Por que você não deve abandonar um animal durante a pandemia ou em qualquer outro momento?

Não há razão, não arbitrária, para limitar nossa simpatia moral para com os animais. E mais do que limitar, não há razão para não se constituírem alvos de nossa considerabilidade moral. É nosso dever manter uma relação ética com os animais.

por Isabella Passos

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Detalhe do cão de Goya

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Um bom artigo filosófico deve começar com uma suposição não comprovada. E a premissa aqui é de que o abandono de animais é, prima facie, antiético, tendo em vista que o animal merece considerabilidade moral, mesmo que não desfrute do status de agente conforme os critérios formulados pela história do agenciamento moral. Para validar essa suposição seria possível novamente apelar a vários raciocínios como aqueles do artigo anterior (aqui), a fim de te persuadir em ao menos um dos pontos mais relevantes. Contudo, penso que nem sempre a razão precisa ser usada com a frieza de um martelo e agora quero apelar de um jeito diferente à sua sensibilidade e imaginação moral.

Abro parênteses para dois pontos: o primeiro diz respeito à existência de vários argumentos contra a considerabilidade moral de animais. Eles existem e são responsáveis por muitas disputas entre os filósofos. Há, então, o argumento conceitual (animais não entendem conceitos como obrigação, deveres, direito etc.); o subjetivista (animais não são dotados de sentimentos como sofrimento. Sentimentos estão alocados na mente e animais não são dotados de mente/ alma – cognição/ metacognição fina); o de expansão (respeitando o animal temos também que respeitar plantas, rochas, clima etc.); o de excepcionalidade (o animal está naturalmente submetido ao humano – topo evolutivo); o de importância (o humano é mais importante que o animal); o da prudência (se cuidamos dos animais, cuidamos em vista do nosso próprio bem); o pragmático (é impossível não causar dano ao animal – alimentação, vestimenta, experimentação etc.); o jurídico (o animal não é capaz de realizar contratos) e outros que se relacionam diretamente com eles. Pelo enorme espaço que nos exigiria nesta coluna, não tratarei rigorosamente de nenhum deles, mas sugiro a leitura do livro Ética & Animais do prof. Carlos Naconecy, escrito em linguagem fácil para aqueles que buscam uma “alfabetização ética” no assunto. Bons argumentos não faltam, especialmente, para nos demonstrar como são falhos os pensamentos e critérios que atuam sobre falsas oposições: gente vs. animal .

O segundo ponto é que, no Brasil, a crueldade animal está tipificada como crime. Tanto em lei federal quanto em leis estaduais. Ainda em 1934, pelo decreto n. 24.645, registrava-se ao menos trinta e um tipos de maus tratos e, portanto, há quase cem anos deixar um animal à revelia pode levar alguém a responder pelo dano diante de uma autoridade legal. Este argumento atende quem não está preocupado com uma vida moralmente relevante, mas se encontra atento às realidades das punições legais. É aquela máxima: na falta da razão, a lei! O argumento também vale para aqueles que confundem moral com legal – de legalidade. Deste modo, pegue aí o seu argumento moral do por que você não deve abandonar animais e nem considerar isso moralmente desejável ou aceitável. Mas então, como pensar moralmente a realidade do abandono de animal?

É certo que animais não podem ser instruídos em responsabilidades. É certo que são inflexíveis. Em sentido forte, não adaptáveis ??a contingências futuras e sujeitos a ataques de paixão instintiva que os tornam incapazes de reprimir, controlar, adiar ou sublimar seu furor, não podendo, portanto, entrar em acordos ou fazer e cumprir promessas. Em consequência, não são fortemente confiáveis e nem podem (exceto dentro de limites muito estreitos e para fins de condicionamento) ser responsabilizados pelo que chamamos em nós de falhas morais. Eles são, por isso, incapazes de serem sujeitos morais, de agir correto ou incorretamente, de ter, cumprir ou descumprir deveres e obrigações.

Por outro lado, os animais compartilham conosco muitas das mesmas necessidades biológicas básicas – comida, água, abrigo e proteção – e algumas das mesmas capacidades – para mobilidade, associação, afiliação e talvez emoção e algum grau de imaginação e “razão”. Eles ainda parecem desejar a sobrevivência, alguns tipos de atividades e evitar dor tanto quanto nós. Também são afeitos à atividades recreativas, algumas praticadas por – e com – pessoas e, em alguns casos, manifestam mais apego por pessoas do que por seres da sua mesma espécie. A pergunta então é: o que há na incompetência intelectual dos animais que os desqualificam para os deveres e automaticamente os inabilitariam para os direitos? O fato de não serem capazes de estabelecer contratos e de reclamar direitos? Há controvérsias.

