dos agentes e das instituições em que estes agentes estão inseridos. 

Para alguns, o fato do Perfeccionismo Emersoniano não se apresentar como uma teoria poderia ser considerado uma fraqueza. Do meu modo de ver as coisas, isso parece ser, ao contrário, uma qualidade. Possivelmente mais do que uma qualidade, uma necessidade para o pensamento moral. Porque deveríamos exigir do pensamento moral que ele se comunique através de uma teoria filosófica? Será que o pensamento moral deixa-se circunscrever nos limites de um argumento? A decisão sobre qual vida vale a pena ser vivida é um processo que envolve premissas e conclusões? Todo pensamento moral é, ipso facto, um encadeamento de premissas e conclusões? Quando consideramos seriamente este conjunto de perguntas, algumas das pressuposições metodológicas, tanto da deontologia quando do consequencialismo, começam a soçobrar. 

Este conjunto de perguntas também nos fornece algumas pistas sobre o porquê da diversidade dos textos que compõem o rico mosaico do Perfeccionismo Emersoniano, ultrapassando sem cerimônia os limites porosos da literatura, do teatro, do cinema e da filosofia. É possível encontrar elementos do Perfeccionismo Emersoniano, por exemplo, na República de Platão, na Ética a Nicômaco de Aristóteles, nas Confissões de Santo Agostinho, nas Metamorfoses de Ovídio, na Divina Comédia de Dante, nos Ensaios de Montaigne, em A Tempestade de Shakespeare, em O Idiota de Dostoiévski, em Casa de Bonecas de Ibsen, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant, em Fim de Partida de Beckett, no Fausto de Goethe, em It Happened One Night de Capra, em Bringing Up Baby de Hawks ou Letter from an Unknown Woman de Ophuls. Ou seja, o fôlego de Cavell para tentar identificar elementos perfeccionistas é amplo. O que une textos, estilos e formas narrativas tão diversas? Cavell não oferece uma resposta pois esta pergunta não cumpre nenhum papel fundamental no que ele pretende. Mas vou arriscar um palpite. O que dá uma certa unidade conceitual para o Perfeccionismo Emersoniano está presente, como não poderia deixar de ser, em uma passagem exaustivamente explorada por Cavell, do ensaio História de Emerson: 

“Temos o mesmo interesse na condição e no caráter. Honramos os ricos porque eles têm exteriormente a liberdade, o poder e graça que sentimos nos serem próprios. Assim, tudo que é dito do homem sábio pelos Estóicos, Orientais ou pelo moderno ensaísta, descreve a cada leitor sua própria ideia, descreve seu inatingido mas atingível eu. Toda literatura escreve o caráter do homem sábio. Livros, monumentos, figuras, conversas, são retratos nos quais ele encontra os traços que está formando.” 

Convido vocês a imaginar o sujeito moral perfeccionista transitando entre o “eu inatingido” e o “eu atingível”, transitando, portanto entre uma possibilidade ainda não realizada e uma possibilidade por realizar. Não concebemos a mudança sem a noção de possibilidade. O horizonte do possível é o horizonte da agência moral. Quando pensamos sobre o que poderíamos ter feito mas não fizemos, estamos projetando possibilidades. Quando escolhemos entre cursos de ação alternativos, estamos explorando possibilidades.  

Para ilustrar esta capacidade de combinar transformações e possibilidades, na introdução de Conditions Handsome and Unhandsome, Cavell convoca as seguintes palavras de Tocqueville – o primeiro dos observadores transatlânticos a descrever a psicologia moral dos cidadãos da incipiente democracia do nosso Grande Irmão do Norte: 

“[Os anglo-americanos] têm viva fé na perfectibilidade humana; julgam que a difusão das luzes deve necessariamente produzir resultados úteis e a ignorância, trazer efeitos funestos. Todos consideram a sociedade um corpo em progresso, a humanidade, um quadro mutável, em que nada é fixo para sempre, nem que deve sê-lo; e admitem que o que lhes parece bom hoje pode ser substituído amanhã pelo melhor que ainda se esconde.”

Nos termos do Perfeccionismo Emersoniano que Cavell entrevê, essa disposição para a mudança, esse flerte irrestrito com a perfectibilidade humana, é mediado pela vergonha com a nossa situação presente. Trocar a vergonha pela possibilidade da mudança, de si mesmo e das instituições, é o motor da agência moral no Perfeccionismo Emersoniano. É lamentável que pessoas como Cavell nos faltem no exato momento em que a capacidade de envergonharmo-nos parece anestesiada ou não ter a força suficiente para gerar a transformação que poderá, talvez, nos redimir. 

Um menino é fatalmente baleado a caminho da escola no Complexo da Maré. Crianças são brutalmente separadas de seus pais em Trump Camps fronteiriços. O coração engasga e a vergonha não é suficiente para captar o horror. É lamentável que Cavell nos deixe neste momento tão delicado, exatamente um dia após os Estados Unidos anunciarem sua saída do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A “difusão das luzes” na América perde um poderoso farol. Muito pouco do que presenciamos parece bom o suficiente nos dias que correm e, paradoxalmente, o que poderia advir de melhor parece estar encalhado no passado.

Nunca a América foi tão generosa na produção de possibilidades para a vida boa do que nos meados do século XIX. A explosão sociocultural da Renascença Americana ainda se faz sentir como possibilidades não realizadas mas, assim espero, ainda realizáveis. Quando lemos Emerson e Thoreau, ambos ilustres representantes do cânone moral cavelliano, temos a exata dimensão da promessa ainda não cumprida e cada vez mais distante de ser cumprida, que a América fez às democracias do mundo. Uma promessa de “viva fé na perfectibilidade humana”. Agora, com a morte de Cavell, outra voz que poderia nos lembrar dessa doce promessa não cuprida e quase esquecida também se cala. Sua palavra falada, esse recurso instintivo da língua materna, não estará presente. Resta, e isso já é muito, sua palavra escrita, cristalizada na língua paterna, em sua vasta obra e larga influência. Minha homenagem não poderia ser outra: amanhã e no dia depois de amanhã, os livros de Cavell estarão sempre ao alcance das minhas mãos. Espero que esta série de artigos para o Estado da Arte, agora finalmente completa, convença outros a fazer o mesmo.  

Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em filosofia pela UFRGS e pesquisador pós-doc na Unisinos.

Leia os artigos desta série:

Periplo com Stanley Cavell – parte 1

Periplo com Stanley Cavell – parte 2

Periplo com Stanley Cavell – parte 3

Periplo com Stanley Cavell – parte 4

Periplo com Stanley Cavell – parte 5

COMPARTILHE: