Populismo e demagogia na era da democracia digital

O que a democracia de redes sociais, defendida com entusiasmo pelo clã Bolsonaro, representa politicamente?

por Eduardo Wolf

Em 2016, duas grandes decisões políticas abalaram as crenças e instituições do consenso liberal que se consolidaram gradativamente no período posterior à II Guerra Mundial e, sobretudo, ao fim da Guerra Fria. A vitória do Brexit no referendo que decidiria a permanência do Reino Unido na União Europeia e a eleição do nada convencional candidato pelo Partido Republicano, Donald Trump, para a presidência dos Estados Unidos têm sido associados com frequência constante e rigor oscilante a outros tantos governos e movimentos políticos denominados “populistas”, como ocorre com os governos de países como Polônia, Hungria e, mais recentemente, Itália. O fenômeno é dos mais complexos de nosso tempo, sem dúvida, e em meio às doses elevadas de militância ideológica travestida de análise política, já se vai formando um considerável e consistente conjunto de interpretações ensaísticas  — de Anne Applebaum a Francis Fukuyama, poucos não se pronunciaram sobre o tema — que ainda vão render muito.

Chama atenção, entre essas análises, um conjunto de ensaios publicados pela revista conservadora americana New Criterion ao longo de 2016 e 2017, posteriormente reunidos em livro, Vox Populi – The Perils and Promisses of Populism (Encounter Books, 2017). A dicção americana é bastante distinta da europeia no tratamento dessas questões, o que se percebe sobretudo na análise feita por Roger Scruton em sua contribuição para o tema. O filósofo britânico, autor de obra vasta consagrada ao tema do conservadorismo político, assina o ensaio “Representation and the People – on the relationship between government and the governed“, cujo foco é a relação do tema da identidade (especialmente nacional) com o populismo como forma de se fazer política. Em face dos intensos desdobramentos da vitória do Brexit e de Trump, assim escrevia Scruton em março de 2017:

“Populistas são políticos que apelam diretamente ao povo quando deveriam recorrer ao processo político [i.e., institucional] e que estão preparados para deixar de lado procedimentos e cuidados legais quando a a maré da opinião pública está a seu favor. Como Donald Trump, populistas podem vencer eleições. Como Marine Le Pen na França e Geert Wilders na Holanda, eles podem perturbar consensos governamentais duradouros. Ou, como Nigel Farage e os brexiteers no Reino Unido, eles podem usar o voto popular para derrotar todas as expectativas e previsões da classe política. Todos têm, contudo, uma coisa em comum, qual seja, a pronta disposição para dar voz às paixões que não são nem reconhecidas, nem mencionadas no curso da política normal. E, por essa razão, não são democratas, mas demagogos — não são políticos que lideram e governam mediante o recurso a argumentos, mas sim agitadores que excitam os sentimentos irrefletidos da massa”

Nesta caracterização nada elogiosa a Trump, aos ultranacionalistas defensores do Brexit e aos demais representantes da extrema-direita europeia, Roger Scruton faz mais do que distanciar a posição do conservadorismo esclarecido dos voos políticos do populismo de direita que busca compreender. Para assim caracterizá-los, Scruton se vale de três características indissociáveis do “curso da política normal”, constitutivas que são da própria noção de governo representativo, esse pilar do liberalismo político desde suas mais remotas origens.

O filósofo britânico Roger Scruton

A política normal, fora de seus surtos populistas, requer processos políticos institucionalizados, procedimentos estáveis e normas legais respeitadas. Cada uma dessas características é essencial para os filtros que a política, em uma democracia moderna, instala e opera para o seu bom funcionamento. É por isso que as instituições do governo representativo são, em tudo, opostas aos furores demagógicos, que nelas vêem apenas conspirações inimigas, entraves de opositores e obstáculos formais a serem removidos do caminho.

O populismo, no lugar dessas características definidoras do governo representativo, constitucional, democrático e liberal, instaura a supremacia da relação direta com o povo. Em vez de processos políticos, lideranças populistas são a “vontade popular encarnada”. Em vez de mediações institucionais, a realização imediata da natureza e dos desígnios do povo na figura do líder populista. Em vez da política, demagogia.

Quando Scruton define aquele punhado de políticos populistas, de Trump a Farage, como “demagogos que excitam os sentimentos irrefletidos da massa”, é importante reconhecer que não se trata apenas da manipulação emocional que o político populista classicamente faz, instigando desconfianças paranoides, criando inimigos imaginários, manipulando necessidades genuínas e carências bem reais em favor de seu projeto de poder. É preciso compreender que a razão pela qual tal manipulação é possível é, justamente, o descrédito das instituições e dos processos políticos que, em estratégia cuidadosa para entronizar a relação direta do demagogo com o povo, os movimentos populistas colocam em ação.

