por Rodrigo de Lemos
Um episódio dos tempos de faculdade de Frédéric Moreau, protagonista de A educação sentimental, de Flaubert, flagra-o envolto mais ou menos involuntariamente em uma revolta estudantil. Os estudantes de Direito, amotinados contra o governo, recusavam-se a assistir ao curso do professor Samuel Rondelot, “uma das glórias judiciárias do século XIX”, respeitado por todos porque “o sabiam pobre” e porque sua “nova dignidade de par de França nada o havia modificado em seus ares”. Rondelot tentava chegar ao anfiteatro, fazer os estudantes segui-lo, mas em vão: “ainda que há pouco fosse amado, agora ele era odiado, porque representava a Autoridade”. Tendo se esforçado a dirigir-se aos estudantes e recebendo como resposta apenas vociferações, ele dá meia-volta, o que provoca o júbilo da multidão: “essa retirada do professor se tornava para ela uma vitória”. Frédéric Moreau acusa-o de covardia; “ele é prudente”, observa um companheiro.
O episódio, situado em 1841, consiste numa daquelas agitações que prenunciam a grande Revolução, a de 1848, retratada na terceira parte do romance. Ele também prefigura em tom menor a revolta contra a autoridade professoral que foi característica de maio de 1968. Contudo, uma diferença se faz sentir: os estudantes ainda abrem alas com deferência ao professor Rondelot na sua chegada. É somente quando os inflamados gritam contra o rei Luís Filipe que a indignação contamina a todos contra o eminente jurista. A contestação ao mestre é reflexo de uma rebelião em primeiro lugar política.
Há motivos para crer que, 120 anos depois da Revolução de 48, a insurreição contra o professorado tenha ao mesmo tempo se radicalizado e mudado de natureza. Em Nanterre, no olho do furacão de maio de 68, o filósofo Paul Ricoeur, membro da comissão disciplinar encarregada de julgar os estudantes revoltosos, advogou uma saída pelo diálogo em detrimento da punição. Isso não impediu que, dois anos mais tarde, enquanto decano da Faculdade de Letras, tivesse seu escritório invadido e sofresse agressões físicas de estudantes radicais, que, além disso, lhe viraram sobre a cabeça uma lata de lixo.
Cenas assim seguiriam comuns na sequência de 68, como em uma conferência de Jacques Lacan na Universidade de Louvain, em 1972, interrompida pelo escritor situacionista Jean-Louis Lippert, sob a persona de Anatole Atlas. Lippert-Atlas invade o estrado, vira água sobre a mesa de Lacan, agride-o. A bem da verdade, o escritor não era um estudante, mas exprimia uma revolta contra a palavra do mestre. Na sua breve altercação com Lacan, Lippert-Atlas explica seu gesto:
O que, até há cerca de 50 anos, podia se chamar de “cultura”, quer dizer, expressão de pessoas que, por meio de um canal fragmentado, expressava o que sentia, é hoje uma mentira, e só pode ser chamado de “espetáculo”. Ela é hoje o pano de fundo que serve de ligação entre todas as atividades pessoais alienadas. Se as pessoas que estão aqui a partir de um momento se juntarem a partir de si mesmas e autenticamente quiserem se comunicar, será em outra base e sob outra perspectiva.
O discurso de Lippert-Atlas pode nos parecer abundante em clichês e carente de articulação. Resta que ele nos revela em um aspecto a natureza profunda dessa mutação. Nos anos 1840 retratados por Flaubert, a revolta contra o professor era reflexo da contestação à ordem política. A partir dos anos 1960, ela não depende de uma intenção primordial de subversão do Estado, pois se percebe a cultura como campo suficientemente autônomo para se configurar em si mesma como campo de guerra.
