Roger Scruton sobre Slavoj Žižek: O Príncipe Palhaço da Revolução (Parte 1)

O Estado da Arte publica com exclusividade no Brasil um ensaio do filósofo britânico Roger Scruton que avalia o fenômeno do stalinismo pop-psicanalítico de Slavoj Žižek. O texto foi publicado originalmente em setembro de 2016 no City Journal.

Estado da Arte publica com exclusividade no Brasil um ensaio do filósofo britânico Roger Scruton que avalia o fenômeno do stalinismo pop-psicanalítico de Slavoj Žižek. O texto foi publicado originalmente em setembro de 2016 no City Journal.

O Príncipe Palhaço da Revolução (Parte 1)

Sobre Slavoj Žižek, um novo tipo de pensador esquerdista

por Roger Scruton

Nas décadas de 1960 e 1970, o consenso, nas instituições acadêmicas e intelectuais ocidentais, caia muito para a esquerda. Escritores como Michel Foucault e Pierre Bourdieu ganharam destaque ao atacarem a civilização que eles rejeitavam como “bourgeois”. Os textos de teoria crítica escritos por Jürgen Habermas dominavam o currículo das ciências sociais, apesar de serem extremamente tediosos. A reescrita da história nacional como um conto de “luta de classes”, realizada por Eric Hobsbawm na Grã-Bretanha e Howard Zinn nos Estados Unidos, quase se tornou uma ortodoxia não só nos departamentos de História universitários, mas também nas escolas de ensino médio. Para nós, dissidentes, era um tempo desalentador, e raramente eu acordava pela manhã sem me perguntar se dar aula na Universidade de Londres era a carreira certa. Então o comunismo entrou em colapso no Leste Europeu, e me permiti ter esperança.

Um retórico pop em defesa do stalisnismo: Slavoj Zizek.

Durante um tempo, parecia estar por vir um pedido de desculpas daqueles que haviam dedicado seus esforços intelectuais e políticos a encobrir os crimes da União Soviética ou enaltecer as “repúblicas do povo” da China e do Vietnã. Mas esse momento durou pouco. Em uma década, o establishment da esquerda retomou o controle, com Zinn e Noam Chomsky renovando suas denúncias descontroladas contra os Estados Unidos, a esquerda europeia se reagrupando contra o “neoliberalismo” (o novo nome para o livre mercado) como se este é que fosse o problema desde o começo, Habermas e Ronald Dworkin colecionando prestigiosos prêmios por suas defesas quase ininteligíveis dos principais lugares-comuns da esquerda, e o veterano marxista Hobsbawm sendo recompensado por uma vida inteira de lealdade inabalável à União Soviética ao ser condecorado “Companheiro de Honra” pela rainha.

Realmente, o inimigo não era mais descrito como antes: o modelo marxista não cabia muito bem às novas condições, e parecia um pouquinho insensato defender a causa da classe operária quando seus últimos membros estavam se juntando às fileiras dos não empregáveis ou dos autônomos. Mas uma coisa permaneceu inalterada no despertar do colapso comunista: a convicção de que era inaceitável ir para a “direita”. Você pode ter dúvidas quanto a certas doutrinas ou políticas de esquerda; você pode cogitar que esse ou aquele pensador ou político esquerdista cometeu “erros”. Mas isso era o mais longe que a autocrítica conseguia chegar. Em contrapartida, simplesmente contemplar um pensamento de direita equivalia a entrar no território do diabo.

Assim, em poucos anos, a visão maniqueísta da política moderna, como uma luta até a morte entre a boa esquerda e a cruel direita, retomou seu domínio. Assegurando ao mundo que não haviam sido enganados pela propaganda comunista, os pensadores de esquerda renovaram seus ataques à civilização ocidental e sua economia “neoliberal” como sendo a principal ameaça à humanidade em um mundo globalizado. O termo “de direita” ainda é um xingamento hoje em dia, assim como era antes da queda do muro de Berlim, e as atitudes da esquerda se adaptaram às novas condições com pouca moderação de seu zelo oposicionista.

