por Eduardo Cesar Maia
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Acabo de concluir — em meio aos contratempos e percalços da quarentena — a releitura de uma obra biográfica que marcou decisivamente, creio, minha trajetória intelectual e meus estudos ainda na época da graduação. Trata-se do excepcional Isaiah Berlin: uma vida, publicado originalmente em inglês no final de 1998, um ano após o falecimento do pensador.
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O escritor, professor e ex-político canadense Michael Ignatieff, autor dessa obra publicada no Brasil pela Editora Record, colabora com diversos periódicos importantes, como o The Observer e o The New Yorker Review of Books. Talvez essas experiências jornalísticas sejam uma das explicações para o estilo fluente e instigante desse historiador da Universidade de Harvard. O livro sobre a trajetória pessoal e filosófica de Isaiah Berlin é fruto de dez anos de intensa convivência intelectual entre biógrafo e personagem, relação essa que se tornou uma grande amizade e durou até os últimos dias do pensador.
Nascido na cidade de Riga, Letônia, que à época era território do império russo, filho de um mercador judeu, Isaiah Berlin mudou-se com toda a sua família para a Inglaterra em 1920, país que o adotou — e que foi adotado por ele — de forma tão leal e intensa que lá chegou a exercer funções diplomáticas após a Segunda Guerra, recebendo inclusive a Ordem do Mérito Britânica. A vida de Sir Isaiah Berlin, apesar das grandes catástrofes que marcaram o tempo em que viveu, transcorreu quase sempre de forma tranquila, como respeitado acadêmico de Oxford. Sua notável inteligência e traquejo social — diz-se que era um conversador brilhante e sedutor — sempre chamaram a atenção de figuras notáveis, intelectuais ou não, em todos os lugares em que esteve. Albert Einstein, Virginia Woolf, John Kennedy e Winston Churchill estavam entre seus admiradores.
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O amplo percurso intelectual de Berlin não pode ser abarcado nestas breves linhas, mas alguns temas são recorrentes em seus trabalhos e ainda têm muito a nos dizer sobre os problemas e impasses de nosso próprio tempo: o exame dos autoritarismos de esquerda e de direita, a importância e as contradições intrínsecas dos ideais iluministas, a crítica dos românticos ao racionalismo universalista, as diversas concepções históricas da ideia de liberdade e a suspeita em relação ao poder emancipatório da política. A delicada questão sionista também foi um tópico renitente em seus livros e debates públicos.
A atividade política e sua problematização teórica — questão que atravessa de uma forma ou de outra toda sua obra — é caracterizada por ele como um instrumento sempre deficiente, porém inevitável — um mal necessário — devido às imperfeições e diferenças inconciliáveis entre os homens. Berlin percebeu que, na história do pensamento ocidental, muitos filósofos defenderam a premissa de que, se os problemas morais e políticos fossem genuínos, deviam admitir uma solução universal, quer dizer, uma única e verdadeira resposta para todos os homens em qualquer lugar e em qualquer época. Ele enxergou aí uma perigosa fonte de autoritarismo, na medida em que a visão de mundo que se suponha “mais racional” teria a prerrogativa de se impor sobre todas as outras. Para ele, portanto, os projetos utópicos, desde a República platônica até o igualitarismo marxista, invariavelmente, trazem em suas concepções esse elemento tirânico, derivado da crença de que alguém pode em algum momento saber o que é verdadeiramente bom e justo para todos os outros seres humanos. Berlin endossa a ideia de que as utopias racionalistas serão sempre inviáveis porque acreditar que pode haver concordância entre os homens a respeito das finalidades da vida e sobre a forma correta de viver é fruto de um delírio da razão. Daí advém sua defesa das sociedades abertas, pluralistas e, claro, necessariamente imperfeitas.
