por Andrea Faggion
Como era previsto, a morte do ditador cubano Fidel Castro desencadeou entre intelectuais profissionais uma série de malabarismos retóricos para justificar, ou, ao menos, desculpar as violações de direitos humanos sob seu governo. “Se não fosse pela ameaça ianque, não precisaria ter sido assim”; “se não fosse pela revolução, Cuba seria hoje tão pobre quanto o Haiti” foram algumas dessas desculpas.
De minha parte, se tivermos licença para o apelo a enunciados contrafatuais, optarei por um mais seguro: “se não fosse uma ditadura anti-capitalista, nenhum intelectual passaria a vergonha de defendê-la publicamente”. E isso me dá o mote para desenterrar uma antiga questão, já levantada e respondida por mais de um autor: por que a maioria dos intelectuais odeia o capitalismo?
Embora vários – como Ludwig von Mises, Thomas Sowell e Bertrand de Jouvenel – já tenham escrito sobre a rejeição dos intelectuais ao capitalismo, a mim, neste momento, interessam algumas das considerações de Robert Nozick, feitas no famoso artigo “Por que os intelectuais se opõem ao capitalismo?” [1], das quais me apropriarei livremente. Naturalmente, uma pergunta do tipo se baseia no pressupostos de que a oposição ao capitalismo seria maior entre a média dos intelectuais do que entre a média geral da população. Aceitemos esse suposto fato em prol do argumento.
Quanto ao que se entende por capitalismo, como não existe um conceito consensual, entendamos que o livre mercado e o acumulo de capital sejam traços centrais a qualquer concepção de capitalismo. Assim, uma pergunta como a de Nozick pode ser colocada da seguinte forma: por que intelectuais em especial, mais do que pessoas em geral, tendem a se opor a um sistema de livre mercado, permitindo acumulo de capital? Em outras palavras, trataremos da oposição dos intelectuais ao capitalismo mesmo em suas formas mais perfeitas, assim por dizer, e não de alguma oposição a formas supostamente corrompidas, como o capitalismo de Estado.
Pois bem, para Nozick, o fator que impele os intelectuais na direção do anti-capitalismo diz respeito aos valores que orientam o sistema de justiça distributiva. Intelectuais se sentiriam no direito às maiores recompensas da sociedade e se sentiriam ressentidos ao não receberem essas recompensas. Em suma, o ressentimento intelectual contra o capitalismo surgiria ao constatarem que um sistema capitalista de distribuição não satisfaz um princípio meritocrático da forma “a cada um conforme seu mérito ou valor”. Quem, afinal, não conhece um professor ressentido por ser menos valorizado do que um Neymar? Ou um filósofo que não torce o nariz para a sociedade que coloca os livros de Augusto Cury nas bancas de destaque das livrarias, em vez dos dele?
Agora, na lógica capitalista, é perfeitamente compreensível que Neymar seja mais valorizado do que qualquer intelectual e Augusto Cury, mais valorizado do que grandes acadêmicos. Como Nozick diz, em uma sociedade capitalista – heranças, doações e loterias à parte – o mercado distribui para aqueles que satisfazem demandas que se expressam pela livre flutuação dos preços. Você só será especialmente beneficiado nesse sistema se houver uma demanda pelo seu produto ou serviço maior do que ofertas alternativas à sua. Mas convenhamos que a demanda por artigos que esmiuçam a dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, levada a cabo por Kant, nunca será exatamente alta, a menos que a natureza humana passe por alguma grande revolução.
Agora, se o padeiro percebe que o pão de jiló que ele inventou não tem muita saída no mercado, ele não se ressente contra o capitalismo. Ele muda sua produção para pão doce, por exemplo. Muitos, inclusive, desistem de abrir uma nova padaria, quando uma pesquisa de mercado revela que a oferta de pães e similares já é mais do que suficiente naquela região. Mudam de ramo. Sem ressentimentos!
Por que, então, o intelectual se ressente da preferência pelo futebol a palestras sobre Kant? Porque, diferentemente do padeiro, ele foi treinado para pensar que o que ele faz tem um valor intrínseco e que a boa sociedade deveria recompensar quem produz valores intrínsecos, e não quem satisfaz demandas de mercado.
Acima de tudo, durante sua formação e no decorrer de sua vida profissional na academia, o intelectual é supostamente recompensado pelo mérito do seu trabalho. Por mais que o mérito esteja em declínio hoje no sistema de notas – muitos programas de pós-graduação aderem ao mero aprovado ou reprovado no sistema de avaliação de teses – ainda gostamos de pensar que chegamos onde chegamos academicamente, porque somos os melhores, e não porque nosso orientador era o mais influente. Pois, no mercado, você pode saber preparar o melhor prato da alta gastronomia francesa e ainda ficar desempregado se as pessoas demandam mesmo um churrasco. Como Nozick diz, a sociedade não é uma escola em larga escala.
Outro ponto interessante relativo à diferença entre a escola e a sociedade é que a última carece da figura do distribuidor central, com a qual o intelectual se acostumou na escola. Na escola, temos professores distribuindo notas, temos comitês e pareceristas para nos avaliar. No mercado, a distribuição é difusa. Cada um de nós – ao eleger em qual padaria vai comprar pão, ou optar entre comprar um livro ou ir ao cinema – é um distribuidor agindo por conta própria. Como pode, então, haver racionalidade nessa distribuição desorganizada?
O intelectual, na escola, se habituou a cobrar critérios claros de avaliação, uniformemente empregues. Na sociedade, ele se depara com milhões de arbítrios dispersos. Como recorrer de uma decisão? Como se sentir intitulado a ela? Se suas crenças normativas relativas à justiça na distribuição de bens foram amplamente moldadas pela escola, é mesmo natural que você veja injustiça em cada parte de uma sociedade de livre mercado.
Oferecido este esboço de explicação da rejeição dos intelectuais ao capitalismo, mesmo em sua melhor forma, vale adicionar que o fato do valor de mercado não corresponder a algum valor intrínseco pode ser mesmo digno de lástima. Ao explicarmos por que o intelectual se ressente do capitalismo, não podemos afastar a hipótese normativa de que haja boas razões para ressentimento. Afinal, parece haver mais do que simples preconceito no desgosto que se expressa por um mundo onde ninguém mais esmiuce Kant, porque estão todos ocupados demais produzindo muitos “Kant e os Simpsons” para o mercado. Portanto, talvez, Nozick tenha ido longe demais ao sugerir, se o entendi bem, que filósofos enaltecem o valor do conhecimento apenas por uma espécie de corporativismo.
Porém, por mais que possa ser legítimo que o intelectual lute por um mundo do qual o valor intrínseco não desapareça por não conseguir tomar a forma de valor de mercado, também é bom termos cuidado com o que desejamos, ao sonharmos com um mundo meritocrático substituindo a sociedade de livre mercado. É prudente termos em mente que todos queremos pão, e até algum circo de vez em quando. Os sistemas anti-capitalistas romanticamente defendidos por intelectuais, na prática, têm se mostrado incapazes de prover esse pão. E parece que, por isso mesmo, eles tampouco têm produzido muitos Kants.
[1] Originalmente publicado no Cato Policy Report, Jan. – Fev. 1998. Disponível aqui. (acessado em 27 de novembro de 2016).