Ceticismo

Entrevista com Adriano Machado Ribeiro, Luiz Eva e Roberto Bolzani para a rádio Estado da Arte em parceria com o Instituto CPFL.

Em mais uma entrevista para a série Café Filosófico, o Estado da Arte recebe Adriano Machado Ribeiro, professor de língua e literatura grega da Universidade de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos; Luiz Eva, professor de filosofia da Universidade Federal do ABC e autor de Ceticismo e Subjetividade em Montaigne; Roberto Bolzani, professor de História da Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de Acadêmicos versus Pirrônicos.

Em sua palestra para o ciclo de abertura (“Novos Horizontes da Responsabilidade”) do ano dedicado pelo Café Filosófico à celebração e à investigação do tema da “Responsabilidade”, o filósofo Franklin Leopoldo Silva alertava para

a necessidade atual de repensar a ética, pondo em questão o modelo subjetivista e individualista que triunfou na modernidade, e encaminhando a possibilidade de uma relação ética pautada no outro, por via da responsabilidade e da solidariedade. A prática moral e política destes valores deverá modificar o perfil das relações humanas e, talvez, diminuir o grau de barbárie naturalizada como violência, discriminação e injustiça.

“Repensar” não só a ética estabelecida, mas também a teorética e a estética, sempre foi a motivação crucial do ceticismo desde as suas raízes, na Grécia há 2.500 anos, até os seus frutos na época antiga e moderna até os nossos dias. E o resultado natural desse “repensar”, sempre que os argumentos céticos foram enfrentados até as últimas consequências, foi o “modificar” o perfil das relações humanas em cada tempo. A dureza inevitável com que estes argumentos atingem nossas mais caras convicções, são a maior prova de sua eficácia. É justamente no momento em que o ceticismo nos “humilha” em nossas certezas, que ele nos dá o seu fruto mais valioso – porventura amargo, mas rico em proteínas –, a saber: a “humildade”.

Basta pensar na importância do ceticismo para o desenvolvimento das ciências e do valor social mais genuíno de nossa era: a tolerância. Hoje, dificilmente conseguimos reconstituir mentalmente o grau de ceticismo necessário a certos astrônomos como Copérnico, Kepler e Galileu para questionar não só milhares de anos de sólidos cálculos astronômicos, mas o dado mais patente e, literalmente, claro oferecido aos nossos sentidos: o sol que gira todos os dias sobre a nossa terra.

Na mesma época, enquanto a Europa descobria um Novo Mundo e a Cristandade se despedaçava em guerras religiosas após séculos de triunfalismo em torno ao papado, quão importante não foi o trabalho intermitente de filósofos como Montaigne, Descartes, Pierre Bayle, Pascal ou David Hume, entre tantos, para relativizar, através de estratégias céticas emprestadas aos antigos, certas crenças aparentemente (e só aparentemente) indisputáveis e acalmar os ânimos de parte a parte, até se encontrar o espaço de convivência e as esferas de autonomia entre Estado e Igreja? E quão importante não é para nós, hoje, o escrutínio cético de nossas convicções para fazer prosperar o que há de mais valioso no chamado “multi-culturalismo”.

Algo disso o filósofo José Artur Gianotti tinha com toda certeza em mente ao elaborar o seu ciclo de palestras “Filosofia e Saber”. Como explica ele em sua introdução:

A apresentação parte do pensamento grego clássico e o relaciona diretamente à cultura filosófica do século XX, quando Heidegger e Wittgenstein enfrentaram a crise do discurso filosófico tradicional, que deslocou o tratamento da relação entre corpo, pensamento e linguagem.

E certamente também, foi ao arsenal cético, mais do que qualquer outro, que o filósofo Luiz Felipe Pondé recorreu ao preparar a sua artilharia contra as utopias modernas (e seu inevitável corolário, os totalitarismos) no ciclo organizado por ele sob o nome sugestivo de “Os Fantasmas da Perfeição”. Conforme seu diagnóstico:

Vivemos em tempos de crise. A humanidade é uma espécie, como todas, adaptada a um meio ambiente quase sempre hostil: sofrimentos, violência, morte. Habitamos, entretanto, um tipo de meio ambiente distinto das demais espécies: o espaço interior, a alma, a mente, o espírito. Vivemos expectativas, fracassos, inquietações, e a consciência da dor. Os últimos séculos estabeleceram formas novas desses velhos dramas: sonhos políticos, técnicos, científicos, psicológicos e morais, todos marcados pela tentativa de interromper um destino infeliz aparentemente inexorável. 

Para nos despertar desses “sonhos” a humanidade ainda não inventou um instrumento mais salutar do que o ceticismo. Ainda que caiba ao próprio ceticismo questionar igualmente a inexorabilidade desse “destino infeliz” – como fica claro ao longo das palestras organizadas por Pondé. É justamente nos impedindo de nos instalar comodamente tanto numa certeza “pessimista” (segundo a qual nada podemos fazer, porque tudo será inexoravelmente pior do que foi) quanto “otimista” (segundo a qual nada precisamos fazer, pois tudo será inexoravelmente melhor do que foi) que o ceticismo cumpre seu papel de nos reinserir, dia após dia, no drama da história, tanto pessoal quanto coletiva, e garantir a sua marcha rumo a um desfecho que, sendo dramático, não está decidido de antemão. Em outras palavras, se o ceticismo não pode (e nem se propõe a) determinar o escopo da nossa responsabilidade, seja em relação à nossa própria vida quanto às dos nossos próximos (contando entre eles não só os vivos, quanto os mortos e os que estão por nascer, segundo a indefectível definição de “sociedade” de Edmund Burke), ele é seguramente o seu melhor combustível.

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