Racionalismo, ideologia e conservadorismo

A poucos intelectuais pode-se atribuir o feito de, com a descrição precisa de um fenômeno, construir uma síntese e articular tendências e ideias esparsas que, por serem difusamente percebidas, não são facilmente compreendidas.

por Eduardo Augusto Pohlmann

A poucos intelectuais pode-se atribuir o feito de, com a descrição precisa de um fenômeno, construir uma síntese e articular tendências e ideias esparsas que, por serem difusamente percebidas, não são facilmente compreendidas. Tal feito, no entanto, pode ser atribuído ao injustamente pouco conhecido Michael Oakeshott, filósofo inglês cuja produção data de meados do século XX. Dentre as suas mais diversas contribuições à filosofia, à ciência política e à história das idéias, Oakeshott se notabilizou pela descrição de um fenômeno que já há algum tempo vem perpassando e aumentando sua influência sobre a nossa forma de ver, analisar e julgar. Trata-se do conceito de racionalismo.

O racionalismo pode ser compreendido como o triunfo da técnica sobre a prática e a experiência. Para melhor esclarecer o fenômeno, Oakeshott contrapõe dois tipos de conhecimento, o técnico e o prático. A característica central do conhecimento técnico é que ele pode ser sintetizado em regras e ensinado através de fórmulas. Quando alguém aprende a cozinhar, por exemplo, aprende que a carne só pode ser colocada no forno a determinada temperatura, ou que não se deve juntar certo ingrediente à receita antes de determinado momento. Essas são regras técnicas que podem ser formuladas e ensinadas para qualquer um, englobando o aprendizado de qualquer habilidade.

Há, todavia, outro tipo de conhecimento envolvido no aprendizado, que não pode ser formulado em regras, e cuja expressão normal reside numa forma tradicional de executar uma atividade. É o tipo de conhecimento que, sem o saber, o praticante adquire após longo contato com ela. Pergunte para um músico como ele toca, e ele poderá lhe passar as técnicas que utiliza, mas pergunte para ele se bastará aplicar essa técnica para se tornar um grande músico, e ele certamente dirá que não – pois apenas com a prática reiterada dessa atividade se adquire esse outro tipo de conhecimento, irredutível a regras e formulações e imprescindível para o domínio do instrumento e perfeição na sua execução. É esse tipo de conhecimento que Oakeshott chama de conhecimento prático, e é apenas através dele que se adquire o conhecimento das nuances, das sutilezas, dos sentimentos e das emoções necessárias para o exercício da atividade na sua plenitude.

Michael Oakeshott, pintado em 1985 por Paul Gopal-Chowdhury.
Michael Oakeshott, pintado em 1985 por Paul Gopal-Chowdhury.

O racionalismo é a doutrina que defende a superioridade do conhecimento técnico sobre o conhecimento prático (ao qual o racionalista sequer confere o estatuto de conhecimento) e, com isso, a superioridade da ideologia sobre a experiência prática, das fórmulas e regras sobre a prudência, do treinamento sobre a educação e da técnica sobre a tradição. É o triunfo da visão iluminista que defende que, através da razão, e apenas através dela, podemos criar um mundo melhor – mais do que isso, podemos criar um mundo perfeito –, e podemos todos chegar a um consenso sobre sua constituição se fizermos o uso excelente da nossa capacidade racional, dispensando a sabedoria sedimentada pelo tempo nas nossas atuais instituições e tradições.

O racionalismo, quando aplicado à política, está intimamente relacionado à ideologia – a bem da verdade, é através dela que ele mais comumente se manifesta –, e a invasão do racionalismo na política é a principal responsável pela substituição de tradições de pensamentos por ideologias. Como expediente racionalista, uma ideologia terá um conjunto organizado de teses sobre as causas dos problemas da sociedade e suas soluções, uma visão resumida e simplória do funcionamento da sociedade e da política, orientações sobre como o adepto deve se posicionar com relação a mais diversos assuntos: enfim, o típico material de um panfleto político. Central para a descrição da ideologia é a irrelevância que ela empresta à experiência e à tradição política, vistas no máximo como empecilhos a serem superados na concretização dos ideais da doutrina.

