por Eduardo Vicentini de Medeiros
Já houve uma época em que fazer leitura filosófica de filmes não era o passatempo predileto de sete entre dez filósofos na academia. Já houve uma época em que o cinema não era objeto privilegiado da investigação estética. Já houve uma época na qual livros como Hitchcock and Philosophy: Dial M for Metaphysics, Alien and Philosophy: I Infest Therefore I Am, The Ultimate Star Wars and Philosophy: You Must Unlearn What You Have Learned e Hollywood Westerns and American Myth: The Importance of Howard Hawks and John Ford for Political Philosophy não teriam sido escritos, muito menos publicados por editoras sérias. Já houve uma época na qual cogitar que o cinema fizesse filosofia seria um disparate.
Não sei dizer ao certo quando este cenário começou a mudar, mas tenho uma boa pista sobre quem foi um dos principais responsáveis pela mudança. Na imensa bibliografia de Stanley Cavell, dois títulos ganham destaque na empreitada: Pursuits of Happiness – The Hollywood Comedy of Remarriage (1981) e Contesting Tears: The Hollywood Melodrama of the Unknown Woman (1997). Contesting Tears será nosso tema de outubro. Pursuits of Happiness fica para o próximo mês.
Vários aspectos são louváveis em ambos os títulos: a capacidade imaginativa de Cavell para perceber as saliências morais nos filmes discutidos, a identificação e descrição da especificidade de dois novos gêneros, a saber, a Comédia do Recasamento e o Melodrama de Hollywood da Mulher Desconhecida ou as conexões entre estes gêneros e o perfeccionismo emersoniano, por um lado, e sua interpretação da verdade do ceticismo, por outro. Tudo isso é impressionante, mas o que me deixa de queixo caído é a escolha dos filmes que Cavell analisa. Não são realizações do ‘cinema de arte’ europeu que flertam explicitamente com temas da filosofia como em Tarkovsky, Bergman ou Godard. Os filmes contemplados não são realizações de um cinema hermético, com uso de intrincados recursos diegéticos ou sintaxe revolucionária, biscoito fino para meia dúzia de iluminados. Ao contrário, são obras hollywoodianas de larga bilheteria, com forte apelo popular quando de seus lançamentos. Os títulos que compõem a caracterização inicial do gênero do Melodrama de Hollywood da Mulher Desconhecida são obras como Stella Dallas (1937), de King Vidor, Now, Voyager (1942), de Irving Rapper, Gaslight (1944), de George Cukor e Letter from an Unknown Woman (1948) de Max Ophüls.
A partir deste último filme, que dá nome ao gênero, vou tentar expor e comentar alguns dos seus principais elementos narrativos, e que unificam estes diferentes títulos pela tentativa das protagonistas femininas de contar suas histórias, de encontrar sua voz, à contrapelo das instituições do casamento e da maternidade como as alternativas usualmente aceitas para sua afirmação como pessoa. É claro que para fazer isso algum spoiler é inevitável. Portanto, se isso lhe parecer um pecadilho irreparável, sugiro que interrompa a leitura agora, veja o filme e depois retorne. Feito isso, vamos lá.
Em Letter from an Unknown Woman, a protagonista explicitamente afirma que gostaria de ser a única mulher que nunca exigiu nada de seu amado. Aquilo que é dito por essa mulher desconhecida, na maior parte das vezes, é o que é lido por Stephen – o protagonista masculino do filme – em uma carta que lhe é endereçada. No momento em que Stephen lê a carta, aquela que a escreveu já está morta, seu desejo perdido para sempre, qualquer reparação é, a esta altura, uma impossibilidade. Ouvimos a voz desta mulher desconhecida apenas em razão do voice-over adotado como um recurso fílmico de dar voz à personagem através do que é lido por Stephen. Se ele não tivesse aberto a carta, se a tivesse desconsiderado como irrelevante, talvez não apenas a mulher nos seria desconhecida, sua voz também estaria ausente.