Independente de nossa competência de sustentar consistentemente este tipo de critério quando confrontado com “a vida como ela é”, mostra-se prudente lembrar que o alcance da atividade humana se expandiu de tal forma que os seres humanos se entrelaçaram entre si e se entrelaçaram de inúmeras maneiras com animais. Participamos de atividades e instituições que promovem ou prejudicam direta ou indiretamente pessoas, criando experiências positivas ou negativas, aumentando ou privando-as de bem-estar, favorecendo ou negando-lhes oportunidades de serem quem são, de buscarem o melhor para si, ou de simplesmente fazerem aquilo que as tornam felizes. O mesmo ocorre com animais. Influenciamos dramaticamente suas vidas e bem-estar a partir do momento que nossas ações e modelos de vida ditam os seus cursos de vida ao ponto de criarmos o que chamamos de ‘princípio da dependência consistente’. Nos entrelaçamos tanto com os animais que pode-se dizer que grande parte deles são completamente dependentes de nós para ter o mínimo de bem-estar ou mesmo para sobreviver. Isso fica evidente quando lembramos, por exemplo, do tipo de relação que mantemos com animais domésticos em grandes metrópoles.

Portanto, não há razão, não arbitrária, para limitar nossa simpatia moral para com eles. E mais do que limitar, não há razão para não se constituírem alvos de nossa considerabilidade moral. É nosso dever manter uma relação ética com os animais posto que a considerabilidade moral não é uma propriedade intrínseca de criaturas ou entes. Nem é superveniente apenas por suas propriedades intrínsecas do tipo de alguma capacidade como a razão. Depende, antes, do tipo de relação que estabelecemos com elas. Considerabilidade moral diz respeito à relações que estabelecemos com animais e a falta de altruísmo para com eles demonstra alguma irracionalidade já que manifesta um tipo de inconsistência moral: intervimos, mas não nos responsabilizamos pela intervenção.

Em outras palavras, não devemos criar dependência se não estamos preparados para cuidar das criaturas que tornamos dependentes de nós. [E isso serve para muitas relações]. Assim, o raciocínio por trás dessa intuição moral diz o seguinte: que (1) geralmente simpatizamos com os animais com base no reconhecimento da semelhança de suas necessidades com as nossas; e (2) reconhecemos uma obrigação objetiva de ajudar a atender suas necessidades quando os tornamos dependentes de nós para alcançar bem-estar ou manutenção de suas vidas. O ponto geral é: na medida em que criamos animais dependentes de nós, passamos a ter obrigações morais de cuidados para com eles. E tal dever é não somente individual, mas também de espécie já que enquanto humanidade intervimos substancialmente sobre suas condições de vidas.

Por fim, fica uma dica aos que se escondem por atrás da excepcionalidade. Baixemos a bola. Animais não têm quaisquer “interesses” em serem protegidos por nossas regras morais ou legais. Só “desejam” mesmo ficar em paz. E no caso do vira-lata caramelo, patrimônio nacional, deseja apenas correr atrás de alguma moto ou invadir algum campo de futebol. Vida que segue. O que não quer dizer que possamos nos abster da responsabilidade originada da radical interferência que mantemos sobre eles. E a pandemia se torna mais uma oportunidade de nos comprometermos com eles ou com aqueles que voluntariamente cuidam dos foram abandonados por nós enquanto indivíduos e raça humana.

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Giants at Play, Briton Riviere, 1882 (Tate)

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O amor dos animais não tem por objeto somente os indivíduos da mesma espécie; ao contrário, estende-se a quase todo ser sensível e pensante. É natural que um cão ame mais a um homem que a um membro de sua própria espécie, e é muito comum que, em troca, receba a mesma afeição. Como os animais são pouco suscetíveis dos prazeres ou das dores da imaginação, só podem julgar os objetos pelo bem ou mal sensível que estes produzem, e é a partir desse bem ou mal que devem regular sua afeição pelos objetos. Vemos assim que, conforme trataremos bem ou mal um animal qualquer, produzimos seu amor ou ódio; se o alimentarmos e lhe dermos carinho, rapidamente obteremos sua afeição; ao contrário, se batermos nele e o maltratarmos, certamente despertaremos sua inimizade e rancor. —David Hume, Tratado da natureza humana

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David Hume

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Meu cachorro está a minha frente enrolado diante de uma fogueira, como muitos cachorros estiveram frente a muitas fogueiras. Eu me sento ao lado dessa lareira, como muitos outros homens se sentaram em frente a muitas lareiras. De alguma forma, esta criatura completou minha masculinidade; por alguma razão, que não posso explicar, um homem deve ter um cachorro. Um homem deve ter seis pernas, aquelas outras quatro pernas do cachorro são parte dele. Nossa aliança é mais antiga que qualquer explicação passageira e pedante que é oferecida por qualquer um de nós. Antes que a evolução fosse, nós éramos. Você pode encontrar escrito em um livro que sou um mero sobrevivente de uma disputa de macacos antropoides; e talvez eu seja. Estou certo que não tenho objeção a isso. Mas meu cachorro sabe que eu sou um homem, e você não perceberá o significado dessa palavra escrita em qualquer livro tão claramente quanto a que está inscrita na alma dele. —G. K. Chesterton, Lunacy and Letters

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Chesterton e o cão

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