por Andrea Faggion
Em manifesto recente, a revista liberal The Economist nos convidou ao divã. Segundo a revista, nós liberais temos de parar de menosprezar nossos críticos e entender que, realmente, precisamos nos reinventar se quisermos fazer frente ao crescimento do populismo e do nacionalismo em democracias liberais. A revista cita dados verdadeiramente alarmantes, como um rápido crescimento da porcentagem de jovens americanos que dariam as boas-vindas a um governo militar (de 7% em 1995 para 18% em 2017) e o fato de apenas um terço dos americanos com menos de 35 anos afirmarem ser vital que vivam em uma democracia.
Ora, quem acompanha política nacional e internacional sabe que esse fenômeno do descrédito da democracia liberal não é uma jabuticaba dos norte-americanos. Uma rápida olhada nas pesquisas de intenção de voto na eleição presidencial brasileira confirmam sua manifestação local. Ademais, estudiosostêm advertido com cada vez mais frequência para o uso das urnas para o enfraquecimento gradativo das garantias básicas tradicionalmente oferecidas por democracias liberais. Ou seja, não se trata, necessariamente, de temer um golpe militar propriamente dito, mas de constatar que a cultura democrática liberal está esmaecendo e, como um resultado, as instituições políticas tendem a ser menos democráticas, mesmo que ainda promovam consultas populares.
Assim, eu compartilho do diagnóstico e aceito a convocação da revista inglesa para repensarmos o liberalismo. Repetir um ideário dos séculos XVII e XVIII não basta. Precisamos de um liberalismo para o século XXI. Porém, como, felizmente, estou escrevendo um artigopara um blog e não um tratado de filosofia, vou apenas rascunhar algumas sugestões, partindo da aceitação de algumas críticas ao liberalismo que são menos exploradas. Refiro-me às críticas que costumam ser feitas ao “neutralismo” liberal. Estamos bem mais acostumados a vermos liberais se defenderem de críticas socialistas, que versam sobre supostas injustiças inerentes ao sistema de propriedade privada e ao livre mercado, de modo que acabamos nos esquecendo que esse não é o único debate que interessa.
Especialmente em um país como o Brasil, dificilmente a defesa de um Estado mínimo, o popular “Estado guarda-noturno”, seria politicamente viável. Mas isso não é um problema, porque é coerente com o liberalismo que o Estado não seja proposto como mínimo, mas apenas como limitado, o que não é a mesma coisa. Um Estado mínimo só tem uma função: a proteção da pessoa e de sua propriedade contra fraude e violência. Em outras palavras, ele é mínimo, porque não poderia ser menor e ainda continuar sendo um Estado. Muita gente assimila o liberalismo à defesa desse modelo de Estado, mas não é o caso. Há liberais que incluem mais funções no Estado (Adam Smith já o fazia) e há liberais que nem consideram essencial que a propriedade dos meios de produção seja privada (John Rawls era um deles). Então, ao menos em prol do argumento, aceitemos que o liberal pode consistentemente defender que o Estado garanta benefícios como saúde e educação. Isso nos leva a pensar: por que isso não basta? Se o liberalismo pode defender benefícios sociais, assimilando funções positivas no Estado, por que isso não parece estar sendo suficiente para impedir sua derrocada? Vamos olhar isso mais de perto.
Já reparou que quando um liberal diz que o Estado precisa investir em educação, via de regra ele faz questão de qualificar essa educação como “básica”? Ora, a educação básica é um meio neutro, necessário a toda sorte de fim subjetivo. Por vezes, o liberal até vai além do pedido da presença do Estado na geração de uma educação básica melhor, mas costuma ser só para enfatizar a importância da tecnologia, ou seja, de novo, dos instrumentos para toda sorte de fins, dos meios neutros. Da mesma forma, a saúde é um bem universalmente desejado, independentemente dos valores de cada cidadão. Outra vez, o liberal sente-se à vontade para dizer que o Estado pode estar presente na saúde.
O que inspira esses posicionamentos é o tradicional neutralismo que acompanha a tradição liberal. Acredita-se que um Estado liberal deve ser neutro diante de uma pluralidade de valores. Diga-se de passagem, foi esse fato que fez Carl Schmitt considerar que o liberalismo seria o pensamento anti-político por excelência, pois, para Schmitt, a política é o domínio em que se toma partido, em que se forma a noção de “nós” em contraposição a “eles”.