Não preciso ir muito além destas poucas cenas para encontrar vários elementos de uma situação trágica ou melodramática que derivam de uma visão particularmente solipsista do relacionamento amoroso. A recusa de criar demandas ao seu amado é a contrapartida da crença de que o relacionamento amoroso ideal está para além do doméstico, do comezinho, das obrigações recíprocas do diário e da convivência permanente com o outro. Pois bem, é esta crença que precisa ser abandonada. É esta imagem distorcida do que seja um relacionamento que impossibilita que esta personagem seja conhecida por Stephen, e que, portanto, permaneça como uma mulher desconhecida.
Talvez seja útil pensar em uma das caracterizações de Cavell do casamento como “um emblema do conhecimento dos outros, não somente em razão de sua implicação de reciprocidade, mas porque ele implica uma devoção ao diário, na repetição.” Quando a protagonista diz que não quer exigir nada de Stephen ela está recusando essa devoção. Está presa a um ideal romântico que a distancia do casamento, que a distancia de qualquer possibilidade que Stephen a reconheça como alguém diferente das inúmeras mulheres que desfilam por sua vida. Casar com alguém é criar demandas, é aceitar a repetição na forma da aceitação do cotidiano. É, pelo menos em alguma medida, recusar padrões excessivamente românticos que são incompatíveis com acordar todo dia ao lado da mesma pessoa.
Em Letter from an Unknown Woman, a carta que é lida por Stephen não esperava por uma resposta. Sua autora é consciente de que provavelmente já estará morta quando seu destinatário a receber. Este ponto é fundamental. Sua carta, ao assumir que não espera por uma resposta, novamente, está reafirmando a ideia romântica de não criar demandas, de não fazer exigências, nem mesmo aquela demanda elementar que está pressuposta em falar e ser ouvido e, se possível, receber outras palavras de volta. Uma carta que não espera resposta é a forma mais dramática do monólogo, é um solilóquio narrando a impossibilidade do reconhecimento de uma cena de conversa. Na medida inversa em que a caracterização do casamento proposta por John Milton em seu tratado sobre o divórcio como “meet and happy conversation” (caracterização rememorada por Cavell) é o emblema da aceitação do outro no gênero das Comédias do Recasamento, uma carta que não espera resposta, uma carta que nem mesmo é assinada pelo remetente, é a imagem do isolamento e da impossibilidade de constituir uma conversação.
A leitura de Cavell em Contesting Tears explora uma constelação de considerações psicanalíticas, históricas, antropológicas e morais para a afirmação e o fracasso da afirmação da identidade feminina. É um tema delicado e não passou incólume de críticas na academia norte-americana, em especial vindas do front feminista, que colocam em dúvida a capacidade de imersão autêntica na subjetividade feminina dos filmes que formam o gênero do Melodrama de Hollywood da Mulher Desconhecida. A discussão é importante e o próprio Cavell procurou situar-se na contenda na introdução de Contesting Tears e, em especial, respondendo as acusações que lhe foram feitas por Tania Modleski nas páginas da Critical Inquiry.
Polêmicas à parte, a leitura de Contesting Tears é uma das portas de entrada privilegiadas para entender o impacto e a presença de Cavell para além das fronteiras da filosofia acadêmica norte-americana onde ele, grosso modo, é um outsider, mesmo tendo lecionado em Harvard e sido referência para popstars filosóficos da atualidade como Martha Nussbaum, para ficarmos com o exemplo mais evidente.
Para aqueles que não temem ler um ensaio sobre cinema que coloca na mesma página Freud e Cary Grant, Kierkegaard e Katharine Hepburn, Milton e Nietzsche, fica o convite. Leiam Contesting Tears, assistam os filmes discutidos e depois me contem da experiência.
Eduardo Vicentini de Medeiros é doutor em filosofia pela UFRGS e pós-doutorando na Unisinos.
Leia os artigos desta série:
Periplo com Stanley Cavell – parte 1
Periplo com Stanley Cavell – parte 2
Periplo com Stanley Cavell – parte 3