Houve, no entanto, uma mudança importante. Um novo tipo de pensador de esquerda surgiu – um que veste seu zelo revolucionário com uma camada de ironia, parcialmente rejeitando seu próprio idealismo impraticável como se falasse através da máscara de um palhaço. Se você resolveu estudar no departamento de humanas de alguma universidade americana, logo vai se deparar com o nome de Slavoj Žižek, o filósofo que cresceu no regime relativamente moderado da Iugoslávia comunista, classificado como “dissidente” durante o declínio do comunismo na sua Eslovênia natal, mas que agora está fazendo onda como crítico radical do Ocidente, ainda que sempre com certa ironia.

É prova da leniência do regime iugoslavo o fato de Žižek ter podido passar um tempo em Paris no início dos anos 1980. Lá, ele encontrou o psicanalista Jacques-Alain Miller, que estava promovendo um seminário do qual ele participou, e que também se tornou seu analista. Miller é genro de Jacques Lacan, o inescrupuloso maníaco pelo poder que Raymond Tallis descreveu como “o analista do inferno”, e este é um preço infeliz que se paga ao tentar entender Žižek: você tem que entender Lacan, também.

Os Écrits de Lacan, publicados em 1966, foram uma das fontes que embasaram os estudantes revolucionários em maio de 1968. Trinta e quatro volumes dos seus seminários se seguiram, publicados por seus discípulos e, posteriormente, traduzidos para o inglês – ou ao menos uma língua que se parecia com inglês tanto quanto o original se parecia com francês. A influência desses seminários é um dos mistérios profundos da vida intelectual moderna. Sua regurgitação truncada de teorias que Lacan não explorou nem entendeu é, por pura falta de vergonha intelectual, sem precedente na literatura. Tecnicidades inexplicadas, tiradas da teoria dos conjuntos, da física de partículas, da linguística, da topologia, e seja o que mais pudesse conferir poder ao feiticeiro que as invocou, são usadas para provar teoremas espetaculares como o de que um pênis ereto em condições burguesas é equivalente à raiz quadrada de menos um, ou que você não (até ser convencido por Lacan) “ex-siste”.

Outro conceito lacaniano – o do grande Outro – é crucial para entender Žižek. Após as famosas palestras sobre Hegel de Alexandre Kojève, realizadas no Institut des Hautes Études antes da II Guerra Mundial e assistida por todo mundo que era alguém no mundo literário parisiense (inclusive Lacan), a ideia do Outro se tornou uma fixação do pensamento filosófico francês. O grande e sutil argumento da Fenomenologia do Espírito de Hegel, de que atingimos a autoconsciência e a liberdade por meio do reconhecimento do Outro, tem sido reciclado repetitivamente por aqueles que assistiram às palestras de Kojève. Você o encontra em Jean-Paul Sartre, Emmanuel Levinas e Georges Bataille. E você o encontra, de maneira horrivelmente truncada, em Lacan.

Para Lacan, o grande Outro (A maiúsculo em Autre) é o desafio apresentado ao self pelo não self. Esse grande Outro assombra a percepção de mundo com o pensamento de um poder dominador e controlador – um poder que buscamos e do qual fugimos. Há também o pequeno outro (a minúsculo em autre), que não é muito diferente do self, mas é o que se vê no espelho durante o estágio de desenvolvimento que Lacan chama de “fase do espelho”, quando a criança supostamente vê seu reflexo e diz “Aha!”. Este é o ponto de reconhecimento, quando a criança encontra pela primeira vez o “objeto = a”, que, de alguma forma para mim impossível de decifrar, indica tanto o desejo como a ausência dele.

A fase do espelho dá à criança uma ideia ilusória (e breve) do self, como um outro todo-poderoso no mundo dos outros. Mas esse self logo é esmagado pelo grande Outro, um personagem baseado no contexto de seio bom/seio mau, amigo/inimigo criado pela psicanalista Melanie Klein. Ao expor as trágicas consequências desse encontro, Lacan traz surpreendentes insights, frequentemente repetidos sem explicação por seus discípulos como se tivessem mudado o curso da história intelectual. Um é particularmente repetido: “não há relação sexual” – uma observação interessante vindo de um sedutor em série, de quem nenhuma mulher, nem mesmo as analisandas, escapava.