Na política, o racionalismo é especialmente perigoso pela ilusão que engendra: a de que é possível conhecer o mundo político e nele agir a partir de regras e fórmulas, independentemente da experiência política e do conhecimento da sabedoria acumulada pela tradição. É esse o campo fértil para ideologias e técnicas de engenharia social com as quais ficamos infelizmente familiarizados no decorrer do século XX. E, nesse campo, o racionalismo ideológico desconhece cores partidárias: pode se manifestar, por exemplo, tanto nas doutrinas que se resumem a demonizar tudo que se aproxime da iniciativa privada, quanto no seu oposto, ou seja, nas doutrinas que a priori condenam qualquer intervenção estatal como necessariamente ineficiente e perigosa para a liberdade individual. É nesse sentido que se deve entender a crítica de Oakeshott a Hayek, radical opositor do socialismo, o mais conhecido racionalismo do século XX. Ele mesmo não conseguiu fugir da sedução de construir uma ideologia para fazer frente aos seus opositores, e assim Oakeshott o provoca: “um plano para resistir a todo planejamento pode ser melhor do que seu oposto, mas pertence ao mesmo estilo de política”. Eis a suprema ironia: para fazer frente ao avanço do racionalismo, seus opositores fizeram-lhe resistência através de uma…ideologia. O leitor não precisará fazer muito esforço para enxergar na realidade recente brasileira o mesmo fenômeno: emergindo para se contrapor à ideologia de esquerda, o conservadorismo que ganhou força nos últimos anos compartilha das mesmas vicissitudes com a esquerda: um sistema de crenças e imperativos dissociado de uma tradição política, propagado através de fórmulas e regras (quando não através de memes) dirigidas ao politicamente inexperiente.

Contra essa tendência, Oakeshott nos incita a, em primeiro lugar, familiarizar-nos com a área de conhecimento sobre a qual pretendemos nos manifestar, conhecê-la intimamente e adquirir o conhecimento prático sobre seu funcionamento, recusando-nos a reduzi-la a fórmulas e regras. Encarar com prudência e cautela não só a política, mas toda atividade prática, e com ceticismo toda teoria que pretenda desconsiderar a sua história e a sabedoria sedimentada da sua evolução. Isso é o que, para Oakeshott, constitui o cerne de uma disposição conservadora.

Na sua defesa do conservadorismo, Oakeshott elenca o que acredita serem as principais características de uma disposição conservadora de encarar a realidade. Eu ressalto essa expressão: disposição. Uma disposição conservadora é algo muito distinto de uma crença conservadora, pois, enquanto a primeira se reflete numa forma de ver e reagir ao mundo, a segunda se manifesta numa série de imperativos que procuram de antemão conformar a realidade e pautar qualquer opinião sobre ela, imperativos que podem ser transmitidos como “regras de conduta”. O conservadorismo enquanto disposição não dispensa, muito pelo contrário, demanda uma análise cuidadosa das questões sobre as quais alguém pretende se manifestar, pois é da sua essência recusar qualquer tomada de posição que seja baseada em compromissos ideológicos com sistemas de crenças específicos. Entendida sob essa perspectiva, a disposição conservadora estimula uma atitude cética, cautelosa e prudente quanto aos assuntos práticos. Já as crenças e atitudes conservadoras, quando destacadas da disposição que as originou, são vítimas do mesmo racionalismo, sobrevivendo apenas como resumos simplificados de uma tradição mais rica e complexa, sem a força e o significado dessa.

Encarar o mundo imbuído dessa disposição não é abraçá-lo incondicionalmente, defendendo quaisquer arranjos sociais pelo mero fato de eles simplesmente existirem. A disposição conservadora, tal como defendida por Oakeshott, não é refratária à mudança. Instituições injustas e práticas desumanas devem ser reformadas, e as ferramentas necessárias podem ser encontradas na nossa própria tradição política, não sendo necessários uma ideologia ou preceitos morais abstratos que igualmente demandam uma completa revisão das nossas mais arraigadas percepções e sentimentos morais. Contudo, ainda que o conservadorismo não seja infenso à reforma, sua atitude para com o nosso passado e nossa herança é de todo distinta do espírito racionalista. Dispensado da necessidade de implantar e conformar a realidade à sua ideologia política, o conservador pode encontrar serenidade, beleza e gratidão por aquilo que existe – sem reduzir tais atitudes a uma doutrina que possa ser passada adiante através de fórmulas.

Eduardo Pohlmann é mestre em Filosofia pela UFRGS, Mestre em Direito Público pela LSE, assessor jurídico da Secretária de Cultura de Porto Alegre.

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