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A ilustração e seus inimigos
A partir da oposição entre o romantismo alemão e os ideais racionalistas do iluminismo francês, Berlin constituiu uma visão sintética original, que recusava e admitia, de acordo com sua perspectiva própria, valores e peculiaridades de ambos os movimentos filosóficos. Informa-nos Ignatieff: “Em 1950 e 1951, leu furiosamente as obras dos philosophes: Diderot, Helvetius, Holbach, La Mettrie, Voltaire; também começou a ler, pela primeira vez, o romantismo alemão: Schelling, Herder, Fichte . . . Ali, pela primeira vez, começou a montar sua visão histórica da transição entre o Iluminismo e os ideais românticos de liberdade”. Por um lado, o pensador mantinha a fé em certas bandeiras do Iluminismo, como o ataque à autoridade e ao dogma religioso; a defesa dos direitos humanos e da liberdade do indivíduo contra a tirania do Estado. Por outro, denunciava a deficiência dessa razão que pregava que os valores humanos podiam ser diretamente inferidos de uma essência comum: uma natureza humana universal.
Elaborando uma genealogia do movimento romântico e uma interpretação particular de seus pensadores e escritores, Isaiah Berlin apontou a contradição básica do iluminismo europeu: havia a afirmação libertária fundamental de que os homens devem ser livres para escolher, porém essa condição está restrita à escolha daquilo que seria racional desejar. A reação da “contra-ilustração” romântica se fundamentava, assim, na concepção de que os valores eram criações humanas que variavam no tempo e no espaço, de acordo com a forma de vida e de luta pela sobrevivência de cada sociedade. Portanto, os valores são históricos, relativos a cada cultura em que são engendrados e, até mesmo, contraditórios, visto que há elementos de contradição na própria natureza humana.
O autor d’As Raízes do Romantismo percebeu o que para ele era a divergência fundamental entre os dois movimentos: a ideia da racionalidade como meio para uma moralidade universal. Os pensadores iluministas achavam que a razão poderia conduzir os homens por um caminho de comunhão. Bastava que os homens aceitassem a racionalidade como guia que os conflitos morais e éticos deixariam de existir. Esse otimismo derivava da crença de que os valores humanos poderiam ser derivados de uma natureza humana universal que podia ser analiticamente perscrutada. Quer dizer, todos os homens, se usassem de sua capacidade racional, encontrariam um único e comum caminho para suas ações: “Todo o programa ocidental de reforma aperfeiçoadora derivava desse racionalismo otimista”, como enfatizou Ignatieff na biografia. A implicação inesperada dessa concepção foi uma forçada identificação da liberdade com a autoridade, afinal, como sentenciou Fichte, “Ninguém tem direitos contra a razão”.
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A vida intelectual como drama das ideias e da consciência
O filósofo e ensaísta George Santayana dizia que a vida intelectual pode ser tão intensa e verdadeira quanto, digamos, a existência “prática” das pessoas comuns. A questão não é nova: Platão (o acadêmico por excelência) padeceu dessa mesma angústia — se acreditarmos na autenticidade da Carta VII: “Eu temia ver a mim mesmo no final como nada além de palavras, por assim dizer — um homem que, de bom grado, nunca poria as mãos numa tarefa concreta”. E é nesse sentido que acredito que uma das maiores virtudes da biografia escrita por Michael Ignatieff é mostrar de maneira vibrante que a vida intelectual pode ser tão intensa e emocionante quanto outras formas de existência; e que a característica mais marcante de Isaiah Berlin era sua firme convicção no poder das ideias — que podem ser libertadoras ou perigosas. Como escreveu o próprio biografado, “Somente um materialismo histórico muito vulgar é que nega o poder das ideias e afirma que os ideais representam meros interesses materiais disfarçados”. Daí deriva um traço fundamental de sua vocação intelectual que transparece em suas obras e na narrativa tecida por Ignatieff: seu antidogmatismo teórico se fundamenta numa insubmissão da capacidade crítica individual a qualquer forma de compreensão totalizadora da realidade e a toda visão de mundo pré-formatada.
O retrato que fica de Isaiah Berlin após a leitura dessa excepcional biografia é a de um autêntico livre-pensador — curioso, cético, irônico e amplamente tolerante às ideias alheias.
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