Além disso, é atribuída a Lacan a ideia de que o sujeito não existe além da fase do espelho até que seja trazido à existência por um ato de “subjetivização”. Você se torna um sujeito autoconsciente ao tomar posse do seu mundo e incorporar sua alteridade em seu self. Dessa maneira, você começa a “ex-sistir” – existir para fora, em uma comunidade de outros.

As ruminações de Lacan sobre o Outro aparecem constantemente nos textos de Žižek, que provam um aspecto em que o sistema comunista tinha vantagem sobre seus rivais ocidentais: são produtos de uma mente seriamente educada. Žižek escreve com perspicácia sobre arte, literatura, cinema e música, e quando está tratando dos eventos de sua época – sejam as eleições presidenciais americanas ou o extremismo islâmico no Oriente Médio –, sempre tem algo interessante e desafiador a dizer. Ele aprendeu o marxismo não como uma busca exibicionista de uma classe ociosa acadêmica, mas como uma tentativa de descobrir a verdade sobre nosso mundo. Estudou Hegel com profundidade, e no que certamente são seus dois textos de mais fôlego – The Sublime Object of Ideology (1989) e a Parte I de The Ticklish Subject (1999) –, Žižek mostra como aplicar tal estudo aos tempos confusos em que vivemos. Ele responde tanto à poesia quando à metafísica de Hegel, e preserva o anseio hegeliano por uma perspectiva total, na qual o ser e o nada, a afirmação e a negação, são relacionados e reconciliados.

Se tivesse permanecido na Eslovênia, e se a Eslovênia tivesse permanecido comunista, Žižek não seria o estorvo que se tornou desde então. De fato, a introdução de Žižek no mundo acadêmico ocidental é quase suficiente para lamentar o colapso do comunismo no Leste Europeu. Ao adotar a visão psicanalítica de Lacan como base transcendental para sua nova filosofia socialista, Žižek eleva a empolgação a um nível que nenhum daqueles monótonos socialistas geralmente produzidos pela academia ocidental conseguiu atingir. E seu estilo astuto e abrangente dá indícios constantes de argumentação persuasiva. Às vezes, pode ser lido com facilidade por muitas páginas seguidas, com uma plena sensação de que está compartilhando questões que podem produzir um entendimento entre ele e seu leitor.  Ao mesmo tempo, passa rapidamente por afirmações absurdas que parecem, a princípio, lapsos de escrita, mas que o leitor descobre, com o passar do tempo, serem o verdadeiro conteúdo de sua mensagem.

Como exemplo do estilo de Žižek, eis aqui alguns dos assuntos tratados em três páginas consecutivas, escolhidos mais ou menos ao acaso, de seu envolvente livro de 2008, In Defense of Lost Causes: o Sudário de Turim; o Corão e a visão de mundo científica; o Tao da física; o humanismo secularista; a teoria lacaniana da função paterna; a verdade na política; o capitalismo e a ciência; a arte e a religião segundo Hegel; a pós-modernidade e o fim das grandes narrativas; a psicanálise e a modernidade; o solipsismo e o ciberespaço; a masturbação; Hegel e o espírito objetivo; o pragmatismo de Richard Rorty; e há ou não há um grande Outro?

O tiroteio de assuntos e conceitos torna fácil, para Žižek, introduzir suas pequenas doses de veneno, que o leitor, acompanhando o ritmo da prosa, pode acabar engolindo facilmente sem perceber. Assim, não devemos “rejeitar o terror in toto, mas reinventá-lo”; devemos reconhecer que o problema de Hitler, e de Stálin também, é “não serem violentos o suficiente”; devemos aceitar a “perspectiva cósmica” de Mao e considerar a Revolução Cultural um evento positivo. Em vez de criticar o stalinismo como imoral, devemos louvá-lo por sua humanidade, já que resgatou o experimento soviético da “biopolítica”; além disso, o stalinismo não era imoral, mas muito moral, pois baseava-se na figura do grande Outro, que, como os lacanianos sabem, é o erro primordial do moralista. Também devemos reconhecer que a “ditadura do proletariado” é “a única escolha verdadeira hoje”.