Particularmente, vejo com bons olhos que o liberalismo signifique o abandono da retórica dos amigos contra os inimigos, as duas categorias essenciais da política para Schmitt. Contudo, há alguma razão de ser na crítica de Schmitt, na denúncia do caráter apolítico da neutralidade liberal. De fato é bem possível queesse apego à neutralidade seja ao menos um dos fatores que poderiam explicar o desencanto crescente com nossa visão liberal de mundo.
Se, por um lado, o liberalismo deve ser uma alternativa à crescente polarização da vida política mundial, mantendo sua recusa à retórica bélica de Schmitt, por outro lado, é hora do liberalismo assumir que defende, sim, certos valores. Schmitt colocou o dedo na ferida liberal ao dizer que esses valores não podem ser a “justiça”, a “moralidade”, a “humanidade”. Nenhum agente político é o representante do bem moral contra o mal, da humanidade contra quem se encontra privado dela, e assim por diante. O próprio Schmitt acreditava que essa retórica universalista seria perigosa, pois levaria a uma necessidade de aniquilação do inimigo, em vez de sua simples derrota.
Penso que seja chegada a hora dos liberais admitirmos que defendemos valores, valores que alguns outros grupos não defendem, e que esses grupos não são menos morais ou humanos por isso, são apenas adversários políticos com ideias diferentes, com quem devemos competir nas urnas. Mais ainda, é hora dos liberais defendermos que pretendemos, inclusive, usar o Estado para a promoção desses valores, e que nos submetemos ao voto para termos o apoio da maioria para tanto.
Em outras palavras, eu estou defendendo o abandono do que eu chamaria de subjetivismo axiológico da tradição liberal. De um modo geral, a tradição liberal se caracteriza por uma defesa de valores formais considerados objetivos e universais, valores estes que formariam o domínio da justiça e se expressariam na fixação de certos limites ao que se pode fazer em busca da boa vida. Agora, no tocante ao significado dessa boa vida, o liberalismo é uma tradição que não se posiciona. Todos os valores que excedem o domínio da justiça são tidos por subjetivos e, por isso, o Estado liberal deve apenas administrar a justiça e, no máximo, prover bens que sejam elementares, no sentido de servirem a qualquer concepção da boa vida (como saúde, renda e educação básicas). Os bens que dependem de juízos de valor para serem considerados como tais devem ser providos apenas pelo livre mercado.
Ora, o problema com esse neutralismo sobre a vida boa é que o Estado liberal não interfere em processos históricos que substituem a cultura da qual ele depende por pura brutalidade. Ele confia que essa cultura tem uma superioridade tal que sobreviverá mesmo entregue à própria sorte. Mas não é o que a história recente vem nos mostrando. Temos, de um lado, o relativismo pós-moderno; de outro, o fundamentalismo religioso; no centro, um Estado liberal se esvaindo por estar acanhado demais para fazer a defesa da cultura ocidental que o pariu.
Mas como fazer essa defesa e ainda ser liberal? Um liberal pode abandonar a neutralidade sem abandonar o próprio liberalismo? Creio que sim, dependendo da forma como essa defesa for feita. Lendo o parágrafo acima, muitos logo pensarão que proponho até a criminalização de certas formas de pensamento político. Longe de mim! Neste ponto, acompanho o neutralista John Rawls, que julgava o cerceamento da liberdade de expressão como medida politicamente cabível apenas em casos de crise constitucional que impedisse as operações normais da democracia. A defesa da liberdade de expressão como princípio de justiça que, na prática, acaba sendo absoluto, dado que tão raramente surgiriam as circunstâncias que justificariam sua restrição, a meu ver, é uma das mais importantes bandeiras liberais. O fato é que existem formas positivas de promoção de valores.
Nem toda ação estatal precisa ser uma ação diretamente coercitiva. Existem incentivos a serem oferecidos e essa é uma importante forma de intervenção do Estado. É isso que significa não ser neutro, significa incentivar mais a certos valores em detrimento de outros. Por vezes, por exemplo, um bom motivo para o Estado promover algum valor pode ser a própria necessidade de diversificação cultural, tão importante para a cultura liberal. Nesse caso, o Estado ofertaria certos bens culturais que, por qualquer motivo, não estivessem sendo demandados e ofertados no mercado, ampliando as opções disponíveis, e não as restringindo pela censura.
Enfim, um liberal perfeccionista, o oposto do neutralista, é um liberal ciente de que assume uma concepção de bem, um liberal que não se envergonha de cobrar que o Estado tome partido dela, mas que exige que ele não o faça pela via de seu código penal. Acima de tudo, o perfeccionista é um liberal mais realista, que entendeu que a humanidade não progride sempre para o melhor sem interferências do poder político.