Da boa sociedade: Strauss, Voegelin e Arendt

A obra de Courtine-Denamy é um convite para se adentrar no pensamento desses que estão entre os principais nomes da filosofia política do século XX a partir da questão: a “boa sociedade” pode ser restaurada?

por Rodrigo Coppe

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O século XX foi assinalado pela crença na ação política como prática que levaria a emancipação humana e a possibilidade de uma sociedade perfeita. Herdeira de um amplo movimento que nos leva de volta aos primeiros movimentos do humanismo renascentista, a ideia de que o homem pudesse a partir de suas próprias forças criar um mundo no qual fosse possível viver de forma emancipada, feito à sua medida, levou à produção das ideologias políticas modernas e suas inúmeras consequências. Ao se envolver com o tema das religiões seculares, o que venho fazendo há alguns anos, volta-se obrigatoriamente para a filosofia política. Não conseguimos acessar esse conceito, que visa dar conta da realidade dessas ideologias que se tornam substitutivas das religiões stricto sensu, sem passar por ela e sobre as noções de “boa sociedade”.

A obra De la bonne societé. L. Strauss, E. Voegelin, H. Arendt: le retour du politique en philosophie (Paris: Les Éditions du Cerf, 2014), de Sylvie Courtine-Denamy, colabora conosco nessa empreitada. Não obstante o fato de ter sida publicada há alguns anos, vale a pena uma breve apresentação do texto para o público brasileiro. Filósofa e tradutora, pesquisadora do Centre de Recherches de Sciences Politiques e da Eric Voegelin Society, a intelectual construiu sua reflexão nessa obra em torno da questão de como pensar ou refundar na imanência uma comunidade política, uma “société bonne”, cuja a unidade e coerência permaneçam respeitosas à pluralidade. Buscar saber que tipo de sociedade se pode construir – se isso é de fato possível – a partir da diversidade humana é uma questão fundamental para democracias ocidentais contemporâneas. E o desafio maior é refletir sobre a questão num momento em que a consciência da pluralidade é acompanhada por uma descrença generalizada sobre a possibilidade de defender qualquer princípio moral, como nos lembra Charles Taylor em seu Multiculturalisme: Différence et démocratie.

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Sylvie Courtine-Denamy (France Culture)

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É do confronto das perspectivas de três protagonistas da história do pensamento do século XX e pertencentes a uma mesma geração – Eric Voegelin (1901-1985), Hannah Arendt (1906-1975) e Leo Strauss (1899-1973) –, que a autora buscará pensar a filosofia política do período explorando as complexas conexões entre história, filosofia, religião e política. O objetivo primeiro de Courtine-Denamy é o de mapear as ideias e as relações entre os três pensadores. Para tanto, usa ampla bibliografia e as correspondências entre os próprios autores e também outros pensadores contemporâneos. Algumas delas nos ajudam a vislumbrar as relações entre os três filósofos.

Numa carta a John East, por exemplo, em 1977, Voegelin dizia sobre Hannah Arendt: « C’était un grand savant […] les differénts –ismes en vigueur dans nos universités ne sont pas simplement immoraux, mais objectivement erronés » [“Tratava-se de uma grande estudiosa […] os diferentes – ismos em vigor nas nossas universidades não são simplesmente imorais, mas objetivamente errados”] (p. 12). Leo Strauss e Hannah Arendt se encontraram pela primeira vez em 1930. Nos anos 1960 se reencontram na Universidade de Chicago. Arendt estava sob fogo devido ao seu Eichmann em Jerusalém, e numa carta a Karl Jaspers em novembro de 1963 afirma que « le seul que fasse de l’agitation contre [elle] sur le campus est naturellement Leo Strauss » [“o único que faz agitação contra [ela] no campus é naturalmente Leo Strauss”] (p. 14).

A uma questão colocada por Karl Löwith numa carta, se a filosofia política de Arendt era digna de leitura, Strauss respondeu: « Je n’ai pas lu les articles de Hannah Arendt sur la philosophie politique » [“Não li os artigos de Hannah Arendt sobre filosofia política”] (p. 15).

Strauss e Voegelin trocaram ampla correspondência entre 1934 e 1964. No Brasil podemos encontrá-las na obra Fé e filosofia política. A correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin (1934-1964), publicado pela É Realizações. Além das cartas trocadas por ambos, encontramos nesse volume ensaios essenciais dos filósofos, como “Jerusalém e Atenas: algumas reflexões preliminares” (Strauss) e “Evangelho e cultura” (Voegelin).

Em uma dessas correspondências, Strauss se surpreende com a decisão de Voegelin de deixar a Universidade de Louisiane em 1958 para aceitar a antiga cadeira de Max Weber na Universidade de Munique: « Comment a-t-il pu aller dans un endroit où l’Holocauste a eu lieu? » [Como ele pôde ir a um lugar em que o Holocausto ocorreu?”] (p. 19). Entre Voegelin e Arendt contam-se treze cartas de 1951 e 1972. Numa delas, a Gertrud Jaspers em 1952, Arendt afirma que leu A nova ciência da política de Voegelin: « À mon avis il se trompe, mais c’est tout de même un livre importante. Le premier débat d’importance sur les problèmes réels depuis Max Weber » [“Na minha opinião, ele está enganado, mas é ainda assim um livro importante. O primeiro debate importante sobre os problemas reais desde Max Weber”] (p. 23). A segunda parte de As origens do totalitarismo atesta que Arendt leu os dois primeiros livros de Voegelin, e este, por sua vez, leu a obra de Arendt, inclusive resenhando-a para a The Review of Politics em 1953.

Na primeira parte do livro – Dans l’ombre de l’apocalypse – Courtine-Denamy apresenta os três pensadores, concentrando-se na formação e primeiras posições políticas, além da questão que toca os três autores: o perigo nazista. Na segunda parte – Saisis effroyable –, a filósofa analisa algumas obras dos três pensadores a partir de suas reflexões sobre o evento de Adolf Hitler, trazendo as polêmicas conceituais que se acumulavam no período no período, como aquela em torno do “totalitarismo”. Sobre Arendt e Strauss, concentra-se na crítica do antissemitismo no pensamento de ambos, utilizando-se das próprias obras e ao amplo acesso às suas correspondências. Sobre Voegelin, trata das relações entre religião e política, partindo do debate que teve com Arendt, particularmente em torno do conceito de gnose, usado pelo primeiro e sua reflexão sobre a modernidade, e de totalitarismo, pela segunda, em sua obra máxima.

Na terceira e última parte – La modernité effrénée – a autora faz um passeio sobre o conceito de modernidade a partir da compreensão dos três pensadores, colocando-os em um interessante diálogo. Também convida para o diálogo Hans Blumemberg, crítico contumaz da ideia de que a modernidade seja o resultado da secularização de conceitos teológicos cristãos. A importância de acessar Blumemberg está no fato de que o conceito de secularização é tomado em alguns círculos, quase sempre, de forma bastante naturalizada, sem maiores questionamentos.

A obra de Courtine-Denamy é um convite para se adentrar no pensamento desses que estão entre os principais nomes da filosofia política do século XX a partir da questão: a “boa sociedade” pode ser restaurada?

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Strauss, Voegelin, Arendt

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