A defesa que Žižek faz do terror e da violência, seu apelo por um novo Partido baseado nos princípios leninistas, sua celebração da Revolução Cultural de Mao, apesar das incontáveis mortes que foram, ainda, louvadas como parte do significado da política de ação – tudo isso pode ter servido para difamar Žižek entre os leitores esquerdistas mais moderados, não fosse pelo fato de que nunca é possível saber se ele está falando sério. Talvez ele esteja rindo – não só de si mesmo e de seus leitores, mas do establishment acadêmico que o inclui, a sério, ao lado de Kant e Hegel no currículo de filosofia, com um Journal of Žižek Studies agora já em seu quarto ano de publicação. Talvez ele esteja nos incentivando a dar férias para o cérebro, zombando dos idiotas que acreditam haver algo mais a se fazer com ele além de escapar dos pensamentos:

Aqui, no entanto, é preciso evitar a armadilha fatal de pensar no sujeito como o ato, o gesto, que depois intervém para preencher a lacuna ontológica, e insistir no ciclo vicioso irredutível da subjetividade: “a ferida só é curada pela lança que a causou”, isto é, o sujeito “é” a própria lacuna preenchida pelo gesto da subjetivização (o que, para Laclau, estabelece uma nova hegemonia; para Rancière, dá voz ao “parte sem parte”; para Badiou, assume fidelidade ao evento-verdade; etc.). Em suma, a resposta lacaniana para a questão posta (e respondida de maneira negativa) por filósofos tão diferentes como Althusser, Derrida e Badiou – “Pode a lacuna, a abertura, o Vazio que precede o gesto de subjetivização ainda ser chamado de ‘sujeito’?” – é um enfático “Sim!” – o sujeito é, ao mesmo tempo, a lacuna ontológica (a “noite do mundo”, a loucura do autoisolamento radical) bem como o gesto de subjetivização que, por meio de um curto circuito entre o Universal e o Particular, cura a ferida de sua lacuna (em lacanês: o gesto do Mestre que estabelece uma “nova harmonia”). “Subjetividade” é um nome para essa circularidade irredutível, para um poder que não combate uma força resistente externa (diga-se, a inércia de dada ordem substancial), mas um obstáculo que é absolutamente inerente, que, em última instância, “é” o próprio sujeito. Em outras palavras, o próprio esforço do sujeito para preencher a lacuna retroativamente sustenta e gera essa lacuna.

Perceba a súbita intromissão, na logorreia, de uma longa frase em itálico, em nada mais clara que as outras, como se Žižek houvesse parado para tirar uma conclusão antes de passar, de maneira exultante, para o próximo conceito malformado.

A passagem é parte de uma contribuição para a teoria lacaniana da “subjetivização”. Mas seu significado principal é deixar claro para o leitor que, seja o que for dito sobre outros autores de absurdos em voga, Žižek também o disse, e que todas as verdades, todas as contribuições, todos os fragmentos úteis de bobagens esquerdistas, são afluentes que correm na incontrolável onda de sua abrangente negatividade. A prosa é um convite: mergulhe, leitor, para lavar sua mancha de argumentação fundamentada, e aproveite, enfim, as refrescantes águas da mente, que correm de assunto em assunto, de lugar em lugar, desimpedidas das realidades, sempre fluindo para a esquerda.

Žižek publica cerca de dois ou três livros por ano. Ele escreve com uma distância irônica de si mesmo, consciente de que não é possível obter aceitação de outra forma. Mas também se preocupa em criticar a plausibilidade superficial da sociedade de consumo que substituiu a antiga ordem da Iugoslávia comunista e descobrir a causa espiritual profunda de seus males. Quando não escreve alusivamente, pulando como um gafanhoto de assunto em assunto, ele tenta desmascarar o que considera serem os autoenganos da ordem capitalista global.  Como seu outro mestre, o filósofo francês de extrema-esquerda Alain Badiou, Žižek não consegue oferecer uma alternativa precisa. Sem esta, porém, uma alternativa imprecisa – até mesmo puramente imaginária – servirá, sejam quais forem as suas consequências. Nas palavras dele, com a linguagem de Badiou: “É melhor um desastre de fidelidade ao Evento do que uma não existência de indiferença ao Evento.” (O Evento é a sempre esperada, e sempre adiada, Revolução.) [Continua aqui]

Tradução: Ana Beatriz Fiori

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