por Rodrigo de Lemos
Não apenas 68 é o ano que nunca acabou, segundo a expressão que surge frequentemente à esquerda para celebrá-lo ou à direita para denegri-lo. 68 também é o ano em que tudo teria começado – no caso, tudo o que caracteriza nossas sociedades contemporâneas (certas liberdades, certas modalidades de contestação estudantil, certa crítica à sociedade de consumo). Algo que nunca termina e em que tudo começa – não é essa a definição mesma de um mito? O mito de 68 interpõe-se a nós e aos fatos, e sobretudo à significação dos fatos. Ele comanda à adesão inconteste ou à recusa global – em favor, talvez, de outro mito.
Fala-se do legado deixado pela suposta ruptura ocorrida em 68, mas muito menos de 68 como continuidade de algo que o ultrapassa. O ensaísta Jean-Pierre Le Goff tenta essa empreitada. Ele identifica a ruptura maior nos Trinta Anos Gloriosos, naquele período de espetacular crescimento econômico francês que começa em 1945 e que terminará somente em meados dos anos 70, com os choques do petróleo. Uma geração então vem ao mundo alheia à narrativa nacional representada pelo General de Gaulle, figura autoritária e algo sacrifical na qual se reúnem as memórias da Guerra, da Ocupação e da Resistência. A França imerge no puro presente da sociedade de consumo – sociedade de consumo que é também uma sociedade dos lazeres: por meio do cinema e da música pop difunde-se uma cultura popular hedonista e individualista. É esta última que serve de pano-de-fundo a um novo agente social já chamado pela sociologia de povo estudante. Sua constituição enquanto grupo específico com reivindicações próprias e enquanto vanguarda de modificações comportamentais dá-se também nesse período, em função da massificação do ensino superior. Assim, maio de 68 seria, em parte, o acelerador de tendências latentes na modernização do pós-guerra.
Pode-se igualmente entender 68 em uma duração mais longa. Não é incomum, por exemplo, que seja atribuída à geração protagonista das revoltas parisienses a consolidação de um novo modelo de família, mais flexível e menos hierárquico. Em seu A democracia na América, Alexis de Tocqueville já observava que na América “a família, tomando-se a palavra em seu sentido romano e aristocrático, não existe”. Essa abolição da autoridade inconteste do pater familias traduziria um novo estado social:
“Penso que, à medida que os costumes e as leis são mais democráticos, as relações do pai e do filho tornam-se mais íntimas e mais suaves; a regra e a autoridade se encontram menos; a confiança e a afeição são frequentemente maiores, e parece que o laço natural se estreita, ao passo que o laço social se distende.”
Esse retrato da família horizontalizada americana, composto pelo grande antropólogo do homo democraticus que foi Tocqueville, remonta à década de 1830, cerca de 130 anos antes de 1968. Remeter a essa observação não quer por certo dizer que a geração de 68 não inventou nada, mas que há uma linha em que se inserem suas inovações.
Por trás da retórica disruptiva, a corrente cultural-libertária de 68 em realidade representa uma continuidade e um aprofundamento de um processo secular, de difusão da sensibilidade democrática para outros domínios que não o político, da simples organização do Estado. Ela protagonizou uma inflexão da sociedade em direção a uma hiperdemocracia – caracterizada pelo anseio de que todas as esferas da vida social, quando não da vida pura e simplesmente, se meçam pela mesma régua da igualdade e da autonomia, no casal, na família, na escola, na universidade ou na vida intelectual. Maio de 68, simbolicamente e em retrospectiva, inaugura nosso mundo em que estar em um casal não significa abdicar de experiências individuais, mesmo as eróticas; em que a família é um laço afetivo de ilimitada elasticidade; em que os professores aprendem com os alunos tanto quanto os alunos com os professores; em que uma suprema imprecisão se estabelece entre a cultura e a indústria cultural.