As forças que motivavam essa sublevação contra a cultura na pessoa daquele que tinha por missão transmiti-la situavam-se em uma zona ao mesmo tempo aquém e além da cultura europeia. De novo, Lippert-Atlas ilustra bem esse vetor de insurreição cultural de baixo para cima: a cultura em sua forma contemporânea, adulterada e decaída, seria impeditiva da “expressão” do sentimento individual, da “autenticidade”, da “comunicação”. Era o indivíduo impaciente de uma organização social que autorizava a palavra de um em detrimento da de outros, que se interpunha à sua subjetividade – uma impaciência que, de resto, o ato de interromper conferências ilustra bem.
Por outro lado, havia a questão mais ampla do valor mesmo da cultura europeia com relação às outras. Países como a Inglaterra e a França haviam acumulado um tesouro de conhecimento histórico, linguístico, antropológico, geográfico e econômico sobre povos de continentes distantes. Uma parte desses conhecimentos serviu à empresa colonial, o que ao mesmo tempo descentrava a Europa e reforçava o sentimento da sua superioridade. Em 68, boa parte das colônias já eram independentes, e essas culturas não-ocidentais não mais integravam impérios coloniais, mas vinculavam-se a Estados-nação soberanos, que ousavam ainda reclamar interesses próprios contra os das superpotências a partir da conferência de Bandung (1955). Ao mesmo tempo, percebia-se a Europa carregada das culpas do colonialismo – basta lembrar a bestialidade dos britânicos na Índia ou os horrores dos franceses no Magreb.
Diante da lembrança sangrenta da guerra da Argélia (ou mais ainda dos Estados Unidos no Vietnã), bem como da riqueza cultural secular das jovens nações árabes, africanas e asiáticas no que parecia ser sua ascensão, era difícil defender piamente a superioridade do Ocidente – e, se a necessidade se apresentava a alguns, era porque essa predominância não era mais autoevidente. Do pop à alta cultura, dos Beatles e seus gurus ao figurino orientalo-africano do Édipo, de Pasolini, um impulso levava a juventude universitária das Américas e da Europa a descobrir a música e as religiões do Oriente, entre a fascinação com o outro e a autoexpiação dos abusos das gerações passadas. A cultura ocidental tinha se tornado para eles um coturno por demais apertado – e o professor a personificava como ninguém.
Com isso, a transmissão cultural, de que a escola era parte fundamental, foi posta em questão nas sociedades pós-modernas. A geração de 68 foi a última a receber formalmente o legado da cultura clássica e a primeira a não o transmitir. Sua rebelião contra a cultura foi tão mais irônica que a época, em retrospectiva, surge mais como a da ascensão avassaladora da contracultura audiovisual, que ocuparia a partir de então todo o espaço. É difícil pensar no grande romance de 68 – mas filmes e músicas pop não faltam. Os Príncipes dos Poetas da Renascença foram definitivamente suplantados pelos Reis do iê-iê-iê.
Não radicaria igualmente em 68 a posição precária do professorado nas sociedades contemporâneas? A esquerda sindical se reclamou frequentemente do papel de intérprete das reivindicações salariais da classe – mas a perda da autoridade professoral acarretada por esse momento fundador da esquerda contemporânea que foi 68 levou, provavelmente à sua revelia, à desvalorização social da profissão, quando não a sua proletarização. Aos empertigados mestres acolhidos em pé nas salas de aula dos anos 50 seguiram-se os “facilitadores”, os docentes “horizontalizados” que se vestem como os alunos, que falam como os alunos, que se sentam em roda com eles.
O apagamento de autoridade intrínseca do professorado enquanto classe foi o apagamento de sua diferença específica, e daí ao apagamento de sua figura tout court o passo não é tão largo – basta lembrar os projetos tecnocráticos, populares igualmente a partir da década de 60, de sua substituição por “máquinas de saber”, por tecnologias de autoaprendizagem. É por fenômenos assim que maio de 68 não se restringiu a uma mera crítica à sociedade industrial e capitalista, mas foi também, sem que seus participantes se dessem sempre conta, seu acelerador.
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