Não é novo, e muito menos é exclusividade da direita populista, o gosto pela relação direta com o povo. A esquerda tradicionalmente nomeia tal vínculo por “democracia direta”, enche-o de glamour e propagandeia aos quatro ventos sua superioridade sobre a democracia liberal, com seu governo representativo. São novos, no entanto, a roupagem e o instrumental dos novos populistas encantados com a democracia direta: a internet, o smartphone e as redes sociais. Em suma, aquilo que alguns especialistas e entusiastas já estão chamando, há alguns anos, de DDD: Democracia Direta Digital (veja-se, por exemplo, este conteúdo patrocinado pela IBM na Atlantic).

Sem entrar nos hoje já minuciosos dados acerca das manipulações de eleitores tanto na campanha de Donald Trump quanto no Brexit, Roger Scruton assinalou com grande precisão o papel dessa democracia digital no novo desenho da política, sobretudo nos últimos anos: agora, sem filtros, e sobretudo graças às redes sociais, “todo indivíduo, e todo o tipo de opinião, tem uma chance igual de ser ouvido”, frequentemente dando origem ao que Scruton chama de “webiscito”, o plebiscito digital. No mundo da democracia direta digital, com seus “webiscitos” e tudo o mais que lhe acompanha, as decisões são tomadas  no calor do momento por pessoas que jamais se detiveram sobre os assuntos em pauta. Mais importante que tudo isso: o mundo da democracia direta digital, assim como o de sua versão analógica, esvazia, de uma só vez, tanto as responsabilidades daqueles que deveriam se ocupar de decisões políticas na condição de representantes, quanto os processos mediadores que estabilizam a democracia e protegem-na das arrebatadoras e fugazes emoções manipuladas por demagogos.

Se é verdade que a democracia digital direta pode trazer impactantes transformações positivas ao nosso processo político, como querem seus estudiosos e defensores de primeira hora — em geral à esquerda no espectro político –, é algo que não vou examinar aqui. Deixo aberta, é claro, a possibilidade de que as queixas de Roger Scruton sejam, nesse sentido, convencionais, conservadoras, excessivamente apegadas às formas do governo representativo — aquela herança de mais de quatro séculos de liberalismo político que nos deu democracias liberais constitucionais estáveis, livres e prósperas. Pode ser.

Mas isto mesmo é que é espantoso em nosso atual cenário político. Afinal, como é possível, sendo as coisas como as descrevi acima, que justamente conservadores e demais defensores do legado do liberalismo político — não raro, gente capaz de reações fruibundas ante a mínima menção de “democracia direta” em qualquer lábio ou pena de esquerda — estejam tão entusiasmados com a manipulação demagógica, o ataque às instituições e aos filtros políticos e, obviamente, com a “democracia direta digital”, agora que Trump, os populistas europeus e o presidente Jair Bolsonaro no Brasil são seus militantes e beneficiários?

Como muito bem definiu Scruton,

“a democracia representativa injeta hesitação, circunspecção e accountability ao coração do governo — qualidades que não desempenham papel algum nas emoções da massa. O governo representativo, por esta razão, é infinitamente preferível aos apelos diretos ao povo, seja por referendos, plebiscitos ou webiscitos”.

Live do presidente-eleito Jair Bolsonaro.

Tendo declarado explicitamente, por ocasião de sua diplomação, que “o poder popular não precisa mais de intermediação”, uma vez que as redes sociais permitem a relação direta do governante com os governados, o presidente Jair Bolsonaro não seria um típico exemplar dessa demagogia tão veementemente denunciada por Roger Scruton? Não estariam, então, as pessoas que aplaudem essa nova modalidade de democracia direta digital de direita —  o governo das redes sociais, com suas políticas públicas de Facebook e julgamentos por Twitter –, traindo aquilo que de mais valioso e digno de preservação os quase quatrocentos anos de liberalismo político e de moderno conservadorismo ilustrado teriam nos legado? Diante das atitudes de constante ataque às instituições de uma sociedade livre, como tem sido o caso do recém-empossado governo brasileiro, mimetizando o trumpismo e outros populismos da extrema-direita europeia, não seria o caso de recusar, sem mais, o inegável populismo e a indisfarçável demagogia que estão na essência dessa disposição política?

Na ascensão do populismo demagógico bolsonarista que testemunhamos, o meio digital dissemina reacionarismo analógico.

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