Não cansamos de nos indignar com o que a sociedade hiperdemocrática possa ter de ridículo ou de grotesco – sem esquecer de poupar à nossa indignação aquilo que nela não obstrui nossos desejos ou que permite nossa realização.
Tocqueville relata que a ditadura do pai nos Estados Unidos em 1830 terminava cedo, tão logo o filho entrasse na idade da razão; a questão que se coloca hoje por vezes é contrabalançar o reinado da criança. Do sufrágio universal como igualdade política entre cidadãos passamos à aspiração a que todos os modos de vida, por aberrantes e marginais que outrora parecessem, gozem de seus próprios direitos civis e, quando não?, de uma mesma dignidade existencial. Não cansamos de nos indignar com o que a sociedade hiperdemocrática possa ter de ridículo ou de grotesco – sem esquecer de poupar à nossa indignação aquilo que nela não obstrui nossos desejos ou que permite nossa realização. Ela é a pasta de que somos feitos, gostos e desgostos confundidos.
Tocqueville já observava a doçura dos costumes na democracia. Ela se acentua no regime hiperdemocrático a ponto de constituir sociedades comparativamente confortáveis, daquele conforto mole e pegajoso como o de um sofá só de almofadas. É menos a coreografia da polidez que rege as relações pessoais do que uma universal cordialidade, mais ou menos forçada; os códigos rígidos das maneiras à mesa se simplificam em favor de princípios muito gerais de higiene e de convivialidade; mesmo a indumentária perde a formalidade que ainda guardava na era burguesa, e se espera que as roupas tenham tão pouca estrutura a ponto de não constrangerem própria estrutura do corpo, como se fossem uma segunda pele, cálida e acariciante. Os horrores de que padece o gênero humano ou que ele se inflige seguem existindo, mas em nosso discurso são mais e mais intoleráveis. Não, contudo, que nos imporíamos algum sacrifício para contê-los, como exigiria a ética revolucionária de outrora. Dada a amplitude da insurreição, o próprio maio de 68 resultou em poucas mortes (e acidentais), o que é significativo da nova sensibilidade.
A hiperdemocracia só é possível com o abalo da hierarquia das hierarquias, daquela em que todas as outras desigualdades sociais repousam: a que, aos olhos de uma coletividade, sobrepõe ao homem uma realidade transcendente. Um dos fantasmas recorrentes do conservadorismo religioso é o de que a morte de Deus acarrete o massacre generalizado numa sociedade pós-moral – salvo que a própria crença na existência de uma vida além da vida já serviu a redimensionar para baixo a importância da morte e a tornar mais fácil dá-la a quem supostamente a mereceria: na Europa católica, não havia execução que não contasse com o padre ao lado do condenado a lembrar-lhe as delícias da vida eterna após o arrependimento. Quando a morte se torna a morte, quando o adeus é adeus definitivo, essa frivolidade já não é mais tão fácil. Diante da luz cinzenta da morte irreparável, os quadros mais vivos de redenção, na História ou fora dela, perdem as cores: é certo que os gostos do indivíduo não são tudo frente aos sofrimentos do operariado, mas o que são os sofrimentos do operariado frente à dissolução absoluta de uma personalidade individual na pura entropia? A gravidade da morte sem esperança faz o indivíduo mais ávido de vida e por isso mesmo mais econômico quanto à sua própria vida: ele não a daria por coisa alguma; ao mesmo tempo, dar a morte ao outro não é necessariamente mais simples, e a consciência faz sentir seus direitos quanto a um mal não passível de redenção nem de alívio e ante o qual todo sentido se esboroa. Maio de 68 foi uma Revolução de Veludo na porteira de uma sociedade acolchoada, e o tempo que esta vai durar depende do tempo que sobreviver o legado abrangente e contraditório daqueles anos. Talvez um dia venhamos a lamentá-la. Não é dizer que nunca houve nem haverá sociedades melhores – mas o quanto suportaríamos viver